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Entrevista: 
Felipe Demier

‘Talvez a gente esteja assistindo ao surgimento de um novo padrão de golpe’

Nem militares, nem quebra na democracia. Para o historiador Felipe Demier vimos no dia 31 de agosto com a deposição de Dilma Rousseff um novo tipo de golpe. Mas para entendê-lo, é preciso dar alguns passos atrás na história e analisar como se constituiu nosso regime democrático. Segundo o professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vivemos em uma democracia blindada. Com os “poros fechados” para os interesses populares, as democracias ocidentais têm aperfeiçoado seus vários instrumentos de blindagem desde os anos 1980, quando se formataram para permitir no teatro da representação política apenas os desejos do capital. Efetivar contrarreformas, retirar direitos, implantar ajustes fiscais têm sido sua função. Não por acaso, o script do governo de Michel Temer contém todos esses ‘objetivos’. “Ele foi colocado lá para isso”, nota Demier que analisa, contudo, de maneira singular ao tom geral o que foi “golpeado”. Para ele não houve golpe na democracia, mas golpe no governo – e isso só aconteceu graças à democracia blindada: “O atual regime democrático blindado se mostra capaz de, por meio dos seus próprios procedimentos constitutivos, substituir peças políticas incômodas quando for necessário para o capital sem ter de alterar o próprio regime como antes era o padrão clássico dos golpes políticos. Por meio da democracia blindada, a classe dominante brasileira se vê dispensada da tarefa de um golpe de regime propriamente dito, de um golpe militar. É uma democracia tão blindada que se mostra capaz de caçar o sufrágio universal de 54,5 milhões de brasileiros sem ter que recorrer a um golpe de força”.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 02/09/2016 11h33 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Primeiramente, foi ou não um golpe a decisão de destituir Dilma Rousseff da Presidência da República?

Sim, foi um golpe. Mas não um golpe no regime na medida em que a deposição do governo não acarreta conjuntamente, como em outros episódios da história política brasileira e mundial, a mudança no regime. É um golpe de governo articulado por vários setores sociais, incluindo parte do aparelho do Estado como o parlamento e o Judiciário, além do sistema midiático e das forças sociais mais organicamente ligadas ao capital. Não há um golpe no sentido de modificar o regime político, mas sim de depor um governo caçando o sufrágio universal. Nesse sentido é um golpe.

Nas manifestações contra o impeachment, alguns cartazes destacavam que 61 votos no Senado anularam 54 milhões de votos populares. Alguns senadores – como Acir Gurgacz (PDT/RO)– afirmaram que não houve crime de responsabilidade, mas não havia governabilidade e a manutenção de Dilma no poder significaria um recrudescimento da crise econômica. O procedimento foi político, mas as razões apontadas foram econômicas. O que isso nos diz sobre a relação entre política e economia?

A relação entre política e economia é o que vai explicar quase todos os processos políticos pelo menos no que diz respeito à ‘grande política’. No caso atual, a crise econômica começou a se manifestar aqui no segundo mandato da Dilma e acabou por contribuir para a derrocada do projeto de concertação social – ou o que alguns chamam pacto social lulista. Isso fez com que parte da burguesia brasileira e, com o tempo gradativamente, todo o conjunto da classe dominante brasileira tenha optado por uma substituição da representação política no poder antes dos prazos determinados pela Constituição, visando recuperar o crescimento econômico, as taxas de lucro. Então há uma determinação econômica nesse sentido. Aos olhos da burguesia brasileira – e não interessa mais se isso era verdadeiro ou não – o PT já não era visto como um partido capaz de fazer as contrarreformas e o ajuste fiscal no grau, na intensidade e na velocidade exigidos pela crise econômica. Embora o PT tenha se esforçado para tentar mostrar que poderia fazer. Mas o que importa é que para a classe dominante brasileira a superação dessa crise passa pela retirada de direitos e pelo ajuste fiscal e o PT não era visto como um partido capaz de fazer isso.

No artigo do livro ‘A onda conservadora’ você escreveu que as manifestações de 2015 tinham como objetivo desgastar o governo até as próximas eleições presidenciais, em 2018. Porque se pegou um atalho?

