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Entrevista: 
Zé Maria

'Reforma política em si não resolve nada'

Zé Maria, presidente do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) fala sobre reforma política para o especial da revista Poli.
André Antunes, Cátia Guimarães, Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 01/11/2013 09h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 O Brasil precisa de uma reforma política? Por quê? Qual deve ser o objetivo maior dessa reforma?

Há dois aspectos nesta discussão, particularmente pelo momento político atual que é importante esclarecer: eu acho que o Brasil precisa de uma reforma política, o sistema político brasileiro produz o que estamos vendo no nosso país, um escândalo de corrupção atrás de outro por um lado, e, por outro lado, uma ineficiência absurda no que diz respeito a atender as demandas da população, resolver os problemas que afetam a vida da sociedade. Aparentemente isso é fruto dos erros das pessoas no comando da gestão, mas na verdade é fruto de um sistema organizado para produzir esse tipo de resultado que estamos vendo. Da necessidade de uma reforma no sistema político não há dúvida. Mas nesse momento, nós acreditamos que o debate todo que o governo federal levantou em torno da reforma política foi uma tentativa de tergiversar sobre as demandas concretas que as mobilizações da juventude, dos trabalhadores, apresentaram no país nesse momento (...)Mas isso não muda nossa opinião de que é necessária uma mudança no sistema político.

O que a voz das ruas, a partir das manifestações de junho, reivindicou pode ser traduzido numa reforma política?

A cobrança que houve nas ruas nas mobilizações de junho e julho foi de que o governo invista mais na saúde pública, no transporte público, na educação pública; que o governo promova políticas públicas para melhorar a vida da população e destine menos recursos para ajudar aqueles que já são ricos e poderosos, como as grandes empresas. Para isso não é necessária uma reforma política, basta uma decisão política do governo federal de repassar menos recursos para os bancos e grandes empresas, através do pagamento da dívida pública, de políticas de desoneração de folha, de isenções fiscais, e destine mais recursos para as políticas públicas que possam melhorar a vida das pessoas. Então quando o governo fala que é preciso fazer uma reforma política para atender às reivindicações da rua, é tergiversação pura (...) O endereço é outro das manifestações de junho. Elas se traduzem fundamentalmente na exigência de uma mudança do modelo econômico aplicado no país, que é o mesmo que era aplicado no governo do PSDB, que privilegia bancos, grandes empresas, agronegócio, em detrimento dos interesses do conjunto da sociedade. Nós temos de fato um círculo vicioso, o modelo econômico está sendo aplicado porque quem financiou a campanha eleitoral foram as grandes empresas beneficiadas por esse modelo. Agora por onde começa o combate? Começa por alocar os recursos públicos que o país tem nesse momento no financiamento daquelas políticas públicas que estão sendo cobradas nas ruas. Eu não posso concordar com a presidente quando diz que precisa fazer uma reforma política para poder investir mais na saúde e na educação, quando a própria presidente da República está no Congresso combatendo as propostas que estão sendo apresentadas lá para destinar 10% do orçamento da União para a saúde, para destinar 10% do PIB para a educação pública. As condições para isso estão dadas hoje, é uma questão de escolha. O que faço com o dinheiro? Tenho um orçamento de R$ 2 trilhões: ou eu pego esse dinheiro e dou para os bancos, que é o que o governo federal está fazendo hoje, ou pego esse dinheiro e dou para a saúde e para a educação. Essa escolha está na mão da presidência hoje, não depende de reforma política, por isso digo que o endereço direto das demandas das ruas é uma mudança no modelo econômico. Obviamente que isso não é contraditório com fazer reforma política. Se a presidência tivesse dito: ‘Olha vamos começar a mudar o modelo econômico já, destinar recursos públicos para políticas públicas, terminar com os subsídios para grandes empresas e vamos também fazer o debate da reforma política’, justo, mas não foi isso que foi feito.

As manifestações vocalizaram uma hostilidade em relação aos partidos políticos. Por quê? Isso é objeto de uma reforma política?

