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Entrevista: 
Luís Castiel

'Em determinados segmentos sociais, mais favorecidos em termos socioeconômicos, o estilo de vida se dirige ao corpo como um bem'

O caso da mastectomia dupla preventiva da atriz hollywoodiana Angelina Jolie causou alvoroço na mídia nas últimas semanas. Dividindo opiniões entre pesquisadores, o fato é mais um exemplo do mercado que envolve e absorve a saúde nos tempos atuais. O médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Ensp/Fiocruz) Luís Castiel, avalia nesta entrevista como a atuação deste mercado tem trazido consequências, inclusive, na forma como a população encara a saúde e a doença e lida com o seu próprio corpo.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 01/06/2013 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Em suas palestras, o sr. chama a atenção para o 'cinismo' da relação entre indústrias e a saúde. Por quê?

Há uma dimensão moral discutível na prática médica quando médicos acabam atuando de modo ambíguo em relação aos interesses do paciente em um sistema de atenção à saúde, baseado nas "leis do mercado". Há uma atuação agressiva em busca de lucratividade por parte das grandes empresas farmacêuticas e de equipamentos de saúde nas prescrições e intervenções médicas. A relação médico-paciente está sendo atravessada pelas interferências abusivas dessas empresas com, aparentemente, boa dose de benevolência por parte de muitos médicos, que se julgam imunes às influências ou consideram que não há problemas éticos diante da aceitação de viagens pagas pela indústria, remunerações como ‘speakers', incentivos financeiros a eventos, presentes e agrados variados. Como ilustração de efeitos desta relação, é conhecido o fato de as empresas farmacêuticas terem um sistema de acesso a prescrições específicas de cada médico nas farmácias e assim monitorarem se seus produtos estão sendo indicados, estabelecendo formas de recompensa caso isto esteja ocorrendo. É importante mencionar que houve um acordo, lançado no início de 2012, entre Conselho Regional de Medicina [CRM], Associação Médica Brasileira [AMB] e representantes da indústria farmacêutica no país, estabelecendo balizamentos para a relação indústria/médicos. Mesmo com o intuito de evitar abusos - que transparecem nas entrelinhas das regras que tentam coibi-los -, as orientações são apresentadas como diretrizes éticas desta relação.

O que é saúde? Este conceito está descolado do que está sendo pregado hoje?

Antes de tudo, cabe caracterizar que o termo ‘saúde' está repleto de complexidades que, inclusive, envolvem juízos de valor, hierarquias e pressupostos. Na situação, em termos esquemáticos, trata-se de encarar a ‘saúde' como mercadoria/serviço que se produz e se consome historicamente de diversas formas, através de diferentes agentes, práticas e instituições públicas e privadas no âmbito da evolução mais recente do capitalismo. Neste caso, importa especificar que o contexto atual do campo da saúde está marcado, seguindo a pesquisadora holandesa Annemarie Mol, pelas questões geradas pela tensão entre a lógica da escolha do consumidor e a lógica do cuidado de quem adoece, em tempos de neoliberalismo, ciência empiricista, práticas de gestão racional e eficácia instrumental. Para ela, tal tensão entre a lógica do cuidado e a lógica da escolha do paciente como consumidor se situa dentro do cânone neoliberal do direito supostamente autônomo de decidir e a liberdade de escolha no mercado quanto ao que consumir em nome da saúde. A saúde é uma condição desejada, mas também se apresenta como um estado prescrito, uma posição ideológica e a instituição de preceitos morais. As decisões que as pessoas tomam em relação às formas de levarem suas vidas em termos de saúde hoje em dia devem considerar sua liberdade de escolha e seu direito de decidir livremente no mercado - mas satisfazendo as premissas de: poder atuar como agentes de consumo supostamente autônomos; tomar decisões bem informadas pelos conhecimentos científicos disponíveis no sentido de manter a saúde e, mais adiante, a longevidade com vitalidade.

Por que sr. faz uma crítica ao termo 'estilo de vida', tão utilizado atualmente. O que ele significa?