Parece que antes que a classe dominante brasileira  optasse pelo atalho, as próprias direções políticas da classe dominante, isto é, a oposição de direita, viu na crise econômica uma brecha para se lançar numa luta antes do calendário eleitoral visando recuperar o poder perdido há 13 anos.

Você está falando do senador Aécio Neves que contestou o resultado das eleições de 2014?

Do PSDB. É um aparato político monstruoso que ganhou a confiança e o respeito da classe dominante brasileira porque construiu na década de 1990 uma hegemonia burguesa no Brasil depois de décadas de crise de hegemonia e o fez por meio do plano real, mas, sobretudo, realizando as privatizações e o ajuste neoliberal na economia. Para um partido com a dimensão do PSDB ficar fora do poder federal por 13 anos é algo muito prejudicial, quase insustentável. E, para usar uma metáfora futebolística, o PSDB se lançou numa luta para recuperar a titularidade da representação política da burguesia brasileira. Sentiram que dava para explorar a crise. Mas quero deixar claro que eles começam o movimento antes. Se há algo que o PT diz que é factível é que a oposição de direita tentou inviabilizar o governo desde o seu primeiro dia, o tal do 3º turno é verdade. Mas o fato é que ela consegue, primeiro, um lastro social dos setores médios em crise – em vias de proletarização, com aumento do custo de vida, encarecimento do consumo – que oferece uma base social que permite que leve a cabo essa tentativa de retomada do Estado antes das eleições. E a burguesia vai aderindo ao longo do processo. Depois da manifestação de março de 2015, gradativamente as frações do capital vão aderindo ao projeto do golpe. O setor industrial – a Fiesp –, setores do agronegócio, o setor financeiro que é sempre o último a se posicionar. Tudo isso, claro, já contando com o apoio de massas dos setores médios mais conservadores que se opõem muito mais ao que o PT foi um dia do que ao que era quando foi deposto e aqueles que nunca aceitaram sequer as políticas sociais compensatórias do partido.

E quais eram os interesses do chamado ‘baixo centrão’ para pegar esse atalho?

O PMDB talvez simbolize essa ala do centrão da direita. O PT dormiu com o inimigo e sabia disso. Talvez tenha dormido pensando em amor, mas o PMDB nunca pensou em algo mais do que um sexo ocasional. Quando ele percebe que a maré virou, e tendo a possibilidade de chegar ao poder – indiretamente pelo voto, mas diretamente com um homem dele na presidência – ele [o partido] se desloca. O PMDB nunca esteve fora do aparato federal desde a redemocratização. É fato que isso expressa o equívoco das opções políticas do PT que buscou sempre se coligar com os setores mais conservadores, fisiológicos, tradicionalistas da burguesia brasileira – e dos seus representantes no Congresso - até como uma forma de, segundo eles, garantir governabilidade e isolar o que seria um setor mais ideológico da oposição de direita, neoliberal mesmo – PSDB, DEM. Num momento de crise é obvio que esses setores do centrão se deslocariam para onde a maré levasse. Assim como se as mobilizações de rua se esvaziassem e se a burguesia brasileira não tivesse aderido a uma proposta golpista – tivesse ponderado que já que a sua lucratividade continua alta mesmo com a crise não valeria a pena uma convulsão política – o PMDB teria tomado uma postura firme de rechaço ao impeachment.

Você tem falado das democracias blindadas, mas antes de entrar nisso, queria falar de outra blindagem, expressão muito usada nos jornais para falar do instinto de autoproteção dos políticos, que aderem ao impeachment como uma forma de ter maior controle sobre a Lava Jato na medida em que vários estão na mira da investigação. Você concorda com essa leitura? Ou não é um elemento tão preponderante para a gente entender o atalho?

