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Entrevista: 
Veriano Terto

'Pode parecer que a Aids é um problema controlado, quando não é'

O mês de dezembro é marcado pela campanha nacional de prevenção e conscientização sobre o vírus HIV e a aids, conhecida como Dezembro Vermelho. A iniciativa tem como referência o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, que foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1988. No entanto, o compromisso global com essa luta tem sido desafiado nos últimos anos, quando ataques aos direitos humanos impactaram diretamente as políticas de saúde. Governos conservadores – como o de Jair Bolsonaro, em 2022, e o de Donald Trump, em 2025 – promoveram cortes em programas de distribuição de medicamentos e de enfrentamento à epidemia. Em contrapartida, políticas sociais podem ajudar a reduzir as infecções e mortes. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aponta que o programa Bolsa Família diminuiu de forma significativa os casos e as mortes por aids entre mulheres pobres no Brasil: a queda foi de 47% na incidência e de 55% na mortalidade entre filhas de beneficiárias; e entre as mães, a redução foi de 42% e 43%, respectivamente. “Epidemias são, além de fenômenos clínicos, fenômenos políticos, sociais e culturais”, afirma Veriano Terto, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). Nesta entrevista, ele analisa o cenário das políticas públicas, destacando os avanços e alertas no enfrentamento ao vírus e à doença.
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 26/11/2025 15h51 - Atualizado em 09/12/2025 16h03

Ao longo das décadas, o tratamento e a prevenção da aids avançaram muito, mas ainda persistem desigualdades, preconceitos e estigmas. Como você avalia essa trajetória desde o início da epidemia de HIV?

Estamos falando de quase 40 anos de história da aids e pelo menos 37 da instauração do Dia Mundial de Luta Contra a Aids, que teve o primeiro em 1988. Uma iniciativa do então Programa Global de HIV, aderida pela grande maioria dos países que compõem a ONU.
A aids trouxe um impacto muito violento, muito grande na nossa cultura, na chamada cultura ocidental cristã e no mundo inteiro como um todo. Depois de anos do advento dos antibióticos, que podem controlar uma grande parte — se não a totalidade — das infecções sexualmente transmissíveis, pelo menos as mais conhecidas, como sífilis e gonorreia, a gente tem o advento de uma doença em forma pandêmica, no mundo inteiro, que é a aids. Justamente por transmissão sexual e sanguínea.

O sangue tem uma série de significados culturais, sociais e religiosos em uma grande parte do Ocidente, mas também em outras culturas no mundo. É uma doença que mexe com o imaginário sexual, mítico e religioso de uma maneira muito profunda e cultural. Nesse sentido, é uma doença fortemente estigmatizada, porque afetou, e afeta, primeiramente, grupos sociais historicamente marginalizados, como a população LGBT+, usuários de drogas (principalmente aqueles que usam drogas injetáveis) e prostitutas. E a aids veio reforçar esse estigma.

Ao mesmo tempo, ela contribuiu para ressignificar as identidades sociais desses grupos, que passaram também a ter valores mais relacionados à cidadania, porque reivindicaram para si valores cidadãos, como os direitos humanos: o direito à saúde e o direito à vida. Então, foi importante para ressignificar o lugar político e social dos grupos mais estigmatizados.

Portanto, foi uma epidemia que reforçou essa relação — ou mostrou o quão importante é trabalhar com a dimensão de direitos humanos, de mobilização comunitária — para se enfrentar uma pandemia. A aids tem várias lições nesse sentido, que ficam como uma espécie de reservatório, de biblioteca, um acúmulo muito interessante que inclusive pode ser usado para outras pandemias. Também mostrou o quão importante é trabalhar essa relação de direitos humanos com saúde, porque é através de respostas dentro do marco dos direitos humanos que enfrentamos grandes epidemias, já que as epidemias são, além de fenômenos clínicos, fenômenos políticos, sociais e culturais.

A aids trouxe como lição, até nesse sentido, a importância de trabalhar em parceria com as comunidades diretamente afetadas. É muito importante que as respostas à pandemia incluam de forma ativa não somente um público-alvo, mas também formuladores e cogestores das políticas de enfrentamento para as epidemias.
E os desafios... Apesar dos avanços nos medicamentos, ainda há milhões de pessoas no mundo que não têm acesso aos medicamentos antirretrovirais, que conseguem garantir a vida dos que vivem com HIV. Pode transparecer que a aids é um problema controlado, quando não é. No Brasil, ela ainda mata entre 10 e 11 mil pessoas por ano. Isso mostra que não é um número desprezível em relação à nossa população e aponta a gravidade ainda do problema de saúde pública que enfrentamos, além do aumento no número de casos, principalmente em pessoas mais jovens, a partir do ano passado.