Eu acho que é normal e bastante compreensível que as pessoas que estavam mobilizadas em junho reagissem contra todos os partidos, porque o que as pessoas conhecem de partidos e de políticos é essa bandalheira que vemos nos jornais todos os dias. É normal que as pessoas, com o nível de informação que têm, não saiba diferenciar quais os partidos que são responsáveis por esse mar de corrupção e ineficiência na administração e gestão pública daqueles que estão na luta dos trabalhadores e que defendem seus interesses. O PSTU não teve nenhuma participação nos governos que governaram o país até hoje, temos uma opinião frontalmente oposta a essa forma de gestão pública que está aí, mas as pessoas sequer tem acesso à informação para diferenciar o PSTU dos demais partidos. Então é normal que tenham uma reação contra todos os partidos, as centrais sindicais, porque o que há de visibilidade é muito ruim. Não acho que essa opinião da população vá mudar com uma reforma política. Essa opinião iria mudar se houvesse uma mudança na prática desses partidos. O que eu acho de mudança que é possível construir no futuro com relação a isso é construir alternativas como estamos construindo com o PSTU, de dar visibilidade a essa alternativa para que as pessoas possam entender que há partidos coletivos, públicos e há os que estão aí como um negócio a mais para enriquecimento.

O fortalecimento da democracia/participação direta em complementação à democracia representativa é objeto de uma reforma política? Como seria?

Eu acho que é necessário fortalecer os mecanismos de participação direta no sistema político hoje, como os plebiscitos, os referendos, mas também não quero disseminar ilusões: acho que uma mudança no sistema político, para que se possa de fato realizar aquilo que está na Constituição, do poder exercido pelo povo e para o povo, teríamos que ter um sistema político completamente diferente desse, mais próximo da população e mais controlado cotidianamente por ela. Teríamos que ter instituições constituídas na forma de conselhos, com representantes eleitos, seja por empresas, bairros, cidades, ou por estado a depender da instância de abrangência ou das atribuições desse conselho, e que os seus representantes pudessem ter seu mandato revogado a qualquer momento. É sempre possível o representante deixar de representar de fato o interesse daqueles representados e para que tenhamos permanentemente um sistema legítimo, os representados têm que ter o direito de mudar os seus representantes a qualquer momento. Então a revogabilidade do mandato, a simplificação no processo de escolha e troca de representantes, são questões fundamentais para que tenhamos um sistema político que de fato permita participação mais direta das pessoas. É claro que vivemos num país de dimensões continentais, com 200 milhões de habitantes, não há como as pessoas se reunirem para decidir o que é melhor para o país, é preciso um sistema de representação. Mas o sistema de representação atual está muito longe de permitir qualquer participação direta da população, mesmo um plebiscito ou um referendo vão ser medidas paliativas que não vão mudar a essência da situação, temos que ter outro sistema.

Além desses temas específicos, quais as principais mudanças que uma reforma política precisa implementar?

Primeiro é preciso uma mudança no sistema partidário do país. Hoje a imprensa está de novo tratando do problema do financiamento dos partidos, do chamado fundo partidário, porque se criaram duas novas legendas, é um troca-troca de partidos no Congresso, aquele escândalo de sempre. Aí sobra para todo mundo, como se todos os partidos do Brasil tivessem o mesmo objetivo de ser um balcão de negócios. Uma boa parte das legendas existente hoje no Brasil se presta a isso: vender o tempo de TV para candidatos a presidente, a alugar legendas nos municípios, estados e em nível nacional. Mas essa não é a realidade geral. Qual é o problema que nós tínhamos que delimitar em relação a isso? Primeiro, nós achamos que o fundo partidário tem que acabar. O fundo partidário é uma reserva de recursos públicos que o Estado usa para financiar os partidos; cada partido recebe uma parcela de recursos desse fundo na medida do número de deputados ou dos votos que teve nas eleições anteriores para a Câmara. Isso está errado. O Estado não pode e não deve financiar partidos políticos com recursos públicos, cada partido tem que se sustentar e se financiar a partir da contribuição das pessoas que concordam com aquele partido. Uma agremiação política reúne pessoas que lutam por um determinado projeto para o país. É lógico que quem financie esse partido sejam as pessoas que concordam com esse projeto que o partido defende. Obrigar toda a sociedade, indistintamente das opiniões que tem cada cidadão, de financiar todos os partidos é um erro conceitual, é uma excrescência política.

