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Entrevista: 
Humberto Jacques

‘Quando um promotor está com um caso, naquele caso ele é o procurador geral da República. Ele é o todo poderoso’

Em entrevista concedida à Poli em agosto, o vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) explicou a estrutura e a missão do Ministério Público, instituição que tem estado no centro dos debates polêmicos sobre a Operação Lava Jato e seus efeitos na crise política. Esta semana, em mais uma iniciativa que gerado polêmica, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesta entrevista, realizada muito antes dessa decisão, Humberto Jacques, que tem uma história de atuação específica na área da saúde, explica procedimentos e defende a Lava Jato das críticas que, já naquela época, a Operação vinha sofrendo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/09/2016 16h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

ENSP/FiocruzPensando na totalidade, no Ministério Público Federal, Ministérios Públicos Estaduais, Militar, do Trabalho, se é que é possível unificar, qual é a função principal do Ministério Público, em todas as suas esferas de atuação?

A maneira mais fácil de explicar isto é: toda vez que alguma coisa, um direito, uma pretensão, uma aspiração não disser respeito a uma pessoa só, mas a várias pessoas ao mesmo tempo, esse problema é também do Ministério Público. A gente tem problemas que são só nossos: ah, eu estou brigando com o condomínio, é problema meu com o condomínio. Mas quando existe um problema que não afeta duas, mas muitas pessoas, ele passa a importar ao Ministério Público. O M P vai tentar resolver o problema não só judicialmente. Esse é o primeiro dado. Eu descubro que tem uma criança sem escola, é um problema de uma criança e uma escola. Agora, se existem muitas crianças sem escola, isso é um problema de falta de política pública. E aí eu posso, como Ministério Público, dialogar com o poder público para arrumar aquela política para atender aquelas crianças, sem necessidade de ir à Justiça.

E o que é que o Ministério Público pode fazer num caso desses?

A gente força a formulação ou a adequação de uma política pública. Se o Estado não fizer, aí a gente pode responsabilizar o Estado. Enquanto o indivíduo só pode dizer ‘me dê a escola’, eu posso dizer, ‘dê a escola para várias crianças’. O indivíduo só consegue o seu direito, não consegue punir quem ofendeu o seu direito. O Ministério Público pode conseguir o direito e pode punir criminalmente, civilmente quem retardou essa oferta. Então o caráter punitivo é nosso.

No campo da Saúde existe uma discussão muito antiga sobre o que se chama de processo de judicialização da saúde, que de um modo geral está mais naquele exemplo do sujeito que entrou individualmente com uma ação para conseguir um remédio, por exemplo. O Ministério Público tem atuado na judicialização?

A pergunta permite também eu explicar mais um detalhe que faltou na primeira pergunta. Nas ações coletivas, ou nas ações de reflexo coletivo, se o Ministério Público não propuser, ele participa. Se não for o autor, ele vai acompanhar essa ação. Porque o normal é que quando um indivíduo pede, ele está pensando em si. O juiz não é obrigado a pensar coletivamente, o juiz é obrigado a pensar nos limites do que foi pedido a ele. Então o Ministério Público entra nessas ações para que haja naquela decisão uma perspectiva coletiva, para que se meçam as consequências além do indivíduo. E por isso que em muitas ações, nesses campos de judicialização de saúde, o Ministério Público tem entrado para dizer: ‘olha, para dar esse [medicamento, por exemplo], vai tirar de outras pessoas’. Esse direito para esta pessoa não pode ser olhado de forma isolada de um contexto. Então um dos papéis nossos na judicialização é dar o caráter público, o caráter coletivo, o ponto de vista geral nas decisões de caráter individual. O segundo é que, antes de judicializar as ações, a gente entra em etapa de negociação com o sistema de saúde, com o poder público, algo que é muito difícil para o indivíduo. O indivíduo vai à justiça porque não tem muitas condições de diálogo com a administração. E com o Ministério Público diálogo há. Então a gente judicializa muito menos que o indivíduo porque há instâncias de diálogos nosso com a administração, algo que é mais difícil para o cidadão.

O advogado, o defensor, tem que pedir pela parte. O juiz tem que dar o que a lei manda, e alguém tem que falar pelo geral, pelo coletivo. E aí então nesses casos de judicialização nós participamos tentando dar voz aos que não têm. Para dar isso a essa pessoa, a gente vai tirar de outras. Essa é uma grande tarefa. E a outra é a de pegar as decisões individuais e persuadir o Estado: ‘olha, para que você vai ficar resistindo a isso? Porque virão muitas outras muitas condenações iguais. Vamos mudar essa política? Evolua. Ceda’.

