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Entrevista: 
Maria Aparecida Schumaher

'Minha avaliação é de que houve um ganho, porque as feministas conquistaram as ruas, mentes e corações'

Há dois meses milhares de argentinas tomaram as ruas e, por conta de sua mobilização e pressão, foi aprovada na Câmara dos Deputados a legalização do aborto. A Argentina foi pioneira na América Latina na aprovação do casamento homoafetivo, em 2010, e na Lei de Identidade de Gênero, em 2012. O próximo avanço, no entanto, ainda vai ter que esperar. Numa votação apertada realizada nesta semana, no dia 9 de agosto, o Senado argentino rejeitou o projeto que veio da Câmara. Do lado de fora, as ruas de Buenos Aires e de várias cidades brasileiras foram ocupadas por uma onda verde de mulheres militantes. Ao mesmo tempo, entre 6 e 9 de agosto, aqui no Brasil, diversos setores da sociedade, pró e contra a descriminalização do aborto debateram numa Audiência Pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal. Nesta entrevista, Maria Aparecida Schumaher, conhecida como Schuma, fala sobre o resultado da votação e defende que o movimento não pode desanimar. Coordenadora executiva da ONG Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), ela faz também um panorama dos entraves e das lutas pela legalização do aborto e das lutas pela descriminalização na América Latina e Caribe.
Joyce Enzler - EPSJV/Fiocruz | 10/08/2018 15h14 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Qual sua avaliação política sobre o resultado da votação na Argentina?

Claro que num primeiro momento fiquei triste. Estava completamente esperançosa, exatamente porque na Argentina houve uma mobilização esplendorosa da sociedade civil, impulsionada pelo feminismo de lá, de todos os estados, de todos os locais, de todos os tempos. A gente esperava que o Senado da Argentina pudesse ouvir a voz das mulheres, porque, afinal de contas, é sobre o nosso corpo que eles estão legislando e, portanto, deveriam ouvir o posicionamento das mulheres sobre essa realidade. Não ouviram, mas a minha avaliação é de que houve um ganho, porque as feministas conquistaram as ruas, as mentes e os corações, a sociedade argentina, a mídia e mais, conquistaram a solidariedade do feminismo de dezenas de países, que parou no mundo inteiro por algum momento para dizer: ‘Estamos com as Hermanas argentinas’.

E a que você atribui esse resultado?

À organização e à força do feminismo na Argentina. É bom sempre lembrar que elas têm um histórico de movimentação por lá. Há muitos anos elas fazem um encontro de mulheres, que começou com uma iniciativa pequena, mas depois foi crescendo. Não era um evento puxado pelo movimento feminista e elas foram crescendo. Nos últimos anos, chegaram a fazer um encontro com cem mil mulheres. É um país onde há um encontro para discutir uma agenda mínima de prioridades, de luta das mulheres de todas as vertentes, independente de partidos, de coloração, de época, de território. Onde o feminismo estiver instalado, elas se juntam e buscam encontrar ou pelo menos apontar essas prioridades. Então, obviamente, estamos falando de um país muito mais politizado do que o Brasil, em todos os sentidos, e consequentemente, com um movimento feminista muito maior, mais amplo. E essa força que foi para a rua, foi essa força que juntou pessoas de todas as idades, que juntou todas as centrais sindicais, que juntou mulheres de diferentes partidos políticos e, sobretudo, foi essa força que juntou as mulheres autônomas – que são aquelas que estão organizadas em grupos, coletivos, redes diferentes, mas que não se submetem a orientações partidárias.

Mas mesmo com toda essa movimentação, houve a derrota no Senado...

Sim, as Casas Legislativas nem sempre a representação têm a ver com o desejo da sociedade. Então, o Senado, influenciado pela Igreja Católica, pelo fundamentalismo religioso e por um governo que tem uma maioria conservadora, rejeitou a proposta. O resultado não tem a ver com a vontade das mulheres, explicita a satisfação que eles devem a seus apoios conservadores.

Quais são os próximos passos da luta na Argentina?

Elas certamente vão fazer uma análise, uma avaliação e nós já sabemos que esse debate em termos legislativos só pode ser retomado daqui a um ano. Então, cabe ao movimento das mulheres, ao movimento feminista da Argentina, avaliar que prioridade elas vão dar para essa luta agora nos próximos passos, nos próximos tempos.

