- A “PEC da Ciência” se resume a estabelecer o piso de 2,5% do PIB brasileiro para investimento em CT&I e afirma que a emenda “entra em vigor na data de sua publicação". Qual o papel de um projeto tão sucinto?
Essa PEC é fundamental e a Academia Brasileira de Ciências, assim como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e demais atores, como jovens, professores e técnicos, ajudará a constituir esse debate. O Brasil precisa dessa política de Estado. Se olharmos a Constituição, veremos que a Emenda Constitucional nº 85 (EC 85) já descreve que o Estado tem a obrigação de financiar Ciência, Tecnologia e Inovação, mas isto não vem sendo cumprido. Ter esse percentual definido é extremamente importante. Tivemos oito anos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, nos últimos cinco anos, começando pelo fim do primeiro mandato, a Ciência começou a ser olhada como uma política de Estado, com financiamento e fluxo contínuos. A Ciência é fruto de um trabalho contínuo, se dependermos do orçamento de cada ano, dos cortes e contingenciamentos, isso acaba com a ciência. Em todos os países desenvolvidos, sem exceção, Ciência é política de Estado e independe de quem está no poder. Nos Estados Unidos, durante o governo Trump, o Congresso fez um estudo para saber por que a China estava indo tão bem. E viram: devido ao financiamento. Os chineses passaram a investir muito em pesquisa básica. E o que governo norte-americano fez? Estabeleceu que precisava haver mais recursos e colocou mais dinheiro em CT&I. O nosso Congresso teve a oportunidade de dar este apoio quando, recentemente, durante o debate da Reforma Fiscal, houve a possibilidade de deixar a Ciência fora dos ajustes, mas a Câmara dos Deputados votou em contrário e a Ciência passou a estar submetida aos possíveis cortes em nome do ajuste fiscal. Quem votou dessa forma não parou para pensar no longo prazo. O país continuará importando e não sendo autossuficiente, inclusive em commodities. É um tiro no pé. Em resumo: Ciência tem que ser política de Estado. Isto está na Constituição, mas não é praticado. Educação e Ciência não são gastos, são investimentos. No mundo inteiro, é chamado de investments, e no Brasil é gasto.
- A ABC pretende fazer contribuições ao projeto durante sua tramitação? Em caso afirmativo, quais seriam os principais pontos?
Pretendemos. O papel aceita tudo, dependerá de como será feita a redação. Quando aprovamos a EC 85, pensamos que conseguiríamos mudar o país, e não mudamos. Dessa forma, eu gostaria de não apenas ter isso (o percentual de 2,5% do PIB em investimento em CT&I) escrito na Constituição, mas realmente fazer o Brasil praticar isso. Vejamos quem estará à frente da discussão da PEC, como este debate será feito e que penduricalhos serão colocados no texto. Precisamos estar presentes nesse debate e isso precisa ser feito porque a ciência não tem cor político-partidária, ela é do povo brasileiro. Independentemente de quem estiver à frente, estaremos sempre lutando pelo que é melhor para a nação brasileira. Temos inteira convicção de que sem ciência e educação, não haverá economia que prospere. Todo mundo acha uma maravilha o que aconteceu com a Coréia. Vejam o quanto ela investe: 5,5% do PIB. Uma parte grande disso vem da indústria, mas no começo não, no começo era o Estado coreano, que fez investimentos fortes em educação de qualidade. Educação e Ciência. Essas duas palavras parecem tão pequenas, mas sem elas você não está no século 21, que é o tempo da chamada “economia do conhecimento”. A Ciência não é um bem tangível, como um prédio ou uma rua. É um bem intangível, mas de impacto duradouro. Não é à toa que os Estados Unidos, a França e a Alemanha são o que são. A Alemanha estava formando mais doutores que o Brasil, mesmo não sendo um país de dimensões continentais como o nosso.
- Como você avalia a receptividade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação ao projeto?
Qualquer projeto que pretenda colocar a Ciência como fronteira, com o Estado à frente, não terá ninguém contra. Eu vejo dessa forma e lutarei para que isso seja aprovado.
- Em sua manifestação, as entidades que compõem a ICTP.Br dizem reconhecer no Governo Federal um esforço pela recomposição do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Qual a expectativa da ABC sobre essa recomposição?
O Fundo foi recomposto, mas o que queremos, e isso provavelmente será discutido no Conselho do FNDCT para 2024, é a definição de quem decide o percentual dos recursos que são destinados aos projetos reembolsáveis, ou seja, que pega o dinheiro mas devolve pagando uma taxa de juros que é bem mais baixa hoje do que era antes, e o percentual que vai para os não reembolsáveis, aqueles que não envolvem diretamente a inovação, embora nesses projetos não reembolsáveis haja muito recurso e investimento em inovação. Para 2023, foi definida a divisão 50%-50%, pelo então Ministério da Economia, contra a legislação do FNDCT. Queremos que o Conselho discuta e decida os percentuais, mas a liberação já conseguimos.
- O Governo acaba de bloquear R$ 116 milhões do Orçamento da Capes e a PLOA de 2024 para o CNPq não indica melhorias. Como a ABC vê esse cenário?