Primeiro, tem que quebrar uma visão juridicista ou técnica da Lava Jato como se um belo dia a operação tivesse começado e se transformado em um elemento no cenário com o qual as forças políticas tinham que lidar. Eu acho que a Lava Jato é parte do processo golpista e que talvez até envolva aspirações de setores do capital internacional interessados em áreas estratégicas da economia brasileira, como construção e petróleo. Desde o seu início a operação tem um conteúdo claramente político que se expressa pela punitividade seletiva do [juiz] Sergio Moro. A não ser que a gente acredite numa autonomia e independência totais da Polícia Federal, do Judiciário, dos aparelhos de Estado, o que não condiz com a realidade. A Lava Jato foi desde sempre um instrumento da oposição de direita. Todas as delações premiadas e todo o processo eram direcionados para atingir quadros do governo federal: PT, PMDB e PP. Mas é fato que uma vez o processo desencadeado alguns aspectos de autonomia relativa aparecem. Aquela gravação do Romero Jucá expressa que já tendo atingido o objetivo de limar o PT, por conta das cobranças sociais em determinado momento as coisas poderiam ir mais além atingindo quadros do governo interino e da oposição de direita. Isso, sim, pode levar a uma blindagem nesse sentido mais comum utilizado pela imprensa de proteger certos políticos e num grande acordo encerrar a Lava Jato apenas com a punição dos quadros do PT. E aí aquela hipótese que foi depreendida através das declarações do Jucá de que a Dilma não teria aceitado nenhum acordo em relação a isso.

O que é democracia blindada e como esse conceito ajuda a entender o que está acontecendo no Brasil hoje?

É uma nova configuração das democracias liberais contemporâneas que vão ser reformatadas a partir do final dos anos 1970, a partir da necessidade de o capital recuperar as taxas de lucro que levou, no caso da Europa, a um desmonte de aspectos vertebrais do Estado de Bem Estar Social. Na medida em que a dominação de classe e os interesses do capital exigem contrarreformas e retirada de direitos, as estruturas políticas responsáveis por essas tarefas precisam também ser reformatadas de modo a minimizar ou bloquear completamente – daí a blindagem – posições políticas que levem em conta os interesses populares por reformas sociais. As democracias liberais do pós-guerra europeu eram baseadas em reformas e direitos sociais e tinham dentro das instâncias do regime – não só do Executivo, mas, sobretudo, no parlamento – representações políticas que defendiam direitos sociais mesmo que de forma distorcida. E aí não estou me referindo a críticos do capitalismo, mas a defensores de reformas. A partir dos anos 1980 a concepção de direito social não é mais elemento definidor da democracia representativa. Há uma volta às origens da concepção liberal de democracia. Para que esse conteúdo contrarreformista substitua o conteúdo reformista, todas as expressões políticas que representavam interesses da classe trabalhadora e dos movimentos sociais tiveram que ser transformadas. A ideia da democracia blindada é que a pressão popular, a pressão das ruas não encontre mais espaço nas instâncias representativas do regime.

Como isso se dá?

Em primeiro lugar o transformismo de boa parte dessas representações políticas que antes expressavam, mesmo que de forma moderada, o interesse por reformas. Os partidos socialdemocratas vão se converter, em alguns casos de forma muito acelerada, em partidos contrarreformistas, ou se a gente quiser, em partidos sociais liberais. Além do transformismo, uma série de mecanismos institucionais são criados e progressivamente lapidados para fechar os poros do regime democrático à entrada de verdadeiros representantes dos interesses populares. Já não se trata de um sistema político representativo imune à entrada de posturas anticapitalistas, revolucionárias, socialistas radicais, mas que torna praticamente impossível a entrada de defensores de direitos sociais.

E esses mecanismos são vários. Um deles é a grande mídia. A mídia empresarial hoje é um dos elementos constitutivos do regime. Não é externo no sentido de defender ideias compatíveis que possam cimentar ideologicamente o regime. Não. Muitas vezes as mídias cumprem o papel do grande partido da burguesia. E isso fica claro na pauta política da grande imprensa: a redução da grande política sempre à pequena política, o menosprezo por qualquer forma de política extraparlamentar, a cobertura parcial dos eventos de natureza política, o constante ataque aos movimentos sociais, a criminalização das lutas sociais, a blindagem – aí no sentido convencional e ao mesmo tempo no meu sentido – dos governos quando são interessantes para a classe dominante. E vai além, no rebaixamento do nível do debate cultural no país, com um que se aproxima de níveis de indigência intelectual. Tudo isso favorece o processo de despolitização e a não participação do cidadão na vida política. E, portanto, torna cada vez mais as instâncias políticas um espaço somente pertencente aos grupos políticos tradicionais fiéis à classe dominante. A blindagem tem a função de que só os partidos que têm acordo com o dogma do capital participem com força do sistema político hoje. Têm que defender o ajuste fiscal, a retirada de direitos. E do ponto de vista institucional são aprovadas contrarreformas que vão mudando o sistema eleitoral.

