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Entrevista: 
Fábio Falcão Monteiro

'Fazemos um trabalho que não entra nas estatísticas'

O Agente Comunitário de Saúde (ACS) é a ponte entre a comunidade e o serviço de saúde. É assim que o ACS da Clínica de Saúde Escola Germano Sinval Farias, Fábio Falcão Monteiro, define sua profissão. Além do trabalho de monitoramento e visita às famílias em Manguinhos, região de favelas na zona norte do Rio de Janeiro, Fábio tem se desdobrado nos últimos dias em mais uma atividade: participar de mobilizações para buscar o apoio da sociedade na luta contra as recentes portarias (958 e 959) do Ministério da Saúde que retiram a obrigatoriedade da presença dos ACS nas equipes de Saúde da Família os substituindo por auxiliares ou técnicos de enfermagem. Acompanhado de vários colegas, e com abaixo-assinado debaixo do braço, Fábio esteve no último sábado no 1º Encontro Popular de Saúde do Rio de Janeiro, onde a luta ganhou mais apoio e visibilidade. Apesar de as portarias terem sido suspensas depois da reação negativa, ele explica, nesta entrevista, que a mobilização é para que as medidas sejam revogadas. O agente comunitário conta também um pouco sobre o dia a dia do trabalho e os outros desafios dos ACS.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 24/05/2016 16h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A mobilização dos agentes comunitários de saúde cresceu em função dessas portarias?

Isso. Essas portarias, a 958 e a 959, foram aprovadas no dia 10 de maio e abrem uma brecha para a retirada dos agentes comunitários de saúde da Estratégia de Saúde da Família, substituindo-os por técnicos de enfermagem. Houve uma mobilização nacional, os agentes de vários estados fizeram paralisações. Aqui no Rio, no dia 18, fomos até a Câmara de Vereadores reivindicar a suspensão dessas portarias. Nós conseguimos: elas foram suspensas, mas essa suspensão é provisória, não é nada definitivo. No dia 2 de junho haverá uma audiência pública em Brasília, onde nós estaremos conversando para que seja revogada totalmente. A nossa luta é emergencial porque queremos ganhar apoio para esta audiência que está próxima. Não é só pela nossa categoria. Nós entendemos que essa medida vai impactar toda a saúde pública, toda a população. Nós, ACS, somos considerados a ponte, levando a saúde para a população. Então, tirar os ACS significa prejudicar o acesso da população à saúde, e principalmente, da população carente da comunidade que já sofre tanto. Foi tão difícil construir um vínculo ao longo desses anos e agora tudo isso vai ser desconstruído. Nós não podemos deixar assim, por isso estamos somando forças com todas as áreas.

Como tem sido essa mobilização aqui no Rio?

No dia 18, lá na Câmara, os vereadores fecharam a porta na nossa cara e ficamos na chuva, do lado de fora. Inclusive estava acontecendo alguma cerimônia de premiação lá, e sabemos que alguns vereadores que estavam lá dentro são a favor dessa portaria. Tivemos ontem uma reunião do Conselho Gestor Intersetorial [espaço de monitoramento das políticas públicas de saúde] e aproveitamos o espaço para passar para todo o Conselho o que está acontecendo. Aí ficamos sabendo do Encontro Popular de Saúde e viemos aqui também para comunicar isso à população. O nosso principal objetivo é este: passar essa informação para a população, porque ela que vai ser a maior prejudicada. Por isso tem esse abaixo-assinado circulando.

O abaixo-assinado é nacional?

Fomos nós aqui do Rio que fizemos. Mas nós temos um grupo de whats app dos ACS e dos ACE [Agente de Combate a Endemias] espalhados por todo o Brasil e vimos lá que cada um está organizando da sua maneira, cada um fazendo alguma coisa, aí vimos que também não poderíamos ficar parados e demos esse pontapé inicial. Nós não temos líderes nem representantes oficiais, é um movimento de todos. Não estamos pedindo apoio de partidos, todo o apoio que vier é bem vindo, mas nós estamos fazendo questão de deixar isso claro para que não envolva pessoas que queiram se aproveitar da situação.

Você mora em Manguinhos?

Moro.  Para entrar na carreira de ACS é um pré-requisito morar no local de atuação, mas depois, claro que a pessoa tem o direito de melhorar de vida e se mudar. Algumas pessoas não moram mais aqui, mas a maioria dos ACS são moradores, e até esses que já saíram possuem um vínculo, às vezes os familiares estão todos na comunidade ainda, são nascidos e criados aqui, conhecem o território. São pelo menos 40 agentes atuando na clínica da família Germano Sinval Faria, e acredito que a mesma quantidade na clínica da família Victor Valla.

E quais são os desafios de saúde que você observa em Manguinhos?