É  muito comum que se defina o Ministério Público como defensor do interesse coletivo, advogado da sociedade. Teoricamente, numa democracia em que as pessoas votam diretamente em dois dos três poderes – o Executivo e o Legislativo -, não seriam eles próprios representantes do povo, advogados da sociedade? Por que nós precisamos de um terceiro ente, como o Ministério Público, que inclusive na estrutura não é vinculado a nenhum desses poderes?

Em teoria, o Ministério Público deveria ser como seguro de vida: você paga e não quer usar. Uma democracia avançada não precisaria da gente. O nosso trabalho seria muito residual. Por quê? Uma ONG brigaria pelas coisas. Uma ONG ambiental pode brigar por questão de meio ambiente. Em algumas sociedades modernas o Ministério Público não ocupa todo esse espaço porque a sociedade civil organizada faz por si própria essa briga. Só que nós tivemos um período de ditadura. Durante a ditadura, a sociedade civil não conseguia se organizar ou tinha pouco espaço. Quando a sociedade estava num período de baixa democracia, o Ministério Público avançou em pleitos que a sociedade não fazia por si porque ela não tinha condições nem liberdade para isso. Quando veio a democracia, nós deixamos isso de maneira paralela. A sociedade pode brigar por si e também o Ministério Público pode. Então você tem uma aliança entre sociedade civil e Ministério Público.
A diferença é que o Executivo e o Legislativo são eleitos e possuem monopólio, só o parlamento legisla, ninguém mais. O Executivo também: só o prefeito administra, não tem outro administrador em paralelo. Eles são eleitos para uma função de monopólio. O Ministério Público não é eleito, mas a função que ele desempenha não é só dele, a sociedade também pode fazer, e a gente trabalha em paralelo. À exceção da matéria penal, que só nós fazemos. Em algumas sociedades democráticas se elege o promotor.

Como essas prioridades são definidas?

Eu atuo na Saúde. Tem tanta coisa para fazer. Por onde eu vou? Se eu esperar reclamarem, só vou trabalhar pelos mais fortes, que são as pessoas mais esclarecidas que sabem quem é o promotor e que vão levar lá problema. A minha pauta sanitária era fixada pela Conferência de Saúde. Eu pegava o relatório da Conferência de Saúde e dizia: ‘bom, isso aqui é o que majoritariamente foi decidido como prioridade’. Então teve coisas que para mim não eram prioritárias, mas como a Conferência botou eu digo ‘ok’.

Mas isso é uma decisão sua?

A decisão é minha, eu sou autônomo nessa tomada de decisões, mas, para não me deslegitimar, eu tenho que justificar porque estou fazendo aquilo e não aquilo outro.

Agindo em nome do interesse coletivo, do interesse da sociedade, como unanimemente todo mundo aponta, e não sendo vinculado nenhum poder, nem o Executivo, nem o Legislativo, e nem ao Judiciário, o Ministério Público, de alguma forma, acompanha todos os poderes. Quem fiscaliza o Ministério Público?

Cada promotor é o Ministério Público. Existe um princípio chamado da unidade e indivisibilidade. Então, isoladamente todo promotor é o Ministério Público. E aí todo promotor, todo procurador tem acima dele instâncias de revisão. A gente tem controles internos. Então, se eu arquivo um processo acima de mim, tem uma instância que controla, vê se está de acordo ou não com aquele arquivamento. Se concordarem, o caso é encerrado, se não concordarem, vai para outro promotor tocar aquele caso. Então, nós somos internamente controlados. As decisões do promotor são submetidas a instâncias domésticas internas de revisão e controle.

Em segundo lugar, o orçamento do Ministério Público não é do Ministério Público, ele é feito junto com o Executivo e o Legislativo. Então o Congresso Nacional, quando vê o orçamento do Ministério Público fala: olha, eu vou botar mais dinheiro na sua ação ambiental, vou botar mais dinheiro para combate à corrupção, vou botar mais dinheiro para infância e adolescência. O Ministério Público tem vários programas orçamentários e os poderes eleitos alocam recursos dentro dessas linhas, financiando mais uma área do que a outra. E nisso você está controlando o trabalho. Então, pelo caminho orçamentário você tem esse controle.