Como essa que tirou candidatos competitivos do debate na televisão?

Chegamos a esse momento quase cômico de se excluir candidatos competitivos do debate a partir de um direito da emissora ou de um voto de veto dos outros candidatos. Outros elementos são o tempo de televisão, o financiamento de campanha, tudo uma blindagem que consegue isolar elementos incômodos para a democracia liberal contrarreformista.

E como esse conceito ajuda a entender o que está acontecendo no Brasil hoje?

Voltando ao golpe: como eu disse, diferentemente do que alguns alegam, não há um golpe na democracia, há um golpe no governo. Em uma primeira dimensão de análise, isso pode ser lido como uma prova de força do atual regime democrático blindado porque ele se mostra capaz, por meio dos seus próprios procedimentos constitutivos, de substituir peças políticas incômodas quando for necessário para o capital sem ter de alterar o próprio regime como antes era o padrão clássico dos golpes políticos. Por meio da democracia blindada, a classe dominante brasileira se vê dispensada da tarefa de um golpe de regime propriamente dito, de um golpe militar. É uma democracia tão blindada que se mostra capaz de caçar o sufrágio universal de 54,5 milhões de brasileiros sem ter que recorrer a um golpe de força. Por outro lado, há potencialmente um elemento de fraqueza na medida em que ela se mostra uma democracia muito inflexível às aspirações populares.

Ela acaba se expondo?

Sim. Ela se mostra capaz de cassar o voto popular e incapaz de incorporar demandas sociais progressivas – e mais ainda – se vê impelida a implementar de forma acelerada as contrarreformas e, assim, coloca em risco a sua legitimidade. A sua sustentação social enquanto forma de dominação consensual. Se essa fragilidade vai se manifestar ou não só as mobilizações sociais dirão. Talvez a gente esteja assistindo ao surgimento de um novo padrão de golpe. Novos tipos de golpe associados a novos tipos de democracia já blindadas. Como no caso paraguaio, por exemplo.

Esse conceito também ajuda a entender o que está acontecendo na América Latina nesse momento levando em conta que, pelo menos na América do Sul, tivemos governos que acenavam para algumas aspirações da população, ainda que com políticas focalizadas?

Assistimos ao esgotamento dessas experiências neopopulistas. Eram regimes políticos que formataram um novo padrão de pacto social no qual as demandas populares são incorporadas às políticas públicas e as massas são um elemento importante de sustentação de um aparelho burocrático relativamente autônomo, com um projeto neodesenvolvimentista ou um projeto que busca um grau de manobra dessas economias periféricas no sistema internacional. Essas experiências que inegavelmente tiveram méritos tanto no caso do Equador, da Bolívia e da Venezuela se depararam com seus próprios limites constitutivos. Ao não ir além da crítica antineoliberal e não colocar em pauta a superação, por obra da própria classe trabalhadora, de uma perspectiva capitalista. Pela sua dimensão periférica num cenário de crise econômica mundial, acabaram se vendo diante de uma ofensiva da burguesia nativa que nunca viu esses governos neopopulistas como seus governos e que agora se encontra numa conjuntura mais favorável para retomar o poder. No caso da Venezuela essa burguesia tentou durante muito tempo a via golpista clássica e agora parece ter aderido a uma tentativa de voltar pelo processo eleitoral. O caso do Paraguai é exemplar desse novo padrão de golpe nas democracias blindadas na periferia do sistema, em que, pelos próprios mecanismos institucionais, parlamentares, você substitui um governante que, naquela conjuntura, se mostrava incômodo aos anseios do capital, da classe dominante local.

Quando nasce a democracia blindada aqui?

