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Entrevista: 
Lucia Garcia

‘É um desempenho bastante interessante, apesar das amarras’

Nessa entrevista, Lucia Garcia, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e especialista em mercado de trabalho, comenta os resultados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, que apontou uma queda nas taxas de desemprego no país e um aumento da renda média dos trabalhadores. Segundo ela, o cenário é promissor, uma vez que a economia tende a se acelerar no segundo semestre. “Realmente nós estamos num momento de recuperação no mercado de trabalho”, comemora Lucia, que afirma que os bons resultados se dão à despeito da pouca margem de manobra que o governo federal tem para atuar na economia. “É um governo acossado, porém criativo, porque vem conseguindo superar entraves”, opina.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 09/08/2024 14h19 - Atualizado em 23/08/2024 10h51

Igor Sperotto/Jornal Extra ClasseOs últimos dados da PNAD/IBGE relativos ao trimestre que se encerrou em junho deste ano mostram uma redução da taxa de desocupação para 6,9%, o menor número de pessoas em busca de trabalho desde o trimestre encerrado em fevereiro de 2015 e menos da metade do registrado durante a pandemia: 14,9% em março de 2021, segundo o IBGE. Como você analisa essa queda? Ela tende a ser sustentável a médio e longo prazo?

A principal referência que a gente usa nessas avaliações conjunturais é a variação interanual. A gente olha para igual período do ano anterior para ver como isso se deu num movimento mais recente. Esses dados nos dizem que nós tivemos uma entrada de pessoas no mercado de trabalho. A nossa taxa de adesão, vamos dizer assim, o tamanho do mercado de trabalho, aumentou, mas nós tivemos um aumento muito importante de oportunidades de trabalho, de formas de inserção, de volume de pessoas ocupadas. Quase 3 milhões praticamente de oportunidade de trabalho, o que derrubou a taxa de desemprego. Então, a gente tem um movimento em que mais pessoas são atraídas em busca de renda, a economia acabou gerando oportunidade de trabalho para os entrantes e para o estoque de desempregados, o que fez o volume de desempregados cair. Mais de um milhão de pessoas deixaram a fila do desemprego. A que se deve isso? Principalmente, grosso modo, a uma organização econômica. O Brasil vinha de um processo pandêmico e de um governo desestruturador da atividade econômica. E nós passamos aí em 2022 e principalmente em 2023, evidentemente, por um processo de recuperação de fundamentos econômicos, de organização da economia, sobretudo, de reativação de atuações do setor público, animando algumas linhas de financiamento para o setor privado. Então, mesmo estando no campo da organização econômica, daquilo que já estava em jogo, nós vivemos uma reativação da economia com o resultado que nós estamos hoje, com a menor taxa de desemprego desde 2015.

Qual é o rumo desse crescimento? Ele é positivo, evidentemente, porque tivemos um aumento de pessoas com trabalho, portanto, pessoas que estão usando sua capacidade intelectual, sua força física para gerar riqueza e bem-estar. Uma coisa que no Brasil a gente paralisou a partir do segundo trimestre de 2015, e a gente veio até as portas da reforma trabalhista com uma paralisia econômica no país e logo a seguir com uma pandemia. Portanto, a gente viveu o inferno. E nós estamos hoje reestruturando, basicamente recolocando as coisas nos seus devidos lugares. Mas o crescimento econômico sempre vem com um sentido. Ele tem alguns sinais.

Então, esse é um crescimento do assalariamento, portanto da subordinação clássica, canônica, capitalista. Ele é um crescimento do assalariamento com carteira assinada, que vem pelo setor público, mas no setor público ele vem pelos empregados com carteira assinada, muito mais do que por estatutários ou por militares. E vem também por uma reativação de um segmento menor da economia, que são os entregadores e um crescimento de trabalhadores por conta própria. Há oportunidade de trabalho em todas as maneiras como as pessoas se articulam, todos os arranjos. À exceção de emprego doméstico. Está crescendo o emprego em geral, a economia está se animando, está aumentando a renda das famílias, mas o emprego doméstico não está reagindo. Outra forma de trabalho que não está reagindo é do trabalhador familiar, essa forma de negócio familiar, ela não está engendrando ocupação, principalmente de filhos e cônjuges da família nessa forma de trabalho.

Se a gente for olhar em termos de atividade econômica, a gente vai perceber que um dos setores que puxa esse crescimento é o da construção. Esse é um setor que foi muito ‘bombardeado’ entre 2015 e 2017 e que volta a se apresentar e é muito importante, porque ele vai encadear outros segmentos. Quando o espaço da construção se move, ele move a indústria voltado à construção, move o comércio voltado à construção e move os serviços de incorporação imobiliária.

Então, a gente tem uma boa notícia para frente também, porque a construção tem sido um setor que tem animado esse crescimento. E nos serviços a gente vem também observando que a logística, o transporte, o setor de correios, apresentou um crescimento muito forte nos últimos 12 meses e também esse setor ligado à informação e às ocupações mais técnico-científicas, que são os serviços de apoio à empresa, que estão crescendo. Portanto, estamos num crescimento de organização econômica e que tende a ser mais sustentável ao longo do tempo, porque são de segmentos também.


