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Entrevista: 
Alberto Cantalice

'A reforma política é uma espécie de mãe de todas as reformas'

O vice-presidente do PT, Alberto Cantalice, fala sobre reforma política para o especial da revista Poli.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/11/2013 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O Brasil precisa de uma reforma política? Por quê? Qual deve ser o objetivo maior dessa reforma?

Primeiro, achamos que a reforma política é como uma espécie de mãe de todas as reformas, haja vista o mosaico que é o quadro partidário brasileiro. Você tem 32 partidos hoje, muitos deles sem nenhum tipo de ideologia definida ou programa concreto, com propostas para a sociedade brasileira. Isso incide numa polarização que já dura mais de 20 anos, de dois projetos em disputa, que é um projeto encabeçado pelo Lula- PT-Dilma e o projeto PSDB-Serra-Fernando Henrique. Porque, na verdade, apesar de ter 32 partidos, há de fato só dois projetos em disputa. Por isso achamos que a reforma política é fundamental.

Você pode dizer que em todas as eleições, desde 1989 para cá, são esses dois projetos que dinamizam os demais setores. Agora, tem vários partidos ideológicos: o PSOL é ideológico, o PSTU, o PCO, o PCdoB. Agora, são partidos sem representação popular, são partidos respeitáveis, porém, vocalizam que interesses? Representam quem na sociedade brasileira, numericamente falando? Não representam. O PSTU, por exemplo, está há tantos anos aí, não tem um deputado. O PCB, que ficou remanescente depois do desmonte que o Roberto Freire fez, também não tem representação. PCO não tem. O PSOL tem dois deputados federais. Dois deputados federais em 513? Entendeu? Na chamada democracia formal em que a gente vive, representação se dá pelo voto. Claro que, no caso do PT, que não é só um partido eleitoral, tem representação social, vínculos intrínsecos com o movimento sindical, com o movimento sem-terra, com o movimento sem-teto, feminista, LGBT, mas o nosso partido também tem forte presença na institucionalidade. Nós somos o maior partido em representação do Congresso Nacional, o segundo maior partido no Senado Federal. Você não pode comparar o PT com esses demais partidos, a diferença de representação é muito grande.

Um outro viés é que é importante na nossa avaliação é tirar o peso do poder econômico do processo eleitoral brasileiro. Isso só virá com o financiamento público exclusivo das campanhas, proibindo o financiamento empresarial. Outro é que nós temos que romper essa quase exclusão dos setores populares no Parlamento brasileiro. Por exemplo, você tem proporcionalmente menos parlamentares mulheres no Congresso brasileiro do que no Congresso do Irã, que é uma sociedade machista por excelência. Por isso defendemos a instituição do voto em lista e uma lista paritária, metade composta por homens, metade por mulheres, intercaladamente. Que também tenha nessa lista a presença de negros e índios. Você tem uma representação de negros completamente inferior ao peso numérico que os afrodescendentes têm na sociedade brasileira. Como é que você democratiza isso? Outra coisa: você tem hoje parte dos parlamentares atuando como despachante de luxo dos interesses privados. Isso tem que acabar.

O que a voz das ruas, a partir das manifestações de junho, reivindicou pode ser traduzido numa reforma política?

Primeiro que eles reivindicaram, quer dizer, nós, a rua reivindicou melhoria nas condições de vida objetiva. Por exemplo, melhoria no transporte, porque hoje há excesso de veículos. A opção que o Brasil fez ainda na época da ditadura pelo transporte rodoviário levou a um esgotamento desse modelo nas grandes cidades brasileiras. E aí você pega não só São Paulo; Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, em todas as capitais, depois de uma certa hora da manhã ou da tarde, fica intransitável. Isso é muito ruim porque você leva duas, três horas dentro de um transporte. Também a melhoria da saúde. A saúde é um dos temas mais candentes. Em qualquer pesquisa que se faça, a saúde é o número um colocado pela população. Tanto que se está fazendo agora a proposta do Mais Médicos, para trazer médicos de fora, porque a quantidade de médicos no Brasil que se dispõe a trabalhar nas áreas distantes é muito pequena. E você não faz saúde sem médico.