O gerenciamento dos riscos em saúde - quando estes não são encarados em seu aspecto ambiental - é, muitas vezes, apresentado pelos experts como algo ligado à esfera privada, da responsabilidade pessoal dos indivíduos, colocada em termos de escolhas comportamentais, enfeixadas sob o termo ‘estilo de vida'. As propostas educacionais em saúde visam atingir mudanças nesta dimensão. A partir de tal ótica, interessam, no interior do dito ‘estilo de vida' de cada um, aquelas escolhas e comportamentos com repercussões nos respectivos padrões de adoecimento das pessoas, ou seja, no campo da cultura de consumo contemporânea, os aspectos perniciosos decorrentes de elementos que dizem respeito a aspectos como individualidade, auto-expressão e uma consciência de si mesmo sob a forma de estilos escolhidos para se viver e que se relacionam com o corpo, as roupas, os entretenimentos de lazer, as preferências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias etc. Levando tal raciocínio adiante, vamos nos deparar com uma ideia curiosa. Se são atribuídas às pessoas suas escolhas de estilo de vida - dentro, é claro, de suas margens de aquisição/acesso -, incluídos no pacote estão fatores ou elementos considerados responsáveis por possibilidades de ocorrências danosas à saúde. Então, não é absurdo supor este subconjunto como o estilo de risco, como se, de alguma forma, as pessoas também ‘escolhessem' exposições a riscos como formas de levar suas vidas.

No entanto, tais opções não devem ser vistas como fruto de disposições intencionais, racionais, voluntárias. Cada um de nós é a resultante singularizada de complexas configurações bioquímicas, psicológicas, socioculturais, em que o estabelecimento e as tentativas de reordenação da ideia de si mesmo são frágeis e dependem de contribuições genéticas, construções epigenéticas, biografia pessoal, estrutura psicológica inconsciente, elementos culturais, acasos. Portanto, os ‘estilos de risco', são, a rigor, aspectos que, muitas vezes, participam e constituem os modos possíveis com que se lida com o mundo da vida tal como se faz presente a cada um de nós. Claro que determinados ‘estilos' são perigosos, seja para o próprio indivíduo, seja, também, para os que lhe cercam. Assim, demandam intervenções apropriadas. Mas é essencial não perder de vista a perspectiva descrita, sob o risco de serem adotadas premissas que conduzam a ações insensíveis, culpabilizantes, limitadas e, conforme o caso, de efetividade restrita.

Em determinados segmentos sociais, mais favorecidos em termos socioeconômicos, o estilo de vida se dirige ao corpo como um bem, cuja aparência de vigor físico e juventude deve ser mantida. A ideia de boas condições de saúde se funde à de atratividade sexual. Esta conjugação gera uma grande estrutura industrial e comercial voltadas ao mercado de cosméticos, vestuário, esporte, lazer, alimentação, etc. Uma crítica comum ao conceito ‘estilo de vida' é referente a seu emprego em contextos de miséria e aplicado a grupos sociais em que as margens de escolha praticamente inexistem. Muitas pessoas não elegem ‘estilos' para levar suas vidas. Não há opções disponíveis. Na verdade, nestas circunstâncias, o que há são estratégias de sobrevivência.

Qual é a sua análise sobre a responsabilização individual de ser saudável?

O início da trajetória da utilização da ideia de responsabilidade pessoal na saúde pode ser, de alguma forma, situado no começo dos anos 1970. Há autores que identificam neste período, nos EUA, um momento em que a saúde passa a ser vista como algo em relação à qual as pessoas deveriam estar devidamente informadas para, em nome da liberdade de escolha e do direito de decidir autonomamente, tomarem as medidas supostamente mais acertadas. Neste quadro, a mudança de comportamento deslocou-se para o centro das experiências vividas pelas classes médias estadunidenses, como se houvesse a produção de uma ‘nova consciência de saúde' para indicar uma formação ideológica emergente que definia questões de saúde e suas soluções dentro dos limites do controle pessoal. A dimensão da responsabilidade pessoal se desenvolveu em meio a práticas culturais com as quais essas classes médias há muito se identificavam. Constituía-se como uma espécie de referência moral central para as pessoas passarem a crer que a operação na esfera de si mesmo, por meio de um trabalho no próprio corpo, proporcionaria efeitos benéficos para a saúde.

Olhando, retrospectivamente, as práticas de saúde daquela época contribuíram para o crescimento da ordem social neoliberal. O sucesso das soluções privatizadas de mercado para problemas públicos deve ser entendido pela forma como a responsabilidade individual venceu a moralidade política, baseada na responsabilidade coletiva para o bem-estar econômico e social, em meio a outros elementos. Ainda em retrospecto, ficou claro que a responsabilidade individual pela saúde, mesmo com algumas resistências, se mostrou especialmente efetiva para determinar o ‘senso comum' dos princípios centrais do neoliberalismo sustentável em função de gastos sociais com saúde, ao contrastarmos a imagem de indivíduos autônomos, prudentes, auto-responsáveis com visões antagônicas de descuidados, imprudentes, irresponsáveis. Os cuidadosos pagariam impostos para proporcionar atenção médica para os que adotavam estilos de vida insalubres e, por isto, adoeciam. Falar de saúde se tornou falar de responsabilidade.