A PNAD/IBGE também apontou um crescimento do rendimento dos trabalhadores ocupados, com a massa salarial atingindo um recorde: R$ 322,6 bilhões. O que isso projeta para os próximos anos?

A renda cresce porque nós temos uma reorganização econômica e uma inflação muito controlada. Cresceu ali no segmento que está havendo contratações do setor público, que são os servidores públicos contratados através de carteira assinada. E está crescendo também a renda do trabalhador por conta própria com CNPJ, que é também uma manifestação do novo mercado de trabalho. Quando o emprego cresce e a renda cresce, isso gera um crescimento de massa salarial. Então a gente está num crescimento de massa salarial muito interessante. Nós estamos aí com uma massa salarial que variou 9,2% em 12 meses, muito perto dos 10%. Crescer 10% de uma massa salarial num mercado de trabalho de 102 milhões de trabalhadores é muita coisa. Então realmente nós estamos num momento de recuperação no mercado de trabalho e aqui na porta do segundo semestre. A gente espera que no segundo semestre fatores sazonais façam com que a economia se expanda. Ela sempre se expande no segundo semestre, dadas as condições de temperatura e pressão mais normalizadas.

Como é que tu governas um país se não é dono nem do gasto público e nem da soberania monetária? Tu não controlas nenhuma das duas ferramentas básicas da política econômica. Então é um governo acossado, porém criativo, porque vem conseguindo superar entraves, apesar de não ter nem escudo nem espada, digamos, para governar


Por que tende a haver esse crescimento maior no segundo semestre?

No ciclo anual da economia, num primeiro trimestre do ano até março, em geral nós temos mais pessoas procurando trabalho do que empregadores ofertando, porque os empresários, tomadores de decisão, aqueles que contratam, eles querem entender como a economia vai funcionar no ano. Eles não contratam de imediato, eles tomam outras atitudes no primeiro semestre, como ampliar a jornada de trabalho, por exemplo, lançar mão de outras alternativas que não a contratação. Agora, à medida em que vão entendendo que a economia está tomando um caminho de consolidação de um crescimento, que não é um crescimento estrondoso, mas que vem sendo construído com um pé diante do outro, que é muito a cara da atual condição econômica do governo central. A própria gestão do ministro [Fernando] Haddad, é uma gestão que não é ousada. A ousadia dela é a persistência. Então, quando o empresário começa a entender que a economia tem essa curva, ele começa a se animar para contratar. O terceiro trimestre do ano é o trimestre industrial, em geral o trimestre que a indústria produz para formar estoques e para o último trimestre do ano. O brasileiro de certa forma reserva suas economias para realizar compras no segundo semestre, perto do Natal, organiza sua vida para demarcar esse campo. E nós temos neste ano o processo eleitoral, em que temos as torneiras do setor público mais abertas, e principalmente mais irradiadas, porque o nosso processo eleitoral é municipal. Então nós vamos ver muito mais iniciativas nesse campo. Então é uma marcha, enfim, que nos indica que o segundo semestre deve ser melhor ainda. Há uma escolha do governo, na verdade, por algo mais sóbrio e contínuo. E que parece que está dando certo. É um processo muito calcado, na minha opinião, em organização econômica, organização tributária, processos de liberação de crédito para segmentos. E o governo também vem demonstrando claramente que tem um controle tributário muito forte. Então, a gente vem vendo esse movimento, apesar das amarras. É um desempenho bastante interessante, apesar das amarras.


Que amarras?

Bom, é um governo que não tem controle fiscal, porque está na mão de um Congresso, que não é nem amistoso, nem muito honesto. Como é que tu governas um país se não é dono nem do gasto público e nem da soberania monetária? Tu não controlas nenhuma das duas ferramentas básicas da política econômica. Então é um governo acossado, porém criativo, porque vem conseguindo superar entraves, apesar de não ter nem escudo nem espada, digamos, para governar.


A decisão recente do Comitê de Política Monetária do Banco Central de manter a taxa básica de juros em 10,5%, a despeito do que desejava a equipe econômica do governo Lula, é uma das amarras a que você se refere?

Nós conseguimos engendrar um absurdo, que é um Banco Central que é de oposição sistemática ao povo brasileiro. Não temos um Banco Central independente, porque talvez essa figura sequer exista. É só retórica. Se nós temos um governo que não consegue fazer a gestão do gasto público, porque ele está chantageado permanentemente por um Congresso que maneja um outro crime que é o orçamento secreto, que são as emendas parlamentares que simplesmente fragmentaram o orçamento federal... Então, estamos recuperando de maneira importante a economia nas margens do que ela pode melhorar, sem espada e sem escudo. Então, estamos caminhando nesse fio da navalha. Por um lado, a gente trabalha com uma organização econômica e com a recuperação de uma economia que vem também muito pela distribuição da renda enfim, e por outro lado a gente tem amarras muito fortes.