As manifestações vocalizaram uma hostilidade em relação aos partidos políticos. Por quê? Isso é objeto de uma reforma política?

Com certeza. Veja bem: a hostilidade, na verdade, não é só aos partidos, é, na verdade, à política, ao fazer política partidária pela via dos partidos. Agora, a população vê essa sopa de letrinhas, aí a mídia solta que a Casa não vota nada, Donadom... isso vai criando uma certa ojeriza da população nos políticos. O desgaste dos políticos hoje é muito grande. Agora, não é só isso. A pauta da rua era plural: ia desde a questão do Feliciano na Comissão de Direitos Humanos até a PEC 37, passando por educação, saúde, reforma agrária... teve de tudo. O que nós estamos defendendo é que a presidenta entendeu isso aí, propôs essa questão da reforma política, propôs um plebiscito, que é o que nós defendemos. A proposta do PT é além da proposta da presidente Dilma, porque partido é partido, governo é governo. Ela é presidente da República Federativa do Brasil, comanda um governo que não é do PT só, é um governo de coalizão. Então, tem suas limitações. Nós não. Nós defendemos o que eu te falei: a convocação de uma constituinte exclusiva para que nessa constituinte seja discutida a reforma e nós vamos propor nela o financiamento público e a instituição do voto em lista paritária entre homens e mulheres. Isso vai além do governo, vai além do que propõe a presidenta Dilma. Nós sabemos da dificuldade de tramitar isso nesse Congresso Nacional, por conta disso estamos coletando 1,5 milhão de assinaturas e vamos apresentar em fevereiro uma proposta, um projeto de lei de iniciativa popular. Vamos apresentar com 1,5 milhão de assinaturas, pela força que nós temos no Congresso, nossos aliados, vamos trabalhar para que comece a tramitar. E aí nós queremos que,além dessa questão da constituinte, seja convocado um plebiscito com várias perguntas para saber o que a população quer. A população quer voto distrital misto ou quer o voto proporcional como ele está, ou quer em lista? Nós temos que perguntar ao povo. Porque não adianta ficar só ali no âmbito do Congresso Nacional. O povo tem que se manifestar. Eu não sei porque tem gente aqui no Brasil que tem medo de povo.

O fortalecimento da democracia/participação direta em complementação à democracia representativa é objeto de uma reforma política? Como seria?

Nós achamos que os dois caminhos têm que ser estabelecidos. A democracia representativa é a instituição de Câmaras de Vereadores, Congresso Nacional, Assembleias Legislativas. Nós participamos desse processo, achamos que é um processo permanente, que tem que ser mantido. Ele tem que ser mais democratizado. E a democracia direta, nós achamos que o povo tem que ser consultado sobre determinadas ações que envolvem a nação. Não dá para ficar ali só no âmbito da discussão de Congresso Nacional. Nós somos a favor de plebiscitos e referendos. Quanto mais você puder levar a discussão para a população, antecedido de uma campanha na televisão para que as pessoas possam colocar suas opiniões, o povo formar conhecimento e deliberar, para nós é fundamental. Mas isso não substitui o Parlamento. Não estamos propondo o anarquismo. Nós achamos que essa coisa tem que ser combinada. O povo tem que tomar posição, não basta só votar e deixar para lá.

Eu quero dizer o seguinte: nós, do PT, somos a favor de plebiscitos e referendos. Tem vários temas que são tabus da sociedade brasileira que podem ser objeto de plebiscitos e referendos. Numa sociedade democrática, é assim que funciona. Por exemplo, não dá para você pura e simplesmente colocar uma questão sem discutir com a população. Pena de morte, menoridade penal, jogar isso assim não funciona. Tem que ser precedido de gente defendendo o por que de uma posição, o por que de outra. Porque, se não o tiro pode sair pela culatra.

Além desses temas específicos, quais as principais mudanças que uma reforma política precisa implementar?