Igualmente o chefe do Ministério Público é indicado pelo presidente, sabatinado e aprovado pelo Senado e demissível. Ele pode sofrer desconfiança e ser derrubado pelo Senado se sair do roteiro prometido. E não bastasse tudo isso, ainda tem o Conselho Nacional do Ministério Público, que é uma instância nacional com representantes da sociedade, da OAB, do parlamento, que fazem um controle externo, matéria fundamentalmente disciplinar dos membros do Ministério Público. Também não é doméstico, é externo. Eu presto contas. Não é uma coisa tão solta assim. E se o cidadão não está satisfeito com o que o promotor está fazendo, ele pode acionar a Corregedoria, o MP local, pode recorrer da decisão do promotor numa instância interna no MP, pode pedir ao parlamento que modifique o financiamento daquilo. E ainda pode ir ao Conselho Nacional do Ministério Público.

Apesar dessa estrutura que o senhor descreveu, têm surgido muitas desconfianças, muitas críticas de interferência política na relação do Ministério Público. Nós tivemos recentemente um caso polêmico em que o Ministério Público de São Paulo pediu a prisão do ex-presidente Lula, num processo sobre o qual vários juristas, integrantes e ex-integrantes do Ministério Público se pronunciaram criticamente. Esse foi um exemplo muito recente, mas há vários outros. Como o Ministério Público lida com isso?

A pergunta é boa, e demonstra uma maturidade na evolução da instituição que merece ser registrada. Demonstra que existe transparência. Ou seja, na hora em que as pessoas conseguem criticar que arquivou, que não arquivou, fez ou deixou de fazer, é evidente que existe um diálogo. Você não vê, por exemplo, ninguém dizer: ‘escuta, quem é que a Receita Federal está autuando?’. A gente não sabe. O que a Receita faz, quem caiu na malha fina, quem não caiu? Tudo que a Receita Federal faz tem uma proteção e não é tão visível, a sociedade não dialoga, não reflete, não crítica, não está no jogo democrático a atuação da Receita Federal. Já o Ministério Público, que podia ter uma atuação fechada e a gente só ver o resultado, tem essa abertura. Então, o primeiro dado que a gente tem que perceber é que esse juízo que pode ser feito demonstra um envolvimento do Ministério Público com o funcionamento da sociedade democrática.

A nossa participação democrática no debate democrático ganha por vezes a adjetivação de política. O trabalho do Ministério Público está sujeito a críticas, diálogos, reações, tensões, de matriz democrática. Numa democracia com liberdade de expressão, todas as instituições são passíveis de críticas. E aí, sob esse aspecto, é uma beleza que as pessoas possam formular juízos sobre a atuação do Ministério Público. Isso é ótimo, e nós, como Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), comemoramos. Agora, como toda sociedade política, como toda democracia, existem vários ângulos, várias posições políticas possíveis no cenário democrático, e aí sempre que você se movimenta nesse espaço plural que é a democracia você vai estar agradando alguns e a outros desagradando. Isso é parte do próprio jogo democrático.

O que a gente não aceita, o que a gente não transige, é com a ideia de que nós tenhamos vinculação político-partidária, ou seja, de que o Ministério Público se torne um braço a serviço de um partido, de uma facção, de um grupo de poder. Mas a crítica é muito bem-vinda, e essa crítica também serve para nos controlar, também nos baliza, também nos faz meditar sobre o acerto ou erro daquilo que nós fazemos.

Esse pedido de prisão preventiva de Lula, feito meses atrás pelo Ministério Público de São Paulo, foi criticado tecnicamente por um conjunto muito grande de pessoas que são da área. O estado de São Paulo é governado há muitos anos pelo PSDB, que é o partido principal de oposição ao partido do ex-presidente Lula. Dias depois, antes que qualquer uma dessas instâncias de controle interno ou externo pudesse ter se pronunciado sobre qualquer coisa, o procurador de justiça de São Paulo individualmente foi à imprensa apoiar a ação do Ministério Público, a prisão preventiva, a ação dos três promotores. É em torno, por exemplo, desta questão muito concreta que existem críticas...

Vamos nesse caso concreto, ok? Nenhum problema. O que uma associação, como a ANPR, e o procurador geral de justiça também deve ter dito, e é um dos pilares da atuação do Ministério Público, é que quando você recebe um caso, você, naquele caso, faz o que a sua consciência lhe mandar. Você não recebe ordens. Quando um caso está com um colega, ele é absolutamente senhor daquilo ali, e é totalmente livre para fazer o que a consciência dele manda. E, num mesmo plano, a gente tem dois colegas que um pensa de um jeito e o outro pensa de outro, e a gente não impõe a padronização do pensamento, porque isso sufocaria, quebraria o pluralismo, faria a casa menos democrática. Então, quando um promotor está com um caso, naquele caso ele é o procurador geral da República. Ele é o todo poderoso, ele decide, ele faz como a consciência dele manda e tem a liberdade de agir, a gente não pode tirar dele.