Isso demonstra que são avanços antagônicos. Temos boas lições, boas práticas, bons resultados — mas eles não são suficientes para conseguir alcançar as lacunas que ainda existem. É um paradoxo: ao mesmo tempo em que a gente avança, o estigma permanece.

No mundo, ainda faltam medicamentos, falta prevenção e, as novas tecnologias só alcançam uma população limitada, reduzida — principalmente nas classes médias e em pessoas brancas. São desafios ainda muito grandes que temos pela frente.

No cenário internacional, em janeiro deste ano, os Estados Unidos suspenderam temporariamente todo o financiamento externo para o Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da AIDS (.PEPFAR.). Reino Unido, França, Alemanha e Holanda também anunciaram cortes substanciais para as doações internacionais. Esses países, incluindo os EUA, respondem por mais de 90% do financiamento global do HIV. Na prática, o que essa redução poderia representar?

Esses cortes são feitos, principalmente, nos países africanos e asiáticos, que dependem mais diretamente da ajuda americana para poder conduzir programas de controle e tratamento do HIV. E são esses países que já estão sofrendo mais fortemente as consequências desses cortes.

Nos Estados Unidos são os programas governamentais federais que ajudam as pessoas que não podem comprar ou ter acesso a serviços médicos que serão as mais prejudicadas — ou seja, os mais pobres. É uma situação extremamente grave, preocupante. Tem também o corte de recursos para a Organização Mundial da Saúde (OMS). Enfim, é uma situação muito, muito séria, que a gente não sabe como vai se desenvolver, quais serão os desdobramentos. Mas, em princípio, é muito preocupante.

Não afeta diretamente o Brasil nesse momento, porque nós temos um SUS [Sistema Único de Saúde]. O que nós mais tínhamos de apoio americano eram os recursos para pesquisa em saúde e para alguns programas, que vão sofrer. Dessa forma, grosso modo, o Brasil se torna menos dependente dessa ajuda. Mas outros países mais pobres, sim, vão sofrer.

Nesse contexto, qual é o papel do SUS e da soberania brasileira frente ao HIV e à aids? Quais políticas você destacaria como mais decisivas para reduzir a transmissão no Brasil?

A resposta brasileira, nesse caso, é o programa universal de acesso aos antirretrovirais para todas as pessoas soropositivas ou vivendo com HIV e aids que precisem desses medicamentos, o que é a quase totalidade das pessoas diagnosticadas no país, justamente por causa de uma outra política, que é muito importante: a de testar e tratar as pessoas, principalmente aquelas mais vulneráveis. Então, no Brasil, toda pessoa que testa positivo para o vírus HIV inicia imediatamente o tratamento.

Isso implica numa outra política, que é o tratamento como prevenção. Ou seja, todas as pessoas em tratamento que conseguem zerar, ou seja, que conseguem tornar indetectável a sua carga viral, o que é um número bastante significativo no Brasil, têm o potencial muito reduzido não só de desenvolver a aids, a doença, como também de transmitir o HIV para outras pessoas.

Essas políticas, que envolvem um acesso universal ao tratamento, um acesso precoce e oportuno, têm um impacto muito importante na prevenção do HIV, ou seja, em diminuir a disseminação. Mas isso não caminha isolado do trabalho de prevenção, porque, infelizmente, a questão do estigma e da ignorância sobre o vírus HIV pode implicar no aumento de casos. Já que muita gente, por essas razões, não procura se testar ou se afasta do tratamento.

O grande pilar da resposta brasileira é a questão do acesso aos medicamentos. Mas tem outros aspectos importantes: essa participação da sociedade civil na governança da epidemia é muito importante para criar uma resposta integral, intersetorial (que também é um dos princípios do SUS) além desse aspecto educativo, que atualmente tem ficado muito a desejar, mas que é importante também.

O que é esse aspecto educativo?

O contexto educativo é muito relacionado ao contexto de prevenção: tanto a primária, aquela para as pessoas que não foram infectadas pelo HIV, quanto a prevenção secundária, que é a prevenção para as pessoas que vivem com HIV.

Esse componente educativo de campanhas, que a gente chama de IEC, Informação, Educação e Comunicação sobre o HIV, está bastante prejudicado, porque tem tido poucas campanhas. Há um contexto conservador cada vez mais forte no país, que caminha junto com a ameaça do autoritarismo, e que muitas vezes impede de se falar, de fazer campanhas em escolas, em empresas, de falar sobre sexo, afinal, a aids é o HIV transmitido sexualmente.