Nós vamos ter que discutir algum tipo de cláusula de barreira porque não dá para, eleição após eleição, os partidos virarem mera legenda de aluguel ou de períodos eleitorais. Tem que ter algum tipo de cláusula de barreira, um percentual que quem não atingir esse percentual está fora do processo eleitoral. Porque não tem condição. Isso é uma forma de você criar na sociedade radicalização contra todo o processo político. Um exemplo: você tem 32 partidos que têm direito a um tempo de televisão. Tem partido que usa esse tempo de televisão fora do período eleitoral só para cacifar os seus dirigentes. Porque também é o seguinte: essa é uma discussão melindrosa porque você pega um partido de fundo ideológico que não tem tanto voto, se abrir uma cláusula de barreira. Mas você tem dois, três partidos ideológicos e uma outra gama de fisiológicos. Como é que resolve isso? Não é uma situação fácil.

Nós estamos discutindo isso, vamos sair com uma proposta nesse sentido, mas essa é uma discussão de fundo que nós vamos fazer só no nosso congresso, em dezembro. Porque tem partidos que são aliados nossos que são contra a cláusula de barreira, tem outros que são contra a coligação proporcional. E setores da grande mídia são contra os avanços porque acham que esses avanços vão favorecer o Partido dos Trabalhadores. Agora, tem um consenso na sociedade. O Congresso ainda não percebeu isso porque tem muita gente ali advogando em causa própria. Mas a população já está perdendo a paciência com esse negócio. Vai chegar um momento em que vai ter que dar uma virada nisso. Nós vamos trabalhar para isso.

Esta semana, o Congresso Nacional estava querendo fazer uma minirreforma eleitoral, que é uma coisa tímida. Nós somos contra e estamos trabalhando para que isso não ocorra.  A política brasileira precisa de mudanças concretas. Paliativo não resolve mais a situação. Primeiro, nós defendemos a convocação de uma assembleia nacional constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Porque você precisa mexer na representação dos estados, os estados maiores, que têm maior população, são sub-representados no Congresso Nacional – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul. É como se não houvesse no Brasil a institucionalização de cada cidadão com um voto. Para ser deputado nesses estados, depende muito mais proporcionalmente de ter votos do que nos estados menores. Isso é uma questão. A outra é a questão do Senado Federal. Como você pode ter três senadores em São Paulo, três no Rio de Janeiro e três em Roraima. Roraima tem uma população menor do que Bonsucesso, que é aí perto da Fiocruz. Essa situação tem que ser discutida. Você só discute isso numa constituinte exclusiva, feita para isso. Que é o quê? Convoca-se uma constituinte, elegem-se os parlamentares para trabalhar essa constituinte durante um ou dois anos. Depois, esses cidadãos voltam a ser cidadãos comuns. Não são deputados. Os deputados serão eleitos para trabalharem em cima da constituição que foi realizada. Outra coisa: não dá para continuar essa forma de financiamento privado das campanhas eleitorais e a cada dia que passa as campanhas ficam mais caras. Isso vira crise. É para ter uma crise atrás da outra no país. Então, tem que acabar com isso.

Qual a forma proposta pelo partido para a realização de uma reforma política?

Como há uma dificuldade atroz de o Congresso Nacional convocar uma constituinte, porque o Congresso é que quer fazer essas mudanças, entre aspas, por que não pergunta ao povo brasileiro se quer uma constituinte específica para isso? Volto a perguntar – eu pergunto e respondo ao mesmo tempo: por que não quer que o povo participe? Se o povo disser que não quer constituinte nenhuma, que quem tem que fazer é o Congresso, faça o Congresso. Agora, nem perguntar ao povo eles querem? Aí empurraram para 2014 achando que a gente não vai pressionar para 2014. Estou te falando: nós vamos apresentar em fevereiro uma proposta de plebiscito e um projeto de iniciativa popular com 1,5 milhão de assinaturas. Porque, diferentemente de muitos partidos aí, nós não vamos ter dificuldade de coletar assinaturas não.

A proposta de reforma política do seu partido já incorpora as reivindicações das recentes manifestações?

