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Entrevista: 
Simone Ferreira

'Não existe processo assistencial que não seja suportado antes por processos administrativos'

Nessas últimas semanas, mostramos a vocês, leitores, a importância de diferentes trabalhadores técnicos no combate ao novo coronavírus. Hoje, o Portal EPSJV ressalta a relevância do trabalho do Técnico em Gerência em Saúde, um profissional que muitas vezes não é lembrado, já que desenvolve atividades administrativas. Mas sem ele, garante a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Simone Ferreira, os serviços de saúde não funcionariam.
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 14/04/2020 13h38 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Qual papel do Técnico em Gerência em Saúde?

Quando pensamos na atuação do Técnico em Gerência nos serviços de saúde, estamos falando do trabalhador de saúde de nível médio que desenvolve ações de cunho administrativo. A gente tem uma confusão entre a função desse técnico com o trabalhador administrativo, que é formado em serviço. Majoritariamente, onde é que a gente encontra esse trabalhador? Na área de almoxarifado, compras, na parte de abastecimento, nos serviços administrativos do centro cirúrgico, ambulatório, serviço de apoio ao diagnóstico. Esse técnico tem, por exemplo, formação específica para a parte de financiamento e compras, para a parte de logística de almoxarifado. E ainda formação para a parte de abastecimento na área de farmácia, que também é um campo de estágio. Ele pode atuar no núcleo interno de regulação, ou procedendo ao processo de internação, com a parte de documentação médica e de registro nos sistemas de informação.

Mas esse trabalhador acaba sendo pouco lembrado quando se pensa no funcionamento do sistema de saúde. A que se deve isso?

Há uma certa invisibilidade deste profissional. E eu diria que dois fatores contribuem para isso. O primeiro é que as instituições públicas e as empresas privadas de saúde no país ainda não reconhecem as competências específicas da gestão em saúde no nível técnico. Daí a sua ausência no CBO - código brasileiro de ocupação. E o segundo fator é que, dessa forma, esses trabalhadores são contratados para os serviços de saúde, através de concursos públicos ou mesmo contratos de terceirização, como trabalhadores de serviços administrativos, seja como técnico ou auxiliar administrativo.

Dados do CNES/Datsus [Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde] indicam que somente no estado do Rio de Janeiro há aproximadamente 12 mil trabalhadores de serviços administrativos em unidades hospitalares.

Quando pensamos nos serviços de saúde, o que percebemos são as atividades finalísticas, de cunho assistencial, prestadas diretamente à população usuária: consultas, exames e internações. Mas para que essas ações aconteçam, é necessário que um conjunto de processos ocorram. Imagine uma linha de produção, onde os processos são interdependentes. Assim também é a produção do cuidado. Vamos pensar, por exemplo, no atendimento a um paciente internado. Para que esta atividade se efetive, é preciso que um conjunto de outros processos aconteça – compras, abastecimento, informação, hotelaria, arquivo e estatística, regulação de leitos, nutrição, exames laboratoriais, farmácia e outros mais. Em todos esses processos há trabalhadores administrativos, que possuem um conjunto de conhecimentos requeridos ao cargo. Conhecimentos e habilidades adquiridos formalmente através dos cursos ofertados pelas escolas técnicas do SUS e outras, mas também na prática profissional cotidiana.

É importante dizer que os processos administrativos perpassam toda a organização e afetam diretamente a qualidade final do cuidado. Neste sentido temos atuado na formação de jovens e de trabalhadores para a qualificação desses processos.

Como a atuação desse técnico contribui em um momento como esse de pandemia por coronavírus?

Quando nos remetemos ao trabalho desenvolvido neste momento de pandemia por coronavírus, eu diria que esse trabalhador não está distante do cotidiano vivido nas unidades. Infelizmente, o cenário de superlotação das emergências, desabastecimento das unidades, equipes incompletas, equipamentos sem manutenção, leitos fechados e população desassistida faz parte do trabalho cotidiano dos trabalhadores e da população que necessita dos serviços de saúde e representa ainda desafios permanentes para o nosso sistema de saúde. Falamos de dificuldades do sistema de saúde decorrentes do seu histórico subfinanciamento e das medidas de ajuste fiscal, que colocam sob ameaça o próprio direito à saúde.

