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Entrevista: 
Juliana Mesquita

'Os chamados 'hospitais de excelência' vêm recebendo incentivos públicos para atuar na formação de trabalhadores do SUS'

Nesta entrevista, a ex-aluna do mestrado em educação profissional em saúde da EPSJV/Fiocruz fala sobre o que descobriu analisando os cadernos educacionais produzidos pelo Hospital Sírio Libanês
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 17/07/2019 15h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

A formação em saúde sob uma lógica privatista, ainda que dentro do contexto do SUS, tende a produzir concepções de ser humano, educação, saúde e sociedade que passam longe da valorização do Sistema Único e dos serviços públicos. Essa foi a conclusão de Juliana Mesquita na dissertação apresentada no mestrado em educação profissional em saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A especialista em políticas e gestão da saúde da Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais (ESP-MG)  analisou na sua pesquisa o material produzido pelo Hospital Sírio Libanês para a formação de trabalhadores do SUS. O estudo realizado em uma das unidades pertencentes ao grupo de instituições habilitadas pelo Ministério da Saúde como parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS, o Proadi-SUS, identificou que o material traz metodologias inovadoras, porém acaba por “atender mais às necessidades de mercado do que às necessidades de saúde da população”.

“Os trabalhadores são formados a partir da lógica de mercado, confluindo para a reprodução da hegemonia capitalista que favorece a acumulação de capital, no lugar de propiciar uma formação emancipatória, que possibilite a transformação da realidade social e a defesa do SUS”, resume ela nesta entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz. Juliana conclui que a privatização da formação dos trabalhadores do SUS é, consequentemente, apontada como a melhor solução para a eficiência e a eficácia da gestão pública.

Qual foi o objetivo da pesquisa?

Minha pesquisa analisou o material educacional produzido pelo Hospital Sírio Libanês para a formação de trabalhadores do SUS.  A hipótese da pesquisa é que a privatização da formação dos trabalhadores do SUS é apontada como a melhor solução para a eficiência e a eficácia da gestão pública, considerando, entre outras questões, o discurso hegemônico de incapacidade do Estado na garantia dessa formação. Dessa maneira, a formação em saúde sob a base privatista, mesmo que inserida no SUS e considerando alguns dos pressupostos deste sistema, tende a produzir concepções de ser humano, educação, saúde e sociedade inerentes a esta lógica. A partir da análise de discurso, busquei interpretar os sentidos e significados produzidos nos textos dos cadernos de curso dessa instituição para confirmar essa hipótese.

Em sua pesquisa, você nota um processo de privatização da saúde. Como observa isso?

Entendo a privatização de uma forma muito mais ampla, que não se limita apenas à ação de se vender um bem público para uma empresa privada, que é como muitos entendem o processo. Quando o Estado abdica de executar diretamente serviços públicos, através do incentivo a instituições privadas por meio de isenções fiscais ou injeção de recursos públicos por exemplo, isso também é privatização. No caso da saúde, podemos citar a gestão privada de unidades de saúde públicas – os chamados “novos modelos de gestão”: organizações sociais (OSs), organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) e fundações estatais de direito privado; e a oferta de ações educacionais financiadas com recursos públicos por instituições privadas. A lógica da privatização maneja a narrativa de que o setor privado alivia o setor público, é mais eficiente e tem a capacidade e a velocidade necessárias para promover inovação. Trata-se de uma ideia hegemônica de ineficiência do Estado, que tem por traz a visão de saúde como mercadoria, um bem a ser consumido. E, por isso, abre espaço para a acumulação capitalista.

Como você observa essa privatização na formação em saúde?

A formação de trabalhadores para o SUS é desenvolvida em diversos níveis de ensino e instituições, tanto públicas quanto privadas. Portanto, é um cenário que se apresenta hoje no Brasil. Temos instituições privadas sendo financiadas pelo Estado para ofertar ações educacionais para os trabalhadores do SUS. A partir desse processo privatizante, observamos um aumento significativo da participação privada na disputa por recursos financeiros para a formação dos trabalhadores do SUS. Mesmo atuando nos serviços públicos, os trabalhadores são formados a partir da lógica de mercado, confluindo para a reprodução da hegemonia capitalista que favorece a acumulação de capital, em lugar de passarem por processos formativos  emancipatórios, que possibilitem a transformação da realidade social e promovam a defesa do SUS.

Na formação de nível médio, grande parte dos trabalhadores técnicos em enfermagem e saúde bucal, por exemplo, é formada por instituições privadas. Essas instituições, por sua vez, apresentam a sua visão de sociedade. Esses trabalhadores não são formados para o atendimento nos serviços públicos, mas para o mercado. E mesmo quando realizadas por instituições públicas, pesquisas de diversos autores têm apontado que essas formações também são voltadas para o mercado de trabalho, e não para uma saúde pública de qualidade.