Os estudiosos marxistas da transição começam a encontrar, ainda em fins de governo Médici – portanto no auge da ditadura – um projeto de transição daquele regime ditatorial para uma democracia de tipo restrita que vai se acelerar nos governos Geisel e Figueiredo. E esse processo vai se desenvolver e, em sentido geral, na cultura da própria ditadura e, portanto, a classe dominante orgânica vai manter a direção do processo. Mas o fato é que esse processo de construção de uma democracia blindada vai ser em um primeiro momento limitado pela presença do movimento popular, que vai se expressar no novo sindicalismo, nos movimentos sociais, no MST, na CUT e no PT. Mas esse processo blindado vai ser em um primeiro momento limitado pela reaparição da classe operária e do movimento popular, que vai se expressar no novo sindicalismo, nos movimentos sociais, nomeadamente no MST, na CUT e no PT. Essas lutas sociais atravessam a harmonia da transição burguesa. Isso tudo vai se expressar no caráter híbrido, contraditório da própria Constituição de 1988 que, se por um lado, já contém aspectos de uma democracia liberal em processo de blindagem, por outro contém também uma série de direitos sociais que expressam a presença e a força do movimento popular. A Constituição instaura o sufrágio universal, a independência entre os poderes e o sistema representativo liberal, mas mantém dispositivos de tutela que concede aos militares o papel de recorrer, em casos de necessidade, pela força para manter a ‘lei e a ordem’. De qualquer forma, muitos aspectos progressistas da Constituição de 1988 sequer regulamentados já começam a ser atacados a partir dos anos 1990 naquela experiência um pouco aventureira do governo Collor. A sintonização da economia brasileira ao neoliberalismo a partir da experiência do Collor já começa a contrarreformar aquelas conquistas, que ou não saíram do papel ou saíram de forma muito precária por conta do desfinanciamento. Uma série de coisas: privatizações, abertura ao capital privado das áreas estratégicas do Estado, desvinculação dos recursos da União, a DRU. Começa a se avançar, agora em linha mais direta, na construção dos mecanismos da blindagem. No entanto, o PT funcionou nos anos 1990 ainda como um partido que obstaculizava essa blindagem da democracia pelo simples fato de funcionar ele mesmo, dentro das instâncias do regime, como um partido defensor de direitos sociais e reformas sociais.

A forma de blindar tem diferença entre os governos puro-sangue como foram FHC e será provavelmente agora o governo Temer e os governos do PT?

O PT aderiu à plataforma contrarreformista fazendo com que a blindagem possa avançar de forma mais clara. Ele contribuiu para o fechamento das instituições do regime à entrada de setores que defendem o que antes o PT defendia. E os governos do partido retiraram direitos e realizaram contrarreformas. A diferença é que o PT faz isso combinando com políticas sociais focalizadas.

Então tem uma diferença com a blindagem ‘puro-sangue’?

Eu não diria que tem uma diferença da blindagem, eu diria que é a forma pela qual a ala esquerda do regime blindado opera. Ele compartilha com o partido da direita clássica os eixos macroeconômicos do grande capital, mas combina isso a uma cidadania pelo consumo. Por quê? Porque ele já não pode mais implementar reformas nas áreas sociais. Porque ele precisa abrir essas áreas para o capital privado ao mesmo tempo em que precisa conter os gastos sociais para fazer o superávit. E compensa isso abrindo aos setores populares a possibilidade de acesso a bens e serviços do mercado, o que, aliás, dinamiza a economia beneficiando os próprios setores do capital. A concertação social não é mais ligada a direitos, mas a celular, televisão de plasma, moto. Mas se tiver um acidente, a pessoa não vai ter um hospital público de qualidade para atendê-la, seu filho não vai poder entrar em uma escola pública de qualidade, não vai ter aposentadoria, e os trabalhadores vão poder usar o WhatsApp enquanto passam de duas a três horas no deslocamento da casa para o trabalho por conta da ausência de reformas na mobilidade urbana, pois moram longe já que os aluguéis são caros. É uma limitação da cidadania que talvez até ajude a explicar o fato de esses setores populares não saírem em defesa do PT agora.