O que nós mulheres brasileiras podemos aprender com a luta das feministas argentinas?

A forma como elas historicamente têm se organizado. Na Argentina, o Congresso tem 40% da participação de mulheres. Então, foi uma diferença muito apertada. Não é uma diferença como aqui no Brasil, onde nem deputado para votar a nosso favor a gente encontra, com raríssimas exceções. Aprendemos mesmo que o que vale é a gente colocar a nossa força, a nossa energia na rua, é dialogar com a sociedade, é discutir com a sociedade, é explicar para a sociedade que nós não estamos fazendo uma luta em favor do aborto, nós estamos fazendo uma luta em favor do direito das mulheres de decidirem se querem ou não fazer um aborto. É disso que se está falando. Nós estamos aqui e nas ruas numa luta pela nossa autonomia. Não é possível que em pleno século 21, nós mulheres não sejamos donas do nosso desejo, da nossa vontade, do nosso corpo. Isso é uma coisa quase inaceitável. Então, foi isso que a gente aprendeu:  a dialogar, construir em todas as comunidades, em todos os territórios essa conversa com as mulheres, com os jovens para que a gente possa crescer essa onda em favor da autonomia.

O símbolo da luta pela legalização do aborto na Argentina foi o lenço verde. Aqui no Brasil, a cor que mobiliza as mobilizações da pauta feminista é o lilás. Conte um pouco da história da associação dessas cores a lutas feministas pelo mundo.

Em muitos países, especialmente na América Latina e especialmente no Brasil, o lilás é uma cor identificada simbolicamente com a luta feminista. Sobretudo foi uma cor usada pelas feministas francesas ainda na década de 1970, naquela grande movimentação feminista na França, que lembra o que está acontecendo na Argentina hoje. Em 70 aconteceu isso na França. É muito importante as pessoas saberem que a luta pela legalização do aborto não começou nem ontem na Argentina, nem anteontem no Brasil e muito menos na França. Na França, em 1975, elas tiveram o aborto legalizado e a cor dessa grande manifestação que ficou registrada na história foi o lilás. Há quem diga que as mulheres foram comprar os tecidos e o lilás era o que estava lá em liquidação, era o mais barato, e então todo mundo comprou porque estava sem grana. A passeata aconteceu com essa cor e ela acabou virando nosso símbolo. Há quem diga que, como se trata da busca por uma sociedade igualitária, de relações igualitárias de direitos entre homens e mulheres, o lilás se explica porque é a mistura entre rosa e azul. Não dá lilás obviamente, mas tem gente que explica por aí. Então, há muitas explicações diferenciadas, mas o importante de a gente saber é o seguinte: o verde na Argentina, a luta pela legalização do aborto, mais contemporaneamente falando, na Argentina começa com um grupo pequeno de mulheres chamado católicas pelo direito de decidir. E lá no começo da década de 1980, em 1981/83, essas mulheres católicas usavam lencinhos verdes. As mães da Praça de Maio também usam um lenço branco - na Argentina, parece que esse é um símbolo muito usado pelas mulheres.

A primeira manifestação do feminismo brasileiro de que a gente tem noticia foi em 1980, quando estouraram uma clínica clandestina de aborto em Jacarepaguá (RJ) e prenderam duas mulheres. Aí esse assunto tomou a capa de todos os jornais, as feministas cariocas saíram às ruas para protestar contra a prisão das mulheres e reivindicar o direito ao aborto. E elas já saíram com a cor que a gente já estava usando aqui, que era o lilás. Historicamente, lilás, para nós brasileiras, tem a ver não só com a luta feminista, mas com a luta do aborto. E vale lembrar que aqui no Brasil a gente acrescentou um detalhe nesses últimos tempos, que é muito simbólico, muito lindo, que é o símbolo agora da nossa campanha ou pelo menos da campanha de Articulação das Mulheres Brasileiras e da Frente contra a Criminalização e pela Legalização do Aborto, que reúne muitas organizações, que é esse galhinho de arruda.  Não só porque a arruda dá sorte, mas porque é um pouco abortiva também.

Alguns países - como Uruguai, Cuba e Guiana - conseguiram aprovar a legalização do aborto, mas esse continente ainda é o que concentra os países com leis mais restritivas sobre esse tema. Se acordo com o site El Pais, em seis países da América Latina e Caribe - El Salvador, Honduras, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname -, a interrupção voluntaria da gravidez é proibida, não havendo exceção nem para salvar a vida da mulher. Na Europa o aborto é legalizado em quase todo o continente.  Como você explica esse atraso conservador da América Latina em relação a esse tema? Isso também se expressa em relação às outras pautas da luta feminista?