Então, se o colega optou por pedir a prisão ou por pedir a condenação, denunciar, não denunciar, naquele ato ele é soberano e ninguém pode sobre aquilo se meter. É esse valor que a ANPR ou o procurador geral de justiça de São Paulo sustentam: a gente não pode patrulhar a atuação dos colegas, eles são soberanos na sua atuação. Se ele optou por isso, é uma opção dele, dentro do processo dele, do qual é a vez dele, mas ele faz a parte dele e todos os outros atores fazem as suas. Tanto é que o caso acabou saindo de lá, esse caso acabou indo parar em Curitiba.

Mas porque a juíza mandou, não como uma decisão do Ministério Público...

O colega do Paraná também podia dizer: ‘esse caso é meu, traz para cá’, teria outras soluções. Mas o que há de emblemático no caso é que, com o processo na mão, o membro do Ministério Público é autônomo e independente. E esse é o único valor. Por isso que a gente comemora a crítica, o debate, a reflexão externa que se volta para nós, porque é a maneira de a casa melhorar. Eu não posso matricular todos os meus colegas numa escola de doutrina. Não. Todos eles são livres, são cidadãos, dialogam numa cidade democrática, e quanto mais crítica a casa recebe, mais refletida é a decisão dele. Então a gente comemora a democracia, comemora a crítica, agradece esse zelo da sociedade e do cidadão sobre as nossas opções, até porque a gente sabe que decide melhor quando está sob os olhos da sociedade.

O senhor falou algumas vezes que o promotor ou procurador é soberano, age de acordo com a sua consciência. Mas as pessoas têm suas próprias preferências políticas, sua religião, suas crenças. Como conciliar essa autonomia individual com o que o Ministério Público mais zela, que é o interesse da sociedade?

Perfeito. Você entra numa situação, num dilema. Sabe aquela ideia do Churchill, de que a democracia é um regime horroroso, mas não inventaram nada melhor? A outra alternativa era eu botá-lo manietado, sob controle, sob hierarquia, transformar um promotor num oficial da PM, onde o comandante manda e aquilo vai ser feito. E aí você vai criar um outro monstro pior. Isso é ruim mas a gente não conseguiu um modelo melhor ainda. Eu consigo que a decisão dele seja revisível, que ele dependa do juiz, que o juiz dependa dele, que tenha o advogado, que tenha recurso... a saída está nisso, em colocar vários atores, e cada um com uma parcela de poder. Mas na parcelinha que é dele, ele é autônomo, assim como o juiz, como o advogado. É mais ou menos essa a saída. Agora, outro modelo não há, porque os outros modelos possíveis teriam outras consequências mais daninhas. Essa é a encrenca. Podia ser melhor? Deveria ser melhor.

A operação Lava Jato envolve três atores principais: o Ministério Público, a Polícia Federal e o Judiciário. É muito difícil para quem está lendo as coberturas rápidas nos jornais entender qual é o papel de cada um. Dentro do que a gente viu acontecer até agora na operação , o que faz a Polícia, o que é faz o Ministério Público, o que faz o Judiciário?

Você não tem mais um rei que pode tudo, o rei que tudo poderá. Então a gente dividiu o poder que estava no monarca em três lugares: o Judiciário, o Executivo e o Legislativo. Um depende do outro, as coisas só funcionam no sistema político se os três poderes estiverem bem articulados. Mas um não manda no outro, um não depende do outro, existe uma relação harmônica entre os poderes no Estado. Um sistema de justiça trabalha com algo semelhante: você não deixa ninguém muito poderoso nesse circuito. Você tem três parcelas diferentes de atuação. O juiz decide, manda, mas não pede. Ele não pode ter iniciativa. O juiz é inerte. É alguém que não pode começar. O promotor é alguém que pode começar, mas não pode mandar. Eu preciso dos dois juntos. Então as pessoas costumam dizer: não tem problema um juiz doido se eu tiver um promotor bom. Não tem problema um promotor doido se eu tiver um juiz bom. O problema é quando eu tenho os dois doidos, certo?

