Como você avalia essa redução no orçamento do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde?
Antes de mais nada, tem uma consequência que deve ser considerada, que é o efeito de desmobilização que esse tipo de corte pode provocar. Nós já tivemos há alguns anos a retirada do nome “Aids” do que seria o programa de Aids. Ele se fundiu no que nós chamamos agora de Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, ou seja, se fundiu com outras doenças. Isso desmobiliza, por colocar a Aids ao lado de outras enfermidades que não têm a mesma relevância social, política ou mesmo epidemiológica. Isso dá uma ideia de que a Aids já está resolvida. Se, para o governo, isso não parece importante, então outros setores do governo, inclusive os níveis estaduais e municipais, podem também se desmobilizar e já vêm se desmobilizando, no sentindo de não empregar os recursos que têm para resolver a Aids. Então, essa questão dos cortes também traz um impacto nesse aspecto, porque temos uma desvalorização de um programa que foi exemplar, se constituiu numa referência internacional pelos excelentes resultados que conseguiu nos anos 1990 e no início dos anos 2000 e que foi uma conquista da sociedade. Então, é triste ver como isso está sendo tratado agora. A gente também se preocupa com as outras patologias, com os cortes na saúde no sentido mais amplo, porque são cortes que podem afetar, por exemplo, a atenção básica, o que pode levar a mais dificuldade de acesso a exames, a emergências de hospitais, a outros diagnósticos que as pessoas com HIV precisam fazer, já que esses cortes na atenção básica podem afetar programas de doenças cardiovasculares, que é um dos problemas frequentemente enfrentados por pessoas vivendo com HIV. Então a gente se preocupa não só com o impacto na Aids, mas com os impactos em geral, que trazem prejuízo para toda a população, mas, em especial, para as pessoas que estão vivendo alguma vulnerabilidade maior ou com alguma condição que necessite mais dos serviços de saúde, como as pessoas com HIV/Aids.
De que forma essa redução impactará diretamente no atendimento aos pacientes?
Parece que haverá cortes na compra de insumos, não sei exatamente em quais. Nós já vivemos uma escassez de preservativos bastante alta, que é um insumo muito importante. Há uma diminuição de compra e quando há uma diminuição no nível de federal, por mais que seja também uma responsabilidade dos níveis estaduais e municipais, o efeito desmobilizador se estende aos outros níveis. Então, por exemplo, no Rio de Janeiro, nossa cota de receber preservativos da prefeitura diminuiu quase pela metade, e também não tem mais gel lubrificante. Acho que o governo federal nem compra mais, e muito menos os municipais e os estaduais. Além da falta de recursos, ainda tem o contexto conservador, porque para essas pessoas conservadoras distribuir gel lubrificante é estimular a licenciosidade, a devassidão. Então pode haver uma diminuição mais radical nisso. E apesar do governo afirmar que não haverá cortes na distribuição de medicação para Aids, não há garantia que não vai faltar. Outra questão é que, aqui no Brasil, nós estamos entrando em atraso na incorporação de inovações de tratamentos e medicamentos, inclusive para a prevenção. Eu não sei nesses insumos como vai ficar a situação dos medicamentos para a prevenção. Nesse momento, a gente usa o Truvada, mas existe um outro medicamento como o Cabotegravir, que é muito importante para um número crescente de pessoas que estão apresentando resistência aos antirretrovirais atuais e também é um medicamento para ser usado na PrEP injetável, a profilaxia pré-exposição. O governo diz que vai incluir esse medicamento no ano que vem, mas frente a esses custos, ao contexto conservador e a esses cortes no campo da Aids, não vemos como isso vai ser feito. Precisamos acender essa luz amarela porque isso é preocupante. Nosso último antirretroviral aqui foi incorporado em 2017. Tem cinco anos. E tem várias combinações inclusive dos antirretrovirais que existem no Brasil, que inclusive, por conta de problema de patentes, nós não temos acesso no país, então nossa lista de medicamentos está cada vez mais restrita e é preocupante frente ao número de pessoas em resistência e, consequentemente, ao número de pessoas em abandono de tratamento.
Como foi o orçamento de 2022? Ele conseguiu suprir toda a demanda dessa área?