Primeiramente, é o que colocamos: temos que afastar o poder econômico das campanhas eleitorais do processo político. Mas, para fazer isso, tem que baratear as campanhas e ter uma forma de financiamento que exclua esses setores do processo. Então, essa é uma situação melindrosa porque você vai discutir isso com a sociedade, tem setores que vão dizer: ‘vai tirar dinheiro da saúde, da educação, do transporte para botar na política?’. Por isso que eu estou falando que tem que fazer um plebiscito para explicar para o povo por que nós temos que afastar o poder econômico. Porque é o que está na raiz de boa parte dos problemas que a gente encontra no país.

Há muitas expectativas em relação à reforma política. Quais os limites? O que não se pode esperar dela?

Não é uma panaceia para resolver os problemas brasileiros. Nós vivemos numa sociedade, e eu coloco isso com muita clareza, em que, apesar de estarmos aí há 12 anos no governo federal, muitas das coisas que a gente acha que tem que ser feita não se consegue fazer. Porque você mexe com interesses muito grandes. Um exemplo disso é a democratização dos meios de comunicação, que são concessões públicas, mas você não consegue avançar nesse diapasão. Isso é um tipo de vespeiro que você não consegue resolver com a reforma política. Você não consegue resolver com a reforma política o subfinanciamento da saúde, principalmente depois que extinguiram a CPMF. E só não extinguiram agora aqueles 10% da multa sobre o FGTS porque o governo pegou pesado. Porque tudo que favorece empresário no Congresso passa com uma facilidade tremenda; tudo que vem dos setores populares tem uma dificuldade danada para tramitar. Isso também não é um processo que se resolve com uma panaceia. Não é assim. Então, a gente sabe dos limites da democracia que nós habitamos, do Estado democrático. A maioria das instituições brasileiras é extremamente conservadora. Não se muda de um dia para o outro. A gente sabe que é um processo. Agora, como o PT trabalha para aprofundar a democracia brasileira, nós encontramos também algumas dificuldades para encaminhar as nossas propostas.

A reforma política significará uma mudança na Constituição Federal, que é considerada, de modo geral, uma constituição que incorporou pautas progressistas. O que definiu que o sistema político inscrito na constituição fosse esse?

A Constituição de 1988 foi escrita logo em seguida do fim da ditadura militar instaurada em 1964. De uma forma ou de outra, conseguiu remover vários entulhos autoritários. Existia, por exemplo, a figura do senador biônico. Isso foi extinto. Mas manteve-se o Senado Federal como representação dos estados. Uma representação igualitária, o que é, na minha avaliação, um contrassenso. Você manteve a estrutura de representação por estados criando pisos e tetos, também hoje se demonstra falha. Em determinada circunstância, ela foi bastante avançada. Mas como já tem 25 anos, nesse quesito da política eleitoral, teve questões que não avançaram.  Não avançaram não, ou que estão postas lá, como esse sistema proporcional de eleição com financiamento privado, que hoje prova-se que não funciona. Isso é um dos elementos de avanço que faltaram na Constituição de 1988. Então, na verdade, na minha avaliação, na avaliação de uma parte do nosso partido, a gente precisa fazer essa constituinte exclusiva. Porque veja bem, essa constituinte exclusiva só iria tratar de reforma política, não vai mexer em nada mais. O que for aprovado nessa constituinte exclusiva será incorporado à Constituição de 1988, substituindo teses que seriam ultrapassadas pelas novas, mas com o arcabouço jurídico institucional garantido. Nós não achamos que tem que ter uma nova Constituição no Brasil, achamos que tem que ter uma nova sistemática na política brasileira. Por exemplo, o Brasil é um dos poucos lugares do mundo em que existe uma Justiça Eleitoral. Para que uma Justiça Eleitoral? Os partidos quase que perdem autonomia nesse sentido. Isso é uma coisa que tem que ser discutida. A constituinte exclusiva vai discutir isso: se é preciso manter a estrutura da Justiça Eleitoral como está posta ou como nos demais países , a justiça ser chamada para resolver as controvérsias advindas do processo eleitoral, como é nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Argentina, no México.  Aqui no Brasil também, além da jabuticaba, tem outras jabuticabas, que se criam aqui e ficam permanente.