Então, por exemplo, no caso específico da Lava Jato a gente pode dizer que quem dá o pontapé inicial para investigação é o Ministério Público?

Sim. Mas, antes disso, o Ministério Público não está em todos os lugares. Quem está em todos os lugares é a polícia. A polícia é que vive coletando informações, classifica essas informações e levanta uma ideia. Então eu tenho que ter antes um ator que colecione provas, junte documentos, alguém que reúna indícios. Que é o que faz a polícia. Porque não dá para um promotor sozinho ou um juiz sozinho conseguirem descobrir todos os fatos. Então, nessa história a polícia é como se fosse as nossas fontes, ela nos traz coisas. O promotor é alguém que processa isso e vai ao juiz pedir providência. E o juiz é quem dá a providência.

A polícia não pode ir direto ao juiz, ela precisa passar pelo Ministério Público?

Sim. Porque o Ministério Público é que tem a capacidade postulatória. Quando o Ministério Público diz: “não vou fazer nada aqui’’, ele apresenta para o juiz: ‘olha, isso aqui me deram e eu não vou fazer nada’. O juiz pode dizer: ‘tem que fazer’, e manda para a câmara de revisão do Ministério Público. Ou o juiz diz: ‘é, concordo com você’. Sempre as coisas só acontecem de comum acordo entre esses atores, o promotor e o juiz. O estrago só acontece com os dois de comum acordo, um sozinho sem o outro concordar não vai. Então, o [Sergio] Moro não pode mandar prender sozinho, alguém tem que pedir que ele prenda. O MP, o promotor não pode prender, tem que pedir ao juiz que prenda. Agora, a polícia pode prender em flagrante.

Então nas situações que a gente tem visto mais polêmicas da Lava Jato, o Moro autoriza a prisão, mas o pedido é feito pelo Ministério Público?

Sim. Como também muitas vezes a gente pede e ele não dá. Também não é essa Brastemp toda não. Às vezes tem coisa que a gente pede e ele não dá. Não é um jogo acertado. O [procurador-geral da república, Rodrigo] Janot pediu o afastamento do [Eduardo] Cunha, todo mundo disse que era impensável pedir um negócio desses, e o Teori [Zavascki] deu. Imagine se ele não tivesse pedido e o Teori diz: ‘se ele tivesse pedido eu teria dado’. É um jogo em que você não sabe o que o outro fará.

Mas vamos pensar numa operação longa, duradoura e de porte, como a Lava Jato. A equipe que trabalha na Lava Jato, envolvendo judiciário, Ministério Público e polícia, é uma equipe relativamente estável. Então, ao longo do processo, esse jogo cego não se desfaz? Não tem um azeitamento em que alguém diz: ‘olha, pede que eu autorizo’?

Ah tá, eu compreendo. Isso seria uma tentação muito grande, mas a gente tem uma coisa chamada autocontenção. Porque na hora em que você faz isso, é como se você não tivesse mais fazendo o seu exame de consciência. Eu preciso ter uma outra pessoa do meu lado me controlando, se não a gente foge do controle.

Eu sei que esse é o modelo, mas o senhor está defendendo que isso é o que acontece na prática também?

Não, o que acontece é que você começa a criar uma confiança. Que tipo de confiança? ‘Olha, ele já me pediu 15 vezes, e nas 15 vezes que ele me pediu era razoável, quando chega a 16ª eu também acho que é razoável, porque eu aprendi a confiar, eu sei que ele não é irracional, sei que ele não é abusivo, sei que ele é proporcional, sei que se eu estivesse no lugar dele pediria a mesma coisa que ele está pedindo’. Então, é esse tipo de sintonia que começa a existir, mas não jogo combinado. Porque o jogo combinado fica perigoso para todo mundo. É como estar pulando de paraquedas sem o paraquedas de emergência. A gente, todo mundo, a Justiça sabe que essa separação é que dá qualidade, mais ou menos quando você escreve um texto, e você tem o revisor do seu texto. Então, você não acerta antes, e se acertar antes cai a qualidade. Eles criam um estágio de confiança: ‘eu sei que ele não fez nada demais, eu sei que ele é um cara razoável’. Você conhece o seu parceiro, mas não acerta a jogada, porque se você acertar a jogada está perdido, perdeu a qualidade do serviço. É como se o seu revisor agora dissesse: não, o seu texto eu nem revejo mais. Você deixa de ser escritora para ser a revisora, e é muito ruim fazer esses dois papeis. Então a gente trabalha sempre com a ideia de que vai tomar não, que vai tomar sim, e pedimos ou não pedimos, vamos até tal ponto, não vamos até tal ponto. É assim que funciona.