A gente nunca sabe direito se, por exemplo, a diminuição no número de preservativos foi por um problema de orçamento ou uma questão política e cultural, ou até religiosa, para alguns. O programa de medicamentos funcionou. A gente tem um contingenciamento de lamivudina, que é um medicamento importante, antigo, barato, que parece ser muito mais relacionado a um problema de compras e aumento rápido da demanda, e talvez, digamos, uma distração de não terem olhado ou previsto esse aumento de demanda mais cedo, que está causando essa questão com a lamivudina. Mas como é um medicamento barato, eu espero que se resolva. Agora, existe um medicamento, o dolutegravir, que é o último medicamento que foi incorporado no nosso protocolo de tratamento. Teve um questionamento, até por nós da sociedade civil, e um processo para a não concessão da patente desse medicamento. Isso foi conseguido, embora não tenhamos a resposta final da Justiça. Mas, a princípio, a decisão é pela não concessão. Isso permitiu, de qualquer maneira, que a indústria nacional pudesse fabricar esse medicamento como genérico, o que diminuiu muito o custo dele, porque fez competição de preço com o medicamento de marca. Como ainda há uma pendência jurídica em relação a concessão dessa patente, a indústria, que é a GlaxoSmithKline (GSK), está recorrendo da decisão da Justiça. Inclusive, ao recorrer, ela pode colocar barreiras para que essa empresa que está fabricando como genérico comercialize com o governo. Dependendo de como fique isso na Justiça, e que o governo só possa comprar o medicamento de marca, pode ser que o preço fique mais alto, e se não há um aumento de orçamento para medicamentos, a gente tem dúvidas se o dinheiro será suficiente.
A rede de atenção a pacientes com HIV no Brasil afirmou, assim como você falou agora sobre a lamivudina, que alguns remédios importantes para o tratamento estão com estoques baixos. Essa redução é um sinal de alerta?
Tem um medicamento chamado Dovato, que foi aprovado agora pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], que é uma combinação da lamivudina, que está em contingenciamento, e do dolutegravir, que está com essa dificuldade legal. Essa é uma combinação que seria muito boa, muito efetiva para adesão das pessoas ao tratamento. Mas com esses obstáculos todos a gente não sabe como vai ficar. E sobre o contingenciamento, a gente já tem recebido relatos de racionamento em vários estados. E claro, como é um medicamento sempre usado em combinação, em um só comprimido, é sempre essa combinação que fica com problemas. Essa justificativa sobre o aumento da demanda para a falta de produtos é complicada porque esse aumento era previsível. Porque tem um aumento no número de casos, tem um aumento reprimido por conta da pandemia [de Covid-19], casos que passaram a ser diagnosticados, pessoas que começaram a se tratar, a própria aprovação do Dovato, que utiliza a lamivudina... Tudo isso estava previsto no horizonte, mas parece que não foi bem contabilizado por eles. Aí o medicamento falta. Em geral, os episódios de falta de medicamento têm sido por falha no planejamento.
Qual o risco ao substituírem o termo “Aids” por “doença avançada” em documentos, materiais e apresentações do Encontro Nacional de Ong, Redes e Movimentos de luta Contra a Aids?
A Aids sempre incomodou e continua incomodando atualmente. Primeiro, pela persistência no número de casos de pessoas mortas. A gente tem ainda de 10 a 11 mil mortes por ano, segundo dados do Ministério da Saúde. Não é um número desprezível. Ela estabilizou, mas para nós, em um patamar alto
A gente se preocupa porque significa um apagamento do nome Aids. E como dizia Freud, “O que não tem nome não existe”. É uma ideia de apagamento mesmo, de tirarem a prioridade. A Aids sempre incomodou e continua incomodando atualmente. Primeiro, pela persistência no número de casos de pessoas mortas. A gente tem ainda de 10 a 11 mil mortes por ano, segundo dados do Ministério da Saúde. Não é um número desprezível. Ela estabilizou, mas para nós, em um patamar alto. Segundo que é uma doença que precisa ser trabalhada com prevenção. A via de transmissão sexual atinge muito fortemente a juventude, cada vez mais, então implica também em falar de saúde reprodutiva, saúde sexual, e tudo isso é muito difícil no contexto atual e tende a ficar mais difícil.
Falando sobre investimento nessa área, como você avalia nos dias de hoje a necessidade de campanhas de prevenção?
Não temos visto campanhas de prevenção nesses últimos anos e elas são absolutamente necessárias. As grandes campanhas desapareceram da mídia e é importante, porque no Brasil, estamos tentando implementar a PrEP [Profilaxia Pré-Exposição].Segundo o governo, há medicamentos, que estariam até sendo subutilizados, mas, por outro lado, temos uma população muito ignorante sobre o que é essa profilaxia, até mesmo entre os profissionais de saúde, e com muita dificuldade de aceder a essa possibilidade de prevenção que seria muito importante, já que há um registro de diminuição no uso da camisinha, seja por falta dela, como a gente já mencionou, seja por não se falar mais de camisinha, ou seja, pelo cansaço das pessoas. Então, a PrEP seria também uma alternativa para as pessoas usarem, intercalarem em alguns momentos da vida, mas o que temos no Brasil é um desconhecimento muito grande do que são as formas de prevenção, inclusive também sobre a Profilaxia Pós-Exposição. Claro que as campanhas seriam muito importantes para esclarecer e estimular a ideia de prevenção combinada.