Uma fala que está sendo dita: nós estamos reservando leito para a covid-19. Beleza, mas o que eu estou fazendo com o usuário que é paciente oncológico? Com o usuário que está enfartando? Na verdade, os serviços de saúde permanecem atuando para as demandas. Então, vale destacar que o trabalho desse técnico é garantir que o hospital funcione. E não é, necessariamente, porque ele está cuidando da compra de capote. Não é isso. Mas ele está comprando a aspirina que o hospital precisa, está garantindo que o funcionamento do serviço de rouparia, de hotelaria e tudo mais funcione.

Porque existem processos que são interligados e a manutenção desses processos é que permite o enfretamento da epidemia. No momento em que qualquer um desses processos para de funcionar, eu tenho um buraco, um gargalo, uma parada no processo assistencial.

Não existe processo assistencial que não seja suportado antes por processos administrativos. A importância do Técnico em Gerência está aí.

E esse Técnico está capacitado para essa pandemia?

Os trabalhadores da saúde se encontram na primeira linha de enfrentamento da epidemia, exercendo as funções correspondentes aos postos de trabalho que ocupam. De toda maneira, o contexto da epidemia traz consigo novas circunstâncias, envolve a introdução de novos procedimentos, de sorte que, diria, nenhum de nós estava realmente preparado.

Tem se observado o justo reconhecimento dos trabalhadores da saúde que estão atuando no enfrentamento da epidemia de coronavírus. Mas considero necessário ampliar o escopo da compreensão destas equipes. Como disse anteriormente, os trabalhadores administrativos, assim como outros, participam direta ou indiretamente da produção do cuidado. Toda atividade de saúde contém uma faceta ou um tangenciamento com uma atividade administrativa.

Com a epidemia, a necessidade de coordenação das ações tem colocado luz sobre essas atividades. Questões relativas aos processos de compras e abastecimento, programação de insumos, registro de informações, têm sido objeto da mídia televisionada e têm colocado a importância de processos administrativos para o sistema de saúde, destacadamente para a rede hospitalar.

Os profissionais da assistência estão recebendo capacitação para lidar com as emergências por Covid-19. O mesmo, entretanto, não tem ocorrido com os trabalhadores dos setores administrativos. Acaba que, neste momento, esse profissional é tão informado ou desinformado quanto o restante da população. É indiscutível a necessidade e prioridade de atualização dos profissionais que estão lidando diretamente com as pessoas infectadas. Mas os demais trabalhadores de saúde, que atuam no ambiente hospitalar, também necessitam dessa formação. E essa oferta hoje não ocorre de forma regular, não há até o momento uma política horizontal adotada por todas as unidades de saúde. Cabe dizer que esses trabalhadores são reconhecidos na sua família, na sua comunidade como pessoas portadoras de informação, que poderiam orientar em casos de dúvidas.

O que temos constatado pela fala de alunos e ex-alunos é que esses trabalhadores, em sua maioria, ainda não receberam capacitações específicas nem informações suficientes. Eles não sabem qual unidade procurar em caso de suspeita de coronavírus e se sentem desprotegidos em seus locais de trabalho - estando eles também sob os riscos do ambiente hospitalar. Até então, o risco reconhecido associado ao trabalho administrativo é o risco ergonômico, mas no momento em que as medidas de contenção da propagação do vírus estão associadas à lavagem das mãos, ao isolamento, à redução da circulação de pessoas e ao uso de máscaras para todos, é preciso assegurar que esse conjunto de trabalhadores receba a devida atenção.

O que os estudantes aprendem no Curso Técnico em Gerência em Saúde da Escola Politécnica?

O Curso de Gerência em Saúde é um curso técnico de quatro anos de duração. Sua grade curricular está organizada a partir dos eixos temáticos de Administração e Planejamento em Serviços de Saúde; Produção e Disseminação de Informação em Saúde; Gestão em Saúde e Cidadania; E Práxis de Gestão em Saúde, além do estágio curricular. Como está dito no nosso Plano de Curso, espera-se que o técnico de Gerência em Saúde, ao final da formação, seja capaz de integrar e interagir no espaço administrativo dos serviços de saúde, potencializando as mudanças que seguem com a construção do SUS, e com as inovações referentes às ações de coordenação e gerência de unidades de saúde.

 

Veja tambem:

Lara Vitória D'Almeida, nossa ex-aluna do Curso Técnico em Gerência em Saúde integrado ao ensino médio da EPSJV/Fiocruz, fala nesse vídeo sobre o papel do Técnico em Gerência. Lara atua como técnica no Observatório de Política e Gestão Hospitalar da Fiocruz. Assista aqui!