O Ministério Público vem sendo acusado por muitos juristas e membros do próprio MP de cometer abusos na Lava Jato. Tem acusações concretas, como o uso indevido da delação premiada, prisões consideradas com desvios de finalidade associadas à delação premiada, a história da condução coercitiva. Enfim, então tem um conjunto de medidas concretas que têm sido consideradas por um conjunto de pessoas da área, além de uma parte da opinião pública, como abusivas. Casado com isso, há a acusação de um certo deslumbramento por parte do Ministério Público com o destaque que a operação está tendo. Como é que o senhor avalia essas críticas e responde a elas?

Primeiro, toda crítica é bem-vinda, certo? Ou seja, não há ojeriza à crítica. A crítica é uma oportunidade de crescimento, é uma chance de esclarecimento. Então, não há problema nenhum no modelo, na crítica, porque a crítica permite que a gente informe melhor, e que a gente esclareça e reflita. A delação premiada é um instituto muito mais novo no sistema jurídico brasileiro, então não é uma coisa tradicional,   e como todo instrumento recente merece sempre investimento para o seu aperfeiçoamento.

Mas na Operação Lava Jato é possível identificar um uso abusivo, impreciso ou excessivo desse instrumento?

Não. A esse ponto eu não chegaria de jeito nenhum. O que acontece é que ele é incomum, porque a gente não tem precedentes.

A acusação é de que está havendo um uso ilegal...

Perfeito. Adoro essa acusação, mas o que acontece com ela? O que a gente tem que lembrar, e aí escapa muito ao raciocínio da gente, é que todo esse trabalho que é feito na Lava Jato está na 1ª instância. Disso você recorre para o juiz na 2ª, no TRF, disso recorre para o STJ e disso para o Supremo [Tribunal Federal]. Tem quatro instâncias controlando isso. Às vezes quando é muito apaixonada a discussão, parece que você está falando de um policial que cometeu um abuso que foi noticiado pela imprensa e nada aconteceu. Não, todos esses atos processuais estão submetidos a quatro crivos de recurso e crítica. Se fosse uma coisa tão violentamente estúpida, como alguns adversários querem dizer, não estaria de pé. O que o juiz faz passa pelo TRF, por um conjunto de três juízes que reveem, disso sobe para o STJ, num conjunto de seis juízes, e ainda vai ao Supremo num conjunto de cinco juízes. Se fosse uma coisa tão absurda assim, não ficaria de pé.

Uma das críticas é que as prisões preventivas têm sido usadas para forçar os investigados a fazerem delação premiada. Queria que o senhor comentasse.

Como é que a gente sai da cultura de que a polícia prende e a Justiça solta, não é isso? Era uma mudança de um modelo que as pessoas tinham incutido para um modelo em que a Justiça prende e ninguém é solto. Você fica um pouco assustado: como é que mudou a música? A música que a gente ouvia nos programas policiais, a polícia prende e a Justiça solta, e agora a música que toca aqui parece que é outra, porque as pessoas são presas e nunca são soltas, não é isso? A gente tem que lembrar que não houve ainda uma maturação do que seria a noção da prisão cautelar e a noção da prisão pena. No Brasil, antes da sentença condenatória, as pessoas só são presas cautelarmente, a pessoa espera um julgamento preso em algumas restritíssimas hipóteses: a garantia da instrução criminal, ou seja, a garantia das provas, a garantia da aplicação da pena, de que você não vai fugir, não vai se evadir, e a ordem pública. O que acontece? Muitas pessoas que foram presas tinham enorme capacidade de destruição de provas, e por isso a Justiça conseguiu mantê-las presas. Na hora em você assume na delação premiada, que entrega todas as provas, não há mais motivo para você ficar preso. Porque a matéria cautelar aqui, pela proteção do processo, não é juízo de culpa. Se solto você vai destruir provas, fica preso. Se as provas já estão produzidas, você é solto. Se você entregou as provas em uma delação, que é um incidente nessa história, não há motivos mais para você ficar preso, pode ficar solto.

Com a delação premiada você já impede a possibilidade de destruição das provas. Agora, lendo no sentido contrário, isso também não significa que a prisão cautelar cria uma pressão importante para que o sujeito faça a delação premiada? Qual é a ordem dos fatores que se deve considerar?