Agora, com a campanha eleitoral é o oposto. O que acontece no Brasil? O Estado financia os partidos, mas quem financia as campanhas eleitorais são as grandes empresas. O problema é que a campanha eleitoral, as eleições, o sistema eleitoral, compõem um conjunto de mecanismos através do qual a população escolhe seus representantes no Legislativo e as autoridades que vão governar o país. Esse mecanismo é o que tem que estar mais protegido do poder econômico, senão isso macula o direito de escolha. É necessário assegurar condições de equidade na campanha eleitoral para que todos os partidos, todos os projetos tenham condições de igualdade para apresentar suas propostas à sociedade e a partir daí o eleitor faz sua opção consciente. Isso é obrigação do Estado garantir. É um direito não só dos partidos, mas do eleitor. Do jeito que é hoje, são os bancos e grandes empreiteiras que financiam as campanhas eleitorais, e evidentemente que só aqueles candidatos que defendem os interesses das grandes empresas conseguem visibilidade nacional. Eu já fui candidato à presidência da República e em todas as grandes eleições de que participei, uma parte grande do eleitorado brasileiro foi votar nas eleições sem sequer saber da existência da minha candidatura, porque não há como competir com uma campanha eleitoral em que uma candidata como a Dilma, por exemplo, que gastou R$ 240 milhões declarados no TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. Como vou competir com uma coisa dessas? Onde é que vou arranjar R$ 240 milhões para fazer campanha? Nosso partido tem por princípio não aceitar contribuição de empresas, de bancos, porque não queremos ter ‘rabo preso’ , somos um partido que representa interesses dos trabalhadores.

Também somos a favor do fim dos acordos comerciais que existem entre os partidos. Hoje você tem partido que apoia determinado candidato apenas porque vai receber recursos em troca da cessão daquele tempo de televisão ao qual ele tem direito. Isso é muito comum. O que nós temos hoje não são coligações políticas, são acordos comerciais, de compra e venda de legendas, que é quase que natural na política brasileira. Isso não é prática de legendas nanicas simplesmente. O principal partido de aluguel hoje é o PMDB que eleição após eleição coloca a venda o tempo de televisão que tem, depois acusa os nanicos. Entre os nanicos tem quem faz essa pratica, mas tem também o PSTU, o PCB, o PSOL, que não tem essa prática. Mas porque sou contra o fim das coligações? Porque o fato de haver esse tipo de acordo na política hoje não pode nos levar a tirar o direito de dois ou mais partidos que eventualmente têm acordo político e programático nos temas que eles julguem essenciais naquele momento político para fazer um acordo e apresentar uma candidatura única ou uma coligação única para eleger deputados numa determinada eleição. O PSTU pode num determinado momento se entender com identidade programática política com o PCB ou com o PSOL para fazer uma coligação numa eleição, e é um acordo político eleitoral absolutamente legítimo na medida em que esses partidos tenham de fato uma base programática comum que lhes permita fazer aquele acordo político. Então tirar o direito às coligações usando o argumento de que hoje existe a venda de tempo de TV não é justo porque se acaba punindo aquele que não pratica esse crime em função de que outros o praticam. Então é preciso combater a venda de legendas, essa promiscuidade que existe na política hoje sem tirar o direito legítimo de partidos se coligarem quando julgarem que têm identidade programática ou política para isso.

Qual a forma proposta pelo partido para a realização de uma reforma política?

O primeiro componente que precisamos para uma mudança desta natureza é uma mobilização popular grande que imponha mudanças na forma de decisão sobre essas coisas. Vamos eleger uma constituinte exclusiva; por esse sistema eleitoral que está aí, vai dar o mesmo Congresso Nacional que temos hoje, não adianta dar o nome de constituinte exclusiva e depois o processo de eleição é o mesmo atual; quem vai financiar as campanhas são as empreiteiras e os bancos, quem vai ser eleito são quem eles vão financiar. E o que eles vão votar? A mesma coisa que estão votando no Congresso hoje. Se não houver uma mobilização popular ampla, que imponha por força dessa mobilização mudanças no sistema que está aí, você não consegue mudar o sistema por dentro. Tem que mudar ele por fora, e isso implica mobilização popular, povo na rua. Começamos a ter isso em junho, um primeiro ensaio de mobilização popular, mas esse processo vai continuar, vamos ter outros repiques de mobilização. Temos que organizar esse processo para que haja mais consciência do que houve em junho, quando houve muita mobilização e pouca clareza do que seria mesmo necessário para mudar a realidade contra a qual eles estavam protestando ali. Temos que tratar de construir essa clareza, construir essa direção política para que nos novos processos de mobilização que vamos ter pela frente nós tenhamos um norte mais definido. É a partir desse processo de mobilização que se vai mudar o sistema político do país, não vai ser através do Congresso Nacional não. Essa reforma tem que ser feita de fora para dentro, não vai ser feita de dentro do sistema.