Eu vejo aqui que o SUS, até mesmo por conta desse trabalho da clínica de saúde da família, avançou muito. Não chegamos ainda ao ponto ideal, algumas coisas precisam ser mudadas. Mas antigamente, há dez, 20 anos, quando não tinha essa política da Estratégia de Saúde da Família, as pessoas tinham que dormir na fila para pegar uma senha, muitas morriam sem atendimento. Hoje, a realidade é o sistema de Sigeg [sistema de marcação de consultas especializadas], que muitas vezes demora. Muita coisa precisa ser mudada, mas com os ACS e com a Estratégia de Saúde Família muita coisa melhorou. O pessoal do Nordeste recebeu recentemente um troféu da Unicef pela baixa na mortalidade infantil. Então, estamos trabalhando, não somos apenas aqueles que batemos nas casas para perguntar se está tudo bem e vamos embora, fazemos todo um trabalho que às vezes não entram nas estatísticas.

Você pode falar um pouco sobre este trabalho?

Por exemplo, muitas vezes nós levamos remédios para um paciente que está acamado, isso entra para o sistema como uma visita domiciliar, mas é diferente. E na estatística, não há uma diferenciação entre isso e outra casa que eu possa ir e eles me relatarem que está tudo bem, que ninguém esta precisando de remédio. Então, esse diferencial não entra no sistema. Nós fazemos, por exemplo, grupos de informação e discussão de saúde. Hoje nós temos na nossa equipe residentes de saúde bucal, enfermagem, psicologia, nutrição, o que tem sido muito bom. Com esses profissionais, temos feito grupos comunitários, fizemos um diagnóstico da comunidade e isso tudo vai garantindo mais acesso à saúde. Pessoas que achavam às vezes: ‘ah, não quero ir ao médico porque ele vai me mandar operar’.  A gente vai insistindo, a pessoa vai para a consulta e a médica diz: ‘olha, é só você fazer um acompanhamento com a nutricionista, não é tão difícil’. Então, a pessoa passa a abrir a mente dela e vê que não é aquela coisa tão difícil se cuidar. O trabalho começou com a gente, e isso às vezes não tem visibilidade.

Antes dessa portaria, os ACS já vinham se mobilizando em torno de outras pautas, como a necessidade de um piso salarial e a qualificação. Que outras bandeiras são importantes neste momento?

Uma das nossas lutas prioritárias, que acabou deixando de ser prioritária neste momento por conta dessas portarias, é a efetivação. Já existe uma lei, já foi aprovada, mas não é cumprida. Há um tempo houve uma manifestação, uma busca de reconhecimento da categoria, o que até hoje não aconteceu. O que foi dado para nós em resposta foi que os agentes que tivessem um curso técnico de enfermagem ou curso técnico de agente comunitário de saúde mesmo recebessem igual aos técnicos de enfermagem. Então, alguns agentes que fizeram esse curso recebem esse complemento salarial, mas isso entrou como se fosse um benefício, ou seja, mudando a gestão, a qualquer momento, isso pode ser abolido e não dá uma garantia para o profissional. Sem falar que ficamos muitos anos sem ter esse curso de agente comunitário de saúde, nos impossibilitando de nos preparar, também para ganhar esse benefício, mas principalmente para atender a população de uma maneira melhor. Há pouco tempo abriram as inscrições do curso no Politécnico [EPSJV/Fiocruz], mas por incrível que pareça, devido a algumas exigências tanto da gestão quanto próprio edital, nenhum agente comunitário de saúde de Manguinhos está fazendo o curso hoje. Um desses critérios é o tempo de serviço: quem é mais antigo somava pontos para entrar. Eu não pude nem concorrer a uma vaga devido a outro critério da gestão [da saúde do município], que são as metas de visitas. Alguns de nós fomos impossibilitados até de fazer essa inscrição, porque falaram que se a gente fizesse, a clínica [a qual estão vinculados] não daria a carta de liberação para as aulas. E essas metas são impostas, eu tive como comprovar depois que no meu caso houve problema no sistema e parte das minhas visitas caiu depois que virou o mês. Além disso, teve um mês que eu estava de férias e eles pegaram três meses por base, quem bateu a meta nesses três meses poderia fazer a inscrição para tentar concorrer com o estado do Rio de janeiro inteiro a uma das 32 vagas. Foi uma concorrência muito grande. Então, a gente tem essa insatisfação, deveria haver uma reformulação do projeto de formação para ampliar o acesso. Nós que estamos aqui tão perto da Fiocruz não tivemos como participar. O acesso à formação ainda fica muito a desejar.

Comentários

Só corrigindo um equívoco de minha parte, os Agentes que têm o curso técnico de ACS e/ou Téc. de Enfermagem, mesmo com a gratificação, NÃO chegam a se igualar ao piso dos Técnicos de Enfermagem. De qualquer maneira agradeço a oportunidade. É uma enorme satisfação representar nossa categoria.