Além da falta de recursos, esse contexto conservador impede que muitos gestores, até os bem-intencionados, em municípios e em estados do Brasil, se interessem ou tenham medo de fazer campanhas de prevenção e trabalhar os temas da aids.

Sabemos que o silêncio, no caso da aids, pode ser mortal. Não falar sobre isso significa não prevenção e não tratamento.

É possível relacionar governos conservadores e de extrema direita à redução de políticas e tratamentos para HIV e aids?

No Brasil, a gestão passada, no governo Bolsonaro, se não fosse pelo SUS já estabelecido, a gente teria tido um número de mortes evitáveis muito mais alto. No Brasil, durante a pandemia de covid-19, tivemos uma taxa de mortalidade bem mais alta do que a média mundial, apesar de termos o SUS. E isso se deveu às atitudes de negligência também do governo federal, naquele momento de fake news, de tratamentos equivocados, não baseados em evidências científicas, e que acabaram por afastar muitas pessoas do cuidado.

É um grande exemplo de como a extrema direita trabalha. Nos Estados Unidos, a extrema direita também vem cortando custos, recursos, acordos de cooperação com os países de forma unilateral, de forma muito autoritária, brusca, repentina – deixando [sem recursos] países que dependiam deste financiamento.

Ao contrário dessas estratégias adotadas pela extrema direita, podemos afirmar que governos comprometidos com pautas sociais e de direitos humanos tendem a implementar ações mais eficazes na redução dos casos de HIV e aids?

O Brasil é um caso muito interessante para pensar como o movimento de aids, nos anos 90, se beneficiou de um contexto social e político mais democrático para a sua conformação. Afinal, foi uma resposta integral: envolveu sociedade civil, envolveu participação de vários atores da sociedade de forma organizada – ciência, comunidades, gestores – o chamado triângulo.

A própria epidemia e essa movimentação reforçaram a democracia, porque se pôde efetivamente tornar realidade alguns dos princípios do SUS, como universalidade e equidade. O Programa de Acesso Universal aos Antirretrovirais (TARV) para o tratamento da aids é uma amostra de que o princípio da universalidade e da equidade funcionam, podem ser uma realidade.

Então, reforçando a democracia, os medicamentos são efetivamente para todos que precisam.

A democracia amplia respostas participativas e inclusivas das diferenças sociais, de diferentes setores, de diferentes disciplinas.  Ambientes menos democráticos tendem a ter respostas mais autoritárias ou silenciamentos.

Falando também de políticas sociais: um estudo da Fiocruz, em parceria com o Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, mostrou que o Bolsa Família ajudou a diminuir os casos e as mortes por aids entre mulheres pobres no Brasil. Qual é a relação entre o HIV/aids e as populações vulnerabilizadas?

O racismo alimenta não só a aids, como a disseminação de outras doenças epidêmicas no país, e mesmo as endêmicas, de alguma forma. Já que, por exemplo, o racismo institucional em serviços de saúde pode afastar pessoas vulnerabilizadas, pessoas negras, dos serviços de saúde.

Nós temos, por exemplo, a questão da PrEP no Brasil. A PrEP é a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV, que implica um programa bastante importante e revolucionário para a prevenção, que é fazer a prevenção ao HIV com o uso de medicamentos. Mas isso tem que ser um programa assistido, não é simplesmente tomar o medicamento. Precisa ser orientado, precisa ter continuidade. E a maioria das pessoas que estão nesses programas são homens, brancos, de classe média, com nível superior.

Isso mostra como as questões de classe e de raça, infelizmente, ainda obstaculizam. São barreiras importantes para que as pessoas mais vulnerabilizadas e estigmatizadas tenham acesso a medicamentos e à saúde. Há até pouco tempo, o maior número de gestantes vivendo com HIV no Brasil era de mulheres pretas. Isso mostra que o HIV avança mais rapidamente entre homens e mulheres negros do que entre os brancos. Isso é mais um reflexo do racismo estrutural que existe no Brasil.

No fim do ano passado, o Ministério da Saúde lançou diretrizes para a eliminação da aids e da transmissão do HIV como problemas de saúde pública até 2030. O documento também conta com cinco objetivos específicos para alcançar parte dos resultados até 2027. Como você avalia a perspectiva de eliminação da aids e do HIV no Brasil?