É de se questionar se há de fato honestidade política quando o governo federal fala em fazer reforma política, porque fazer reforma política e encaminhar para esse Congresso fazer é ‘conversa mole para boi dormir’. Esses deputados e senadores que estão hoje no Congresso Nacional, salvo raríssimas exceções, são todos eles financiados por essas grandes empresas e construíram sua vida política baseada nesse sistema funcionando como está. E vão querer mudar o sistema? Não tem sentido isso. Se houvesse de fato intenção em fazer, o governo teria que ter procurado outro caminho político para fazê-lo. E o que nos parece é tergiversação, é falar de reforma política porque não quer falar do modelo econômico, e ainda por cima falar de reforma política de uma forma que não vai levar nenhuma mudança.

A proposta de reforma política do seu partido já incorpora as reivindicações das recentes manifestações?

Incorpora. Essas medidas que eu estava dizendo, de acabar com o fundo partidário, com o financiamento privado, instituir o financiamento público, lista partidária, diminuem muito a incidência da corrupção no serviço público, que é parte das reivindicações no setor. Se você tem um sistema de representação que melhora a representatividade - porque resolver não vai resolver - você melhora a capacidade de atendimento das demandas dos trabalhadores. Agora é uma luta que não é feita em detrimento da outra. A luta começa pelo atendimento das demandas concretas do povo, dentre elas a mudança no sistema político, mas não podemos esperar uma mudança no sistema político para brigar por mais verba para a educação, saúde, moradia, transporte público, nada disso.

Há muitas expectativas em relação à reforma política. Quais os seus limites? O que não se pode esperar dela?

Reforma política em si não resolve nada, as condições para mudar a situação do povo brasileiro dependem de vontade política de quem governa, então a solução desses problemas vai depender de colocarmos no governo do país um segmento de classe que tenha interesse em fazer com que a riqueza do país seja usada para melhorar a vida do povo. O sistema político é só um instrumento para você desenvolver determinada política. Você pode ter um sistema muito bonito, mas se o objetivo político de quem governa for favorecer banqueiros, vai continuar favorecendo banqueiros em detrimento do resto. Em ultima instância, o problema fundamental é do projeto político que nos colocamos no governo do país. O PSTU se organiza como um partido que luta para que constituamos um projeto alternativo de governo de poder para o país, baseado nas organizações da classe trabalhadora, que permita a transição para outro tipo de sociedade no nosso país: uma sociedade sem propriedade privada, com democracia efetiva, com instituições de governo com representação direta baseada em conselhos, onde as organizações da classe trabalhadora governem a sociedade. Só dessa forma vamos fazer com que a sociedade funcione de acordo com os interesses da maioria da população, que é a classe trabalhadora. Esse deve ser o objetivo último.

A reforma política significará uma mudança na Constituição Federal, que é considerada, de modo geral, uma constituição que incorporou pautas progressistas. O que definiu que o sistema político inscrito na constituição fosse esse?

A Constituição de 1988 incorporou algumas demandas sociais, eu diria que não são tantas assim. Vivíamos naquela década um processo de mobilização popular muito forte no Brasil. Agora, essencialmente, essa Constituição, do ponto de vista econômico, material, defende os privilégios da classe dominante, do grande empresariado. Não defende os trabalhadores. E o sistema político que ela constituiu é um sistema político para perpetuar essa dominação, essas condições que estão estabelecidas para dispor sobre a forma com que as riquezas produzidas pela sociedade são distribuídas. É clausula pétrea, por exemplo, a defesa da propriedade privada, que é a fonte através da qual se concentra a riqueza na sociedade na qual vivemos. Poucos se apropriam do fruto do trabalho de muitos através da propriedade privada. A partir daí se exerce o poder econômico no controle do conjunto da sociedade, grandes proprietários que têm poder econômico controlam a sociedade a partir desse elemento que é constituinte da lei maior do nosso país. Não nos iludamos, se fala muito do caráter social da Constituição, mas o que tem ali é perfumaria. Os interesses de fundo nela não são os dos trabalhadores. Além disso, uma mudança nessa Constituição no contexto que temos hoje, com o Congresso que temos hoje, pode até piorar, por isso não somos muito afeitos a reforma da Constituição. Porque a sociedade capitalista é assim, de crise em crise as únicas mudanças que vem para os trabalhadores é para colocá-los em situação ainda pior.