Existe hoje uma paranoia da busca por saúde? A quem devemos isso?

Convivemos com uma dominância das dimensões médicas em nossa sociedade. Podemos até dizer que a "paranoia da busca de saúde" pode ser representada pelo processo atual de medicalização, que se sustenta em função de a procura de saúde ter ocupado na nossa época o formato de busca preventiva sob a égide da segurança individualista. Algo que pode até chegar a assumir a finalidade fundamental da existência, que é ser longevo com vitalidade. E o saber médico passa a ter o papel não apenas da prevenção e da cura, mas também de fornecer significados a questões auto-identitárias do indivíduo em relação ao mundo social a seu redor e se estabelece também como moral e se institui como matriz comportamental para além dos domínios biológicos, determinando modos de se levar a vida. E, inclusive, capaz de gerar uma pedagogia do medo por meio das possibilidades de perda dos benefícios da vitalidade longeva para aqueles que não se pautam por condutas preventivas preconizadas como sadias. Desta forma, o saber médico se aproxima de uma forma de ‘religião' ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais virtuosos em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos e salvos mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso.

Assim, é possível estabelecer nexos entre saúde e salvação. É preciso seguir o catecismo preventivo proveniente das muitas recomendações médicas que exaltam as virtudes que levam a boas ações de saúde, se estendendo desde a carteira de vacinação na tenra idade - algo realmente benéfico - aos exames regulares de check-up, a partir dos quarenta anos, evitando fumo, álcool, sedentarismo, dietas não balanceadas, maus hábitos de saúde... Com isto, o indivíduo se candidata a ser atendido pela benção da probabilidade mais elevada de não ser atingido pelo mal - a enfermidade, o sofrimento e a morte antes do prazo prometido pela expectativa de vida do contexto onde vive, desde que pertencendo a um grupo privilegiado neste sentido. Não é absurdo se afirmar que tanto a mídia como os interesses de mercado - que eventualmente estão mesclados - participam ativamente deste panorama.

Como o sr. analisa o caso da Angelina Jolie? Podemos dizer que ela é um exemplo dessa paranoia?

O conhecido caso da mastectomia dupla preventiva a qual se submeteu a atriz Angelina Jolie por razões genéticas familiares não deixa de se inscrever nesta lógica do medo sustentada por saberes médicos que levam à intervenção radical. Há indícios de que estas práticas estão crescendo. Robert Aronowitz é um pesquisador que descreve uma tendência neste sentido em estudos nos EUA que mostram que cada vez mais mulheres em todos os estágios de câncer de mama (I, II e III), quando se faz o respectivo diagnóstico, decidem que seja feita igualmente a cirurgia profilática de extirpar o seio não afetado. Isto sugere que elas estão sendo expostas a alguma influência externa comum. Talvez seja o uso de tecnologias de ‘screening' e diagnóstico mais sensíveis como, por exemplo, a ressonância magnética dos seios. Mas também parece ser importante o modo como as pessoas em diferentes pontos da experiência do risco usam estratégias similares e formas de tomadas de decisão relativamente afastadas das probabilidades calculadas de desfechos ruins.

Esta situação tem aspectos complicados, e deve levar em conta o papel ativo das formas de produção de conhecimento médico sobre risco e práticas redutoras de risco ao gerar medo e aumento de vendas de práticas e intervenções de redução de riscos. A indistinção dos limites entre risco e doença na tomada de decisões em saúde é estimulada pela forma como se define, se nomeia e se classifica risco e doença. A descrição de um estado de risco de câncer com argumentos baseados em cálculos de probabilidade genética do agravo poderia ser tratada de modo mais conservador mediante acompanhamento médico periódico meticuloso. Mas o estado de medo aparentemente construído parece conduzir a intervenções radicais, em que é difícil não considerar interesses mercadológicos de convergência de risco e doença para aumentar vendas de serviços e produtos de diversos setores empresariais de saúde.

Recebi informações contidas no portal Tthoth3126 que apresenta Angelina envolvida em um suposto plano de uma empresa genética. O texto apresenta que os testes pelos quais a atriz foi submetida estão para serem patenteados pela empresa Myriad Genetics com fins - e muitos - lucrativos. O anúncio de Jolie fez com que as ações da empresa subissem rapidamente; e ainda levou a opinião pública a influenciar a decisão da Suprema Corte dos EUA para decidir em favor da propriedade das grandes corporações dos genes humanos.