Dentre as instituições privadas que vêm atuando na formação de trabalhadores para o SUS, existe um grupo muito expressivo e atuante junto ao fomento e à discussão das políticas de saúde, que são os "hospitais de excelência".

O que são os hospitais de excelência?

Dentro do conjunto das instituições privadas, existe um tipo de entidade filantrópica sem fins lucrativos que é diverso das Santas Casas tanto na sua origem, quanto no que se refere às suas formas de sustentação. São os hospitais de excelência.

Esse termo é utilizado para identificar cinco instituições habilitadas pelo Ministério da Saúde que cumprem determinados requisitos para a apresentação de projetos de apoio ao SUS, em troca de isenção de contribuições sociais devidas à União. São elas: Hospital Albert Einstein; Hospital do Coração; Hospital Alemão Oswaldo Cruz; Hospital Moinhos de Vento e o Hospital Sírio-Libanês, que é o objeto da minha pesquisa.

A origem disso é a lei 12.101, de 2009, que dispõe sobre a concessão do certificado de entidade beneficente de assistência social em saúde – conhecido pela sigla Cebas-Saúde –, que atribuiu o termo “excelência” para as instituições que participam dos benefícios de isenção. A partir daí, para ser considerada beneficente e fazer jus à certificação, a entidade de saúde de reconhecida excelência deveria comprovar o cumprimento de metas estabelecidas em convênio, celebrado com o gestor local do SUS. E ofertar um percentual mínimo de 60% de atendimentos via SUS, considerando-se o somatório das internações e dos atendimentos ambulatoriais. Contudo, essa lei também estabeleceu umcritério alternativo para as instituições filantrópicas habilitadas como de excelência: a possibilidade de substituição da obrigatoriedade de 60% da sua atividade assistencial prestada ao SUS pela opção de se integrar ao Proadi-SUS, que é o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS. A partir desse programa, os hospitais passaram a apresentar projetos considerados prioritários como, por exemplo, estudos de avaliação e incorporação de tecnologia,pesquisas de interesse público em saúde, desenvolvimento de técnicas e operação de gestão em serviços de saúde. E também a capacitação de recursos humanos.

Nesse cenário, os chamados "hospitais de excelência" vêm recebendo diversos incentivos para atuar junto ao SUS. Inclusive na formação de trabalhadores do SUS, fato que aponta para uma privatização dos processos formativos no âmbito do Sistema Único, já que, segundo a Constituição Federal de 1988,  o próprio SUS deveria ser o ordenador da formação de seus trabalhadores. Mas isto vem sendo repassado para instituições privadas. A partir daí,  abre-se a necessidade de discutir as determinações da educação sob a lógica do capital para compreendermos, mais profundamente, a estruturação da formação em saúde.

Então a qualificação dos trabalhadores já inseridos no SUS tem se apresentado como um novo campo a ser explorado pelas entidades privadas?

Na verdade, isso sempre existiu. Só que, a partir do momento em que o capitalismo vai se modificando e se adaptando às novas formas de produção, a qualificação dos trabalhadores também é modificada, e tem sido objeto de interesse de instituições que, antes, não eram responsáveis pela formação. Mas por causa dos incentivos do governo na área, elas começam também a atuar, o que acaba por fazer da formação em saúde e, especialmente, dos trabalhadores já atuantes no SUS, um novo campo de geração de capital.

Qual é a concepção de formação ofertada pelo Hospital Sírio Libanês, objeto do seu estudo? Está em consonância com os princípios e diretrizes do SUS?

Eu analisei oito cadernos de cursos de pós-graduação lato e stricto sensu disponíveis no site do Sírio. Neles, pudemos observar que mesmo sendo cursos ofertados para trabalhadores do SUS, ele não é apresentado nem valorizado plenamente como um sistema universal e integral, que busca garantir a promoção, prevenção e proteção à saúde dos usuários. O material tampouco considera os pressupostos da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), que orienta a formação dos trabalhadores do Sistema Único.

Os cadernos são orientados pela pedagogia das competências, entendendo a noção de competência como “capacidade de” e não como construção cognitiva. A concepção de sociedade é orientada pela mercadoria, pela valorização da saúde como um bem a ser adquirido e não como um direito. Uma sociedade que precisa de trabalhadores eficientes, eficazes e proativos para aprender ao longo da vida. Nesse sentido, o aprender ao longo da vida significa de adequar às necessidades do mundo do trabalho capitalista, por meio de uma busca individual.