Por que o que acontece? Em 1999 se estabeleceu o novo regime macroeconômico, que fez uma associação entre taxa de juros e gasto público. Então tu vais ter um determinado nível de taxa de juros para um determinado nível de superávit primário. Até 1999 não existia esse negócio de superávit primário. Ou seja, o governo não tinha que mostrar um resultado operacional positivo para sinalizar aos seus credores que tem como honrar a dívida. Isso começou ali. Tu vais introduzindo na cabeça dos brasileiros que o governo tem que gastar o mínimo e que a taxa de juros tem que ser o remédio amargo toda vez que o governo fizer uma gota de xixi fora do pinico. Como no momento atual do capitalismo a economia não cresce, a taxa de lucro das empresas é cada vez menor, não tem mais como comer salário, elas precisam avançar em áreas que antes não eram mercantilizadas, como saúde, educação, que não eram áreas das empresas. E por fim, você tem que avançar sobre o fundo público, que é o gasto governamental, que é o recurso governamental. Então, a taxa de juros hoje não é uma taxa de juros para proteger a economia da inflação. Ela é uma taxa para remunerar aqueles que atacam através do poder financeiro, a dívida pública, para rentabilizar sobre ela. Então a taxa de juros tem que ser alta, porque ela está indicando quanto que esses financistas estão sacando do fundo público. A taxa de juros perdeu completamente o sentido dela em relação a outros controles macroeconômicos. Ela é essencialmente um preço, um sinalizador de quanto os financistas vão ganhar dos recursos públicos. E tu vai fazer menos vacina, vai ter menos recursos de saúde, menos recursos de educação, para atender o setor financeiro. A mudança capitalista não é só tirar direitos dos trabalhadores, não é só privatizando. Ela também vem numa forma sofisticada de tirar do governo o poder de governar para a maioria, e sempre governar para aqueles que são os detentores de títulos públicos. E isso é contra o mercado de trabalho, porque isso é contra a produção.

Agora o governo não ataca o projeto de uma maneira geral, não é perfil deste governo fazer isso. Ele vai gerenciando nas margens que tem. É um governo que tenta maximizar o pouco espaço de governo que tem. E quando faz isso, faz bem, porque gera emprego e gera renda.

Nós temos sim um movimento muito resistente dos trabalhadores, que vem de baixo e vem de jovens dirigentes. Há uma revitalização do movimento sindical, o que também é impressionante. Porque o movimento sindical sofreu um duro golpe nesse processo de ataque a direitos no Brasil, no sentido de que perdeu sua estrutura econômica, perdendo o imposto sindical


O Dieese faz um acompanhamento do movimento sindical, principalmente em relação as datas bases no país, para identificar quais parcelas dos trabalhadores vêm obtendo ganhos reais nas negociações coletivas. Como esse cenário atual de queda do desemprego vem refletindo sobre os resultados das negociações? E com relação aos movimentos grevistas, outra área de análise do Dieese?

As negociações coletivas têm sido bem-sucedidas, com ganho real. Esse ganho real ainda não é fabuloso, estamos falando de meio a 1,5 ponto percentual acima do nível da inflação, mas as categorias com mais poder de barganha, é claro, conseguem um resultado mais interessante. Mas em geral têm conseguido sim, refletindo exatamente esse ânimo e principalmente o controle inflacionário. Então, isso tem dado margem para as categorias negociarem e as elas estão ampliando também as suas cláusulas de negociação. Então, tem a negociação da recuperação do poder de compra dos trabalhadores e você começa a perceber que as cláusulas sociais, como o ticket e outros benefícios, como creche, e outras condições que os trabalhadores também demandam, enfim, que têm um significado muito importante na estruturação econômica dos trabalhadores, têm se apresentado. E quanto às greves? Nós tivemos um movimento paredista no ano passado interessante de mais de 1,3 mil greves. E esse ano também tivemos. Nós temos sim um movimento muito resistente dos trabalhadores, que vem de baixo e vem de jovens dirigentes. Há uma revitalização do movimento sindical, o que também é impressionante. Porque o movimento sindical sofreu um duro golpe nesse processo de ataque a direitos no Brasil, no sentido de que perdeu sua estrutura econômica, perdendo o imposto sindical [com a reforma trabalhista aprovada em 2017]. Mesmo assim ele se mostra bastante revigorado. Evidentemente, teve um recolhimento, teve uma reorganização. Essa reorganização continua, mas o movimento sindical brasileiro continua aí, na sociedade, discutindo questões importantes. Ultimamente estivemos muito fortemente presentes nessa discussão da lei da igualdade salarial, que é importante, porque fala da transparência que as empresas não dão às suas folhas de pagamento. Ao mesmo tempo, sejamos simpáticos ou não a esse movimento sindical, que chega aí a 42 milhões de trabalhadores se nós incluirmos o setor público, foi a barreira para não ser pior essa avalanche de perda de direitos. A reforma da Previdência e a reforma trabalhista só não foram piores por conta desse movimento sindical que está aí. É claro que esperamos que venha uma primavera, que a gente tenha uma mudança geracional, que a gente tenha mudanças importantes, mas esse movimento cumpriu sua função fundamental.

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