Não, você pode separar tranquilamente uma coisa da outra. Porque a delação premiada já existe no Direito e muita gente sofre prisão preventiva, está preso preventivamente para garantir provas, e não há nem possibilidade, nem oferta, nem interesse de delação premiada.

Mas se essa pessoa não faz a delação premiada, significa que ela pode ficar presa cautelarmente para sempre, enquanto o processo não acaba...

Não, não. Porque, uma vez que a instrução criminal já caminhou, que já se conseguiram as provas... Uma coisa que as pessoas esquecem é que quando você é preso preventivamente, a prisão é muito trabalhosa para o MP. As pessoas esquecem essa história. Na hora em que eu peço uma prisão preventiva de alguém, os prazos ficam muito mais apertados para mim, eu tenho que denunciá-la rapidamente, se não ele vai ser solto. Se o processo se arrasta, ele é solto. Então, é muito melhor processar alguém solto do que alguém preso. A Lava Jato tem andado em alta velocidade porque se atrasar alguns dias, as pessoas são soltas.

Mas  o empresário Marcelo Odebrecht ficou preso por muitos meses antes de ser condenado...

Não, ele está preso.

Eu sei que ele continua preso, mas a diferença é que agora ele sofreu uma condenação.

E vai pagar.

Mas antes de ser julgado ele já estava preso. Nesse tempo, a Lava Jato tinha promovido um conjunto enorme de provas, inclusive através da delação premiada de outros, para usar o seu argumento. No entanto, ele continuou preso. Então, teoricamente parte das provas que ele poderia destruir poderiam ter sido encontradas. Tanto que a imprensa noticiou que parte do que ele queria delatar depois não interessava à operação porque já se sabia. Então, passado o período em que um conjunto grande das provas que ele talvez pudesse destruir já tinham sido levantadas por outros meios, ele continuava preso...

É, esse raciocínio é ótimo se você pensar que você está trabalhando com alguém que falsificava dinheiro em casa. Eu falsifico dinheiro em casa, então se me soltarem eu destruo a máquina, destruo o papel moeda, queimo todo o dinheiro que eu falsifiquei e não vão achar, não vão conseguir me processar por moeda falsa, certo? Isso é verdade. Agora, é diferente quando você tem uma coisa industrial, como na Lava Jato, onde ele tinha uma empresa do tamanho da dele, que tinha um departamento inteiro só para fazer isso. Aí ele não pode estar solto como chefe daquela empresa porque ele comanda uma indústria que tem todas aquelas provas. É diferente nisso.

Mas significa então que na prática, enquanto ele não fizer delação premiada ele está preso?

Não, não. É porque existem várias investigações em andamento, existem muitas provas sendo recolhidas e ele solto consegue desmanchar todas.

Mas ele só seria solto então uma vez encerrada a investigação da Lava Jato?

Não, mais ou menos. Por exemplo, imagina o cara da moeda falsa. Já apreenderam a máquina, o dinheiro falso, eu posso responder em liberdade porque não tenho mais como destruir essa máquina e nem esse dinheiro, está provado. Então é possível você esperar o julgamento em liberdade quando as provas já estão suficientemente acauteladas. O problema é que na dimensão das investigações com que tem trabalhado a Lava Jato é tanta coisa que sempre você está descobrindo uma frente nova que precisa ser protegida. É mastodôntico. O problema é a quantidade de provas e a quantidade de linhas de investigação de uma indústria que tinha um departamento inteiro para isso. Aí quando é que você tem certeza de que colocando na rua você não vai desmanchar algumas linhas de trabalho?

Então ele faz a delação premiada.

A delação premiada dá esta garantia, mas você tem vários processos penais no Brasil inteiro que se resolvem sem delação. Você põe a pessoa na rua porque as provas já estão suficientemente reveladas.

Mas a crítica é que essa não tem sido a feição da Lava Jato...

Não, mas se você pegar outros ...  O Cerveró já entregou o que tinha que entregar, não tem mais provas para destruir, então ok.

Mas o Cerveró fez delação.

Fez, mas tem gente que foi solta antes da delação. Muitos foram soltos sem delação. Sem delação e está solto porque o que ele tinha para contar a gente já sabe, e o que ele tem para destruir, o que ele poderia destruir ele não vai conseguir, então solta. A gente precisa de vaga na cadeia, estou só te lembrando disso.

Qual a diferença entre a prisão preventiva e temporária?