O corte na Capes parece pequeno quando se olha o valor do orçamento do MEC, mas é um corte muito relevante quando se olha o que ele afetou. Foram bolsas, que vão desde a graduação, iniciação científica, até mestrado e doutorado. O impacto é muito grande porque a bolsa, principalmente quando se olha a pós-graduação, funciona como se fosse o salário, são pessoas que estão fazendo dedicação exclusiva. Sabemos que o governo entrou e está arrumando a casa, mas não podemos deixar que aquilo que é o futuro do país, que são os jovens, que são aqueles que vão levar a Ciência e a Educação para a frente, sejam prejudicados. Então apelamos para que o governo reverta esta situação.
- Os senadores signatários da PEC não poderiam aproveitar esse cenário para comprovarem seu compromisso com a CT&I buscando, no parlamento, a manutenção e expansão do orçamento na área?
Com certeza, e os senadores fizeram isso. Eles colocaram que todas as rubricas que eram de Ciência não poderiam estar no limite de gastos, do teto de gastos. Quando chegou na Câmara, os deputados votaram e derrubaram isso. O Senado fez a parte dele. Quem não fez a lição de casa foi a Câmara dos Deputados. Fizeram o contrário: colocaram a gente em uma situação de penúria.
- Tanto a PEC quanto a manifestação da ICTP.Br defendem o percentual a partir de uma comparação com o investimento de outros países, com economias, ativos e potencialidades distintas. O ponto de partida não deveria ser a necessidade do Brasil?
Isso está sendo colocado, é com base nas necessidades do Brasil. Esses 2,5% são um percentual mínimo. Quando olhamos para outros países, vemos que é onde se tem que começar mesmo, para que o Brasil volte a ser uma das dez primeiras economias do mundo. O que se precisa entender é que até commodity, agricultura, é Ciência. Extrair minério – e não falo do que criminosos fazem na Amazônia, mas da mineração dentro das normas – é alta tecnologia, é alta Ciência. Quando eu era criança, o Brasil importava alimentos. O que temos agora não foi milagre. Não foi o milagre da multiplicação, foi muito trabalho, muita Ciência, trabalho das escolas de agricultura com a Embrapa e outros órgãos de pesquisa. O Brasil está investindo, segundo o último dado oficial, de 2019, 1,1% de seu PIB em CT&I. Os Estados Unidos, uma economia muito maior que a nossa, investem quase 3%. A China, 2,9%. Além disso sofremos o problema da falta de continuidade. Não se consegue fazer Ciência com solavancos, vem um susto, sobe o investimento, depois, cai. Esses outros países têm a certeza da continuidade, no Brasil não temos isso.
- O investimento de 2,5% do PIB em CT&I é suficiente para atingirmos a transição energética, a reindustrialização e o atingimento de nossos diferenciais competitivos, como o estabelecimento de uma bioeconomia?
Eu diria que é o começo. A partir daí, na hora em que o estado brasileiro passar a investir, a indústria investirá mais. Veremos o crescimento pelo setor econômico não governamental. Por outro lado, se o governo não sinalizar que isso é relevante... Eu não esqueço que o governo anterior dizia que o Brasil não precisava de inovação, que quando ele quisesse, ele comprava. E vimos na pandemia, se não fosse a Ciência brasileira, a indústria brasileira que se reorganizou e as universidades, o número de mortes teria sido muito maior, pois até álcool em gel faltou. Então esse é o começo. Se conseguirmos isso, alavancaremos o país.
- Na hipótese de a PEC ser aprovada, o ‘dinheiro extra’ deveria ser priorizado para que órgãos e programas?
Não é possível abordar isso agora. Por enquanto, temos que lutar para que a proposta seja aprovada. A 5ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia [prevista para junho de 2024] discutirá as prioridades. O Brasil não será o melhor do mundo em tudo, precisamos selecionar nossas prioridades. O Brasil é bom em várias coisas e temos que analisar em quais temos chances de estar entre os melhores.
- Como novos investimentos em CT&I podem impactar no papel desempenhado pelo Brasil na economia global e na geração de melhores empregos?
Tenho afirmado isso há muitos anos: o Brasil está ficando velho, sem ter formado e escolarizado a sociedade que vai ser o futuro. Temos ainda uma pequena janela de oportunidade de investir no jovem, para uma profissão que ainda não temos certeza de como será. Sabemos que o mundo está mudando, e sem educação não é possível ter Ciência. Temos que ensinar o jovem a criar, a pensar. Cada vez mais, o mundo será digital. A Inteligência Artificial está aí. Vai desempregar muita gente, mas vai gerar outros empregos. Essa janela de oportunidade vai até 2050, é amanhã. Depois disso, nossa taxa de crescimento ficará em 0,5%, e a do restante do mundo acima de 1%, em vários países.
- De que forma nossos sistemas públicos de Saúde e de Educação – superior e também de Ensino Profissional e Técnico – são impactados pelo orçamento disponível para CT&I?
Além do que respondi acima, vemos que a Índia já passou a China em número de nascimentos. Nós estamos nos transformando em uma população mais velha. Uma população que necessitará de mais cuidados em saúde. Tudo isso está conectado e são áreas que definirão o Brasil do futuro. Sem educação, não teremos saúde, não teremos Ciência, não teremos nada.