O material que analisei mistura a lógica do construtivismo com a ideia de teoria de capital humano. Trata-se de uma concepção de formação muito individualista. O material fala em diálogo, mas traz a ideia de “competência dialógica”, o que parece ser uma tentativa de pegar a questão da competência e aproximá-la da ideia de uma pedagogia progressista. Não temos elementos para afirmar como isso é aplicado no dia a dia do curso. Mas, a partir da análise do material, constatei que o aluno é enquadrado como alguém que busca o conhecimento e tem que se qualificar o tempo todo para atender às necessidades de mudanças da sociedade. Não é algo colocado em termos mais coletivos, com um sentido de transformação da sociedade. É [uma formação] muito mais voltada para questões tecnicistas. O estudante tem que “aprender a aprender” porque o mundo do trabalho se modifica e se transforma o tempo todo. O que esses hospitais ofertam é um aprendizado voltado para atender às necessidades do mercado, e não para uma visão mais crítica e ampliada acerca do trabalho.

O que você encontrou na análise do material?

O material apresenta diversas sinonímias, ou seja, palavras diferentes com uma mesma ideia. Por exemplo, as palavras “pessoa”, “paciente”, “usuário”, que podem ter diversas interpretações, são utilizadas como sinônimos – o que é uma questão importante, pois para a análise de discurso as denominações produzem significações e induzem maneiras diferentes de olhar um objeto ou compreender e construir a realidade.

A gente também observa no material diversas paráfrases, que é a reformulação ou troca de palavras ou expressões, mantendo uma ideia. Por exemplo: “consciência crítica” sendo usada como a ideia de “responsabilização do trabalhador”. O material diz que o trabalhador, a partir do momento que cria consciência crítica, se autorresponsabiliza pelos processos de trabalho.

Na análise feita na pesquisa, você aponta quatro processos discursivos ideológicos. Quais são eles?

O primeiro seria a legitimação da ‘pedagogia das competências’ como estruturante dos cadernos de curso. Isso reforça os aspectos individualizantes e neotecnicistas típicas do capitalismo atual. Há uma tendência de se aproximar a ideia da ‘pedagogia das competências’ das pedagogias mais progressistas, como a defendida por Paulo Freire. Eles citam muito o educador. Entretanto, não sabemos o quanto esta aproximação se reflete na operacionalização da ação pedagógica.

O segundo processo discursivo ideológico que está presente no material é a concepção mercantil da saúde, com uso de expressões como “agregar valor”, “agregação de valor à saúde”. Isso dá ideia de que a saúde é um objeto, que é um bem que precisa ser comprado. Na sociedade capitalista, esse valor é sempre entendido no plano econômico. Então, é a ideia de se valorizar a saúde para que ela seja comprada. Ela é um bem econômico que precisa ser adquirido.

Outro ponto observado, o terceiro processo, diz respeito ao fetiche pelo gerencialismo na solução dos problemas do SUS. O material destaca ferramentas e procedimentos da nova gestão pública, transpostos do privado para o público, reforçando um discurso tecnicista, sem valorizar o território, sem olhar as questões epidemiológicas do território, aplicando essas ferramentas gerenciais, de forma automática, sem adequá-las à realidade social no qual o SUS se insere.

E o quarto processo discursivo e ideológico presente nos materiais é o apagamento do SUS em sua forma social, ou seja, os cursos não tomam como referência o contexto social no qual os trabalhadores vão atuar.

Qais são os problemas encontrados nesse material?

Como são cursos ofertados com recursos públicos, expressões importantes para o SUS, como “integralidade”, “ética democrática”, “cidadania” e “participação da comunidade” aparecem também no caderno – embora a gente não saiba se é uma forma de justificar a manutenção da instituição como formadora dos trabalhadores. Mas os materiais não tomam como referência o contexto social em que os alunos irão atuar. São focados em macroproblemas do SUS, colocados nos cadernos de maneira generalista, como por exemplo: “atenção básica não exerce plenamente o papel de ordenadora da rede de atenção e coordenadora do cuidado integral”. E as ferramentas de gestão são apontadas como solução para resolver os problemas do sistema. O material aponta os macroproblemas descontextualizados da realidade social. Quem lê, automaticamente, já tem a ideia de que “o SUS é ruim”, que “o SUS precisa ser privatizado”, que “o SUS é para pobre”. Ou seja, o discente não se conscientiza sobre a importância de que o SUS é uma construção social, garantida na Constituição.

Como conclusão de pesquisa, a gente observa que os benefícios da formação não são direcionados para a população no geral, tanto por esta não ser atendida em hospitais considerados de ponta, quanto por não receber, nos serviços de saúde, profissionais realmente qualificados e engajados com a saúde pública e com o SUS.

Comentários

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