Quando esse processo de crise política se acirrou com a abertura do processo de impeachment, muitos analistas anunciavam que o Brasil iria pegar fogo. Como você avalia a reação até aqui e o que podemos esperar?

Houve por parte de alguns movimentos sociais, de alguns partidos de esquerda, da própria frente de esquerda que está se formando nos estados, tentativas de resistência ao golpe e já antecipando a resistência às contrarreformas do governo interino, agora governo fixo. E nesse processo, aliás, houve uma espécie de volta para as ruas de um setor que buscou quase que tardiamente uma identidade com o PT ou que já tinha abandonado a militância, mas que, diante da ofensiva golpista, voltou às ruas e muitas vezes com uma imagem do PT como se o PT golpeado fosse aquele partido dos anos 1980 ou 1990. É um setor social que tem que ser disputado pela Frente de Esquerda Socialista. Por outro lado, dois aspectos ajudam a explicar o fato de a resistência até o momento não ter sido ampla, significativa ou não ter pegado fogo. O primeiro é que as contrarreformas anunciadas ainda não se efetivaram.  Os próprios setores da burguesia estão cobrando do Temer maior celeridade nisso, enquanto ele espertamente esperava ser efetivado como presidente e acredito que vá esperar as eleições municipais. O segundo aspecto é o fato de que o próprio PT não resistiu ao golpe. Se ele conseguiria ou não é algo que a gente nunca vai saber. Mas a verdade é que o PT faz uma resposta muito tímida à ofensiva golpista. Ele prioriza e privilegia os caminhos institucionais para bloquear o golpe. Tenta fazer acordos, tenta recompor com o PMDB, tenta oferecer cargos, tenta conseguir os votos necessários na Câmara e os votos necessários no Senado – e tenta sempre com argumentação técnica, jurídica. Não há dúvidas de que Eduardo Cardozo está léguas à frente da Janaína Paschoal. Mas o fato é que se tratou de um processo político. O PT até ensaiou uma reação naquela manifestação da Avenida Paulista em que o Lula foi e acho que se surpreendeu com o número de pessoas que compareceu. Possivelmente, se chamasse outras na sequência, levaria muitas pessoas às ruas. Eles poderiam tonificar a musculatura das manifestações, se o PT quisesse de fato convocar suas bases sindicais via CUT, se fizesse discursos, ainda que demagógicos, mas se apresentando como defensor dos direitos contra o golpe. A gente nunca vai saber se teria conseguido impedir o golpe, mas poderia ter criado um movimento de resistência. Mas me parece que o PT temeu muito mais a conflagração social que poderia sair do controle, que poderia ameaçar a própria democracia blindada. O PT prefere a deposição a acirrar o processo de luta de classes no país.

No pronunciamento do dia 31, Michel Temer afirmou que os alicerces do seu governo serão “eficiência administrativa, retomada do crescimento econômico, geração de emprego, segurança jurídica, ampliação dos programas sociais e a pacificação do país”. O que na sua opinião será a ‘pacificação’ do país?

O que o Temer deseja é que essa polarização social que se acirrou já nos últimos dois anos se encerre. Se a gente quiser ousar na explicação, a opção política da burguesia foi subordinar a economia à política. Eles sabiam que a própria dinâmica de recuperação da economia seria atrapalhada pelo processo golpista, mas optaram por isso. E agora têm que inverter. Agora tem que subordinar a política à economia novamente. E tem que ser rápido. Tudo que o capital deseja é que a classe trabalhadora aceite perder direitos em nome de uma repactuação nacional.

Ou aceitem por medo da ‘pacificação’?

Sim. Se avizinha uma combinação cada vez maior de contrarreformas e recrudescimento policial. Nada do que o Temer fale pode mudar muito isso porque o fato é que ele foi colocado lá para isso, para realizar o ajuste, as contrarreformas em uma intensidade maior do que o PT. E, para fazer isso, ele vai ter que realizar os ataques propriamente ditos e combater as resistências aos ataques. E daí o aumento da repressão, que já vem ocorrendo desde que ele tomou posse, tende a crescer. Talvez possa ser uma pacificação militarizada. É a paz que se origina da ponta do fuzil.