Durante a ditadura a gente tinha a prisão para averiguação. A polícia prendia quem ela queria, do jeito que queria. A polícia prendia para averiguar. A gente aboliu essa figura. Na democracia não pode, no Brasil não se aceita prisão para averiguação. Então a gente só pode prender alguém com um início de culpa. Por isso que se chama prisão preventiva, porque eu tenho que denunciar o cara. O sistema de Justiça não aceita que alguém esteja preso preventivamente sem uma denúncia. Então ele tem que ser réu, se eu prender preventivamente eu tenho 15 dias para ele virar réu, se ele não virar réu em 15 dias, solta. A preventiva. Mas a preventiva não é antecipação de pena, a preventiva é para garantir as provas e que essa pessoa não vá fugir. A temporária foi uma solução que se arrumou logo assim que entrou a Constituição para substituir a velha prisão para averiguações. Por um prazo muito curto, cinco dias, por ordem judicial, você consegue prender alguém para colher provas. Então a preventiva é para que as provas não sejam destruídas, a temporária é para poder fazer a coletae das provas. Mas é um prazo curtíssimo, e a pessoa é solta. É uma substitutiva da velha prisão para averiguação. Mas são somente alguns crimes, e duram um prazo curtíssimo, porque se ele estiver solto, eu não consigo pegar aquelas provas. A temporária é frágil, muito frágil. E agora eu posso pegar uma temporária e depois convertê-la em preventiva. Mas como eu faço essa conversão? Tem que ter processo.

Qual é a avaliação que a ANPR tem da Operação Lava Jato?

Olha, a gente acredita que o pedaço mais visível da Lava Jato ganhou notoriedade pelo volume de recursos e pelos atores envolvidos. Mas ela é uma mostra do que o promotor faz diariamente no país. Só que ela ganhou uma notoriedade pela clientela, e pelos valores envolvidos, que são mitos grandes. Mas, tirando isso, o que o Moro faz, o que o Deltan faz, é o que diariamente todos os meus colegas fazem país afora.

Todas essas medidas que geraram polêmica na Lava Jato a que nos referimos também são parte do cotidiano das ações do Ministério Público, dos promotores de um modo geral?

A gente tem os GAECOs [Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado] em vários MPs. Crime organizado sempre exige esse tipo de profissionalismo e esse tipo de atitude. Eu te pediria, a título pedagógico: dá uma lida para trás na cobertura jornalística sobre a criação do RDD [Regime Disciplinar Diferenciado], a criação dos presídios federais e o tratamento do Fernandinho Beira-Mar, por exemplo. O Beira-Mar é um top do crime organizado e gerou muita discussão ao redor das providências com relação a ele, mas quando você lida com organização criminosa, o Estado tem que se mostrar tão forte quanto ela, quer seja um homem como o Beira-Mar, quer seja um empresário, quer seja um político. Crime organizado é crime organizado, você não enfrenta de forma desorganizada. Tem que ser profissional. Mas dê uma olhada para trás, você vai ver que teve polêmica. O RDD é duro demais, nós criamos cinco presídios federais, que são diferentes dos presídios estaduais. Põe o Fernandinho Beira-Mar num avião e leva para Catanduva, onde ele não consegue falar com ninguém, porque você garante que lá o celular não pega. E o cara continua mandando mesmo no presídio? Então, crime organizado não se combate sem profissionalização. Não interessa se o chefe do crime organizado é uma pessoa socialmente repugnante, socialmente querida, ou simpática. Não é esse o caso. Crime organizado exige do Estado organização.

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Nota da ANPR em "repúdio à deturpação de esclarecimentos" sobre a Lava Jato

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Como desdobramento das investigações da Lava Jato, o Ministério Público Federal acaba de apresentar denúncia contra o ex-presidente Lula. Responsável por desvendar um importante esquema de corrupção que envolve políticos e empresários, a operação vem sendo também criticada por juristas e membros do próprio Ministério Público pelo uso indevido de instrumentos previstos em lei – como a delação premiada e a condução coercitiva – e por uma suposta parcialidade nos alvos. Nesta entrevista, realizada como subsídio a uma matéria da revista Poli antes dessa denúncia e da conclusão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Afranio Silva Jardim fundamenta as críticas. Promotor aposentado depois de 31 anos de trabalho no Ministério Público, ele conta que apoiou a Lava Jato no início mas se desapontou com as interferências político-ideológicas que, na sua avaliação, mudaram os rumos da operação.
O que é, o que faz e quais são os principais dilemas do Ministério Público no Brasil

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