No mundo todo há contextos políticos diferenciados. Na América Latina, em determinados países, há uma luta acirrada para acesso a direitos básicos, como viver, comer, morar... Tem uma força do capitalismo sobre os países da América Latina e do Caribe que veio com muita força principalmente no final dos anos 1980. E isso faz com que não se saiba bem o que se acode primeiro aqui, qual a luta prioritária. Você tem que sair correndo atrás do mínimo, que deve ser cumprido, como um atendimento à saúde com dignidade. Nós temos uma realidade na América Latina muito diferente da Europa. Elas estão em outro estágio da luta. Nós, infelizmente, ainda estamos aqui lutando contra o feminicídio, contra o lesbocídio, contra o racismo... Nós temos tantas questões para enfrentar que o aborto, que é uma questão de maior importância da vida, infelizmente entra nessa lista de problemas gravíssimos que a gente precisa solucionar. E não há tanta energia para essa resistência.

Qual a diferença entre legalização e descriminalização no caso do aborto?

Descriminalizar é fazer com que o aborto deixe de ser crime porque hoje, no código penal, o aborto é considerado crime.  Descriminalizar é retirar do código penal dois artigos que dizem que uma mulher que pratica o aborto está cometendo um crime.  Temos três casos que a gente chama de aborto legal. Mas não existe aborto legal no Brasil.  A gente deveria dizer que existe aborto não punível, que é o caso de estupro, de risco de vida da mãe e de fetos anencéfalos. E o que é legalizar? É fazer do aborto um direito das mulheres, é obrigar o Estado a garantir esse direito a todos por meio de políticas de assistência à saúde reprodutiva, de forma que seja pública e gratuita. É uma diferença bastante fundamental.  Claro que despenalizar já é um passo muito grande, a mulher que praticar o aborto não será presa. Mas ela vai ter que fazer por si própria, ou com as suas próprias condições, o que faz com que as mulheres empobrecidas deste país, as mulheres sem condições financeiras, as mulheres da periferia continuem sem o amparo do Estado diante dessa decisão. É por isso que a luta da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Frente Nacional pela Legalização do Aborto é pela legalização. Claro que nós estamos juntas nesse momento da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental]. Foi uma semana muito vitoriosa para nós, feministas brasileiras, e estivemos lá [no STF] porque já é um passo muito importante conseguir a descriminalização. Mas a nossa meta final obviamente é a legalização.

A luta contra a criminalização do aborto mobiliza profissionais e pesquisadores da área da saúde com a defesa de que se trata de um tema de saúde pública e não moral ou religioso. Por quê? Quais são os números de mortes e agravos relativos ao aborto que fazem dele um tema de saúde pública no Brasil?

Obviamente que foi contundente que a grande maioria das falas no Supremo Tribunal Federal, nesses primeiros dias de agosto, era unânime em dizer que o aborto é uma questão de saúde pública, que tem a ver com as sequelas, que o não acolhimento por parte do Estado provoca nas mulheres. Tem um dado que eu acho que é do DataSUS de que, entre 1996 e 2015, 1699 mulheres de todas as idades morreram declaradamente em razão de aborto, espontâneo ou induzido, o que pode indicar uma ausência de preparação técnica dos profissionais de saúde para a realização do procedimento nos casos do chamado aborto espontâneo. Ou pode indicar também que o fato de ser considerado ilegal cria um estigma que acaba permeando também essas relações de atendimento em que a mulher está em uma situação de desvantagem. Há toda uma discussão, uma controvérsia sobre o número, quantas mil mulheres realizam aborto por ano. Mas os próprios registros do Ministério da Saúde, que foram disponibilizados nessa audiência pública no STF, na última sexta-feira, mostram que é um número exorbitante de casos de abortamento no país. É inegável a importância de enfrentar essa situação. São quase 1700 mulheres. É muita gente - e isso o que é declarado -, porque todo mundo sabe que essa notificação não é absolutamente verdadeira porque, uma vez que é crime, a pessoa não vai ficar declarando que havia uma prática de aborto nesse processo.