É preciso olhar isso de forma muito cautelosa. E, principalmente, não deixar que isso crie uma expectativa de que, “bom, estamos prestes a acabar com a aids”. Porque, para muita gente, isso é entendido não como “acabar com a epidemia”, mas como “eliminar a doença”. E não é bem assim. Temos também que evitar banalizações para que os estados, municípios, fundações, a própria filantropia, não deixem de apoiar a aids – que já apoiam pouco – achando que seria um problema praticamente resolvido.

Não dá para cantarmos vitória. As metas para 2030 são muito interessantes, mas elas não podem ser vistas como algo onde os problemas vão estar resolvidos. Até porque alcançar algumas dessas metas pode ser até possível, mas mantê-las, sustentá-las, é outro problema.

No Brasil, nós alcançamos resultados muito bons. Temos 96% das pessoas que vivem com HIV conhecendo seu diagnóstico, um número próximo ou igual de pessoas em tratamento, e um número alto de pessoas com carga viral indetectável. Mas como isso se sustenta ao longo dos anos é outra história. Depende de vários fatores. São metas muito importantes, mas temos que olhar com um pensamento crítico sobre como essas metas são alcançadas e como podem ser sustentáveis.

Ao mesmo tempo, um levantamento na Região Metropolitana de Porto Alegre feito pelo Hospital Moinhos de Vento, revelou que a prevalência de HIV na população testada chegou a 1,64%, superando em 64% o limite de 1% definido pela OMS para considerar a epidemia sob controle. O que esse dado pode indicar e como você interpreta esse cenário?

O caso do Rio Grande do Sul é bem particular, porque não se entende exatamente quais são as razões para que se sustentem esses números,  que são altos. Essa prevalência é muito alta. E que, inclusive, rompe um pouco com o modelo do Brasil, que é uma epidemia mais concentrada em algumas populações. Lá no Rio Grande do Sul, esse número quase indica uma epidemia mais generalizada, não focada em grupos – tipo HSH [homens que fazem sexo com homens], usuários de drogas, ou pessoas em situação de cárcere.

Também é um estado com muitas dificuldades para fazer programas efetivos de prevenção, que sofre com o contexto conservador, autoritário, que nega, inclusive, a própria aids e sua resposta. Isso pode estar contribuindo para a permanência, ou talvez o crescimento dessas taxas, e que o Rio Grande do Sul continue no topo dos estados mais afetados. E a zona metropolitana de Porto Alegre, em especial, nos primeiros lugares de mais alta prevalência de HIV.

É preciso reforçar as campanhas de prevenção, a questão da testagem, programas para diminuição do estigma.  Certamente, a própria covid-19, com o desmantelamento dos serviços de saúde, a tragédia das chuvas no ano passado, tudo isso também pode estar facilitando mais elementos que permitam o aumento do número de casos.

Por outro lado, estamos vivendo um momento interessante para refletir sobre a evolução das tecnologias contra o HIV. Novos antirretrovirais injetáveis de ação prolongada podem reduzir novas infecções em comunidades de alto risco. Como você avalia o potencial dessas tecnologias e os desafios para que cheguem à população?

Essas tecnologias podem ampliar o potencial de escolha das pessoas para a sua prevenção ao HIV. Tem o Lenacapavir, que é um medicamento injetável de apenas duas injeções ao ano. E tem o Cabotegravir, que é um medicamento muito efetivo e é uma injeção a cada dois meses. São medicamentos que já estão mais estudados, já foram feitas pesquisas, estudos clínicos, inclusive para a implementação [no SUS], e que têm encontrado bons resultados. Mas o problema é a sua incorporação. Porque eles tendem a ser caros, e precisam de negociações para ver como podem se inserir no orçamento. Há muito pouco conhecimento no país sobre esses medicamentos, sobre sua forma de ação e suas possibilidades, o que também dificulta, porque se a população não conhece, fica mais difícil justificar a sua incorporação.

Não é um medicamento para tratamento, mas, para prevenção, ou seja, milhões de pessoas vão usar. Fica o desafio: existe capacidade de produção para atender todas as pessoas que queiram usar essas formas de prevenção?

As pessoas vão ter mais possibilidades. Certamente vão ter pessoas que vão preferir continuar usando camisinha. Talvez pessoas que vão passar a usar a PrEP oral – que é o uso de um medicamento todos os dias – ou a PrEP sob demanda, em determinados períodos e fases da sua vida. Outras pessoas vão preferir o uso de injetáveis. Mas o importante é ter várias possibilidades, para que as pessoas, de acordo com o seu momento, com a sua situação de vida, possam escolher a melhor prevenção para si.