Quais são as medidas que deveriam ser tomadas no âmbito da saúde pública para se evitar essas mortes além da luta pela legalização do aborto?

O melhor caminho para o livre exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos é através do acesso à prevenção e ao planejamento reprodutivo de forma ampla e democrática. Em outras palavras, nós estamos dizendo que tem que ser atacada a questão da educação sexual nas escolas - a educação sexual laica, óbvio. É preciso que as meninas e meninos comecem a entender a questão da sexualidade e da responsabilidade, porque a prevenção, na nossa opinião, é o melhor caminho nesse momento.

No Brasil e na Argentina, quais são os grupos que têm se mobilizado e exercido influência junto ao Estado para não mudar a legislação em relação ao aborto?

Tanto aqui quanto lá, a grande maioria são influências religiosas, tanto da igreja católica como das igrejas neopentecostais, que através das bancadas religiosas têm operado de forma contrária à pauta das mulheres em geral. O aborto tem sido prato especial, cardápio especial dessas bancadas religiosas. Na Argentina tem força maior, obviamente, a religião católica uma vez que o papa vem de lá. Eu acho que pode ter influenciado a não aprovação pelo Senado o fato de o papa ser da Argentina. Porque aprovar o aborto na Argentina, simbolicamente, tem um peso enorme, tem imensas consequências políticas favoráveis às mulheres. Então, eu acho que teve ali uma conjunção de forças internacionais religiosas.  Mas aqui também não deixa de ser a força da igreja católica, que usa a fé dos seus cristãos, especialmente das mulheres, e a força das igrejas neopentecostais, que usam também as mulheres.  Eu chamo de usar porque pesquisas já mostraram que  79% das mulheres que já praticaram o aborto no Brasil têm alguma ligação religiosa. Então, é uma hipocrisia imensa. Por isso, penso que a nossa saída é com educação, com conversa, com politização, com respeito.  A gente tem que respeitar todas as pessoas que são contrárias ao aborto, seja pela sua fé, seja por desinformação, por ignorância. A gente tem que respeitar essas pessoas, porque nós não queremos obrigar as mulheres a fazerem um aborto, nós queremos é que a opinião de cada um não seja uma imposição para outras mulheres. É isso que vale a nossa luta. Muitas mulheres ficam assustadas achando que a aproximação com o feminismo e com essa pauta vai colocá-las na parede, vai obrigá-las a tomar uma outra posição.  Não é isso, não é verdade, nunca foi isso. O que nós queremos é que cada mulher, não importa de onde venha ou onde esteja nesse momento, tenha o direito de escolher diante de uma gravidez não planejada. Ela pode escolher mesmo assim levar essa gravidez adiante: é problema dela, alegria dela, responsabilidade dela. Outras, frente a uma gravidez indesejada, seja qual for o motivo, não querem levar adiante e têm o direito de tomar essa decisão. E o Estado tem o dever de prover serviços dignos de acolhimento dessa decisão. Aí reside o porquê na nossa defesa pela legalização, para que a mulher possa ser acolhida pelo serviço de saúde.

Além de todos esses problemas graves de saúde na América Latina você acha que esse peso religioso também influencia em outros países, além do Brasil e Argentina?

O peso religioso na América Central é muito pior do que aqui. Por exemplo, na Nicarágua e em El Salvador, a lei punitiva do aborto é horrível, é uma lei completamente execrável contra as mulheres. Nos dois países não é permitido o aborto em nenhuma circunstância e se o aborto acontecer, as mulheres podem ser condenadas a até 35 anos de prisão. Há várias mulheres presas na Nicarágua e isso é uma tortura contra as mulheres, além de desumanidade. A sensação que eu tenho é de que os homens, e também algumas mulheres que defendem esse tipo de lei, odeiam as mulheres, eu acho que é uma forma de, a conta-gotas, acabar com a humanidade das mulheres.Essa mistura do Estado com religião nunca na vida deu certo e nós temos que ficar muito atentas a isso. O Estado é laico, religião faz parte do íntimo das pessoas, da fé de cada um. Eu não sei quando houve esse revés que os políticos do Brasil passaram ausar e abusar da fé para se elegerem. É isso que eles fazem: colocam a pauta do aborto como o seu cardápio preferido para enganar especialmente as mulheres menos esclarecidas.

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Comentários

Adorei a entrevista. Nossa luta é constante. Mulheres avante sempre. Uma puxa a outra.