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Mais de 280 mil pessoas querem o confisco de terras onde há escravidão

Abaixo assinado com 280 mil assinaturas foientregue ao presidente da Câmara durante encontro que reuniu defensores da PECdo trabalho escravo. Constituição já determina desapropriação de terras onde hátrabalhadores escravizados.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 02/06/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


O Estatuto da Terra define que a propriedade rural deve cumprir uma função social. E cumprir uma
função social significa, entre outros aspectos, “favorecer o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas
famílias” e “observar as disposições legais que regulam as justas relações de
trabalho entre os que a possuem e a cultivem”. A Constituição Federal de 1988
reafirma o mesmo no artigo 186. Dessa maneira, pode-se dizer que uma
propriedade rural onde trabalhadores são mantidos em condições de escravidão
não está cumprindo a função social, já que não há bem estar dos trabalhadores e
nem observância às disposições legais que regulam as relações de trabalho. Mas
os movimentos sociais e entidades que lutam pela erradicação do trabalho
escravo querem ir além: pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001 ,
nas propriedades onde houver comprovadamente trabalhadores mantidos em condição
de escravidão, as terras devem ser confiscadas.



O advogado da Comissão Pastoral
da Terra (CPT), José Batista Afonso, explica a diferença entre a PEC e o que já
estava previsto na Constituição. “Pela Constituição, uma propriedade que foi
flagrada submetendo os trabalhadores a trabalho escravo poderia ser
desapropriada. A desapropriação paga pela terra e pelas benfeitorias
implantadas naquele imóvel. Já no confisco, o proprietário não é indenizado”,
diz. Ele fala ainda que, com a aprovação da PEC, o confisco das terras seria
como uma penalidade para o proprietário. “A desapropriação de certa forma ainda
representa um prêmio para o infrator. No caso do confisco, o proprietário teria
uma condenação financeira e sabemos muito bem que no Brasil o que mais incomoda
estes setores é o que mexe com o bolso”, opina.



De 25 a 27 de maio foi realizado
em Brasília, O I Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, onde
movimentos sociais, entidades, governo federal e parlamentares se reuniram para
buscar estratégias de pressão para que a PEC 438/2001 seja aprovada. Durante o
encontro, os participantes entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados,
Michel Temer (PMDB/SP) um abaixo-assinado contendo 280 mil assinaturas a favor
da aprovação da proposta, também conhecida como PEC do trabalho escravo.
Ministros, deputados, representantes de movimentos e artistas participaram do
ato de entrega das assinaturas.



De acordo com participantes do
encontro, o deputado Michel Temer se comprometeu a dialogar com os líderes dos
partidos a respeito do tema para que seja apreciado pelo plenário e também
aprovado. “Estamos no aguardo de informações. Uma grande quantidade de
deputados é a favor da PEC. Acreditamos que, se colocada em votação, em ano
eleitoral, com quorum, muito dificilmente ela perderá. Então, é uma questão de
ser colocada em votação, mas depende de entrar na pauta”, informa o cientista
social e coordenador da ONG Repórter Brasil, que atua no combate ao trabalho escravo,
Leonardo Sakamoto.



Para o cientista social, o balanço do encontro é
extremamente positivo. “O encontro conseguiu agregar diversos setores para
discutir não só o problema do trabalho escravo em si, mas o que falta fazer
para combater o problema. O movimento de combate ao trabalho escravo decidiu
intensificar a atuação para a aprovação da PEC. Foi consenso que se deve
avançar na pressão popular pela aprovação e que, ao mesmo tempo, seria
importante todas as entidades trabalharem nas suas bases, para forçarem os seus
representantes políticos a adotarem um comportamento pró-ativo pela aprovação
desta lei”, avalia Sakamoto.



Mecanismo mais eficiente contra trabalho escravo



Atualmente, no Brasil, é
considerado escravo tanto o trabalho que se dá com cerceamento da liberdade
quanto o trabalho degradante ou exaustivo, que significa a perda de dignidade.
Embora muito presente nas fazendas de agronegócio, o trabalho escravo está
presente — e crescendo — também nas áreas urbanas. Para se ter uma ideia, dados
da Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego,
mostram que, em 2009, o Rio de Janeiro foi o estado brasileiro com maior número
de trabalhadores em condição de escravidão libertados.



Leonardo Sakamoto explica que
hoje há vários instrumentos para se combater o trabalho escravo, mas que nem
todos são eficazes. “Se o fazendeiro utiliza a propriedade da terra para
explorar uma pessoa, é claro que se ele for destituído dessa propriedade será
uma punição exemplar. Eu não gosto da sociedade punitiva, mas tem limites, você
tem que garantir que a propriedade seja usada não para a exploração de muitos e
o bem de poucos, então, falta uma punição severa”, justifica.



O advogado José Batista Afonso
afirma que a concentração da terra é uma das causas geradoras do trabalho
escravo. Ele lembra que todos os casos denunciados de trabalho escravo ocorrem
em grandes propriedades. Outras causas do trabalho escravo, segundo ele, são a
impunidade, ausência de política eficiente de Reforma Agrária, de geração de
emprego e renda para as famílias mais pobres dos estados onde a maioria dos
trabalhadores são aliciados. “A erradicação é um passo possível, mas sem
medidas que atinjam estas causas, infelizmente ficamos mais no combate ao
trabalho escravo”, diz.



José Batista explica que a
impunidade nos casos de fazendeiros escravagistas ocorre, entre outras razões,
pela indefinição da competência para processar e julgar os casos de trabalho
escravo. Até 2006, de acordo com o advogado, esta competência estava indefinida,
ora sendo assumida pela justiça comum, ora pela Justiça Federal. “Em 2006, o
Supremo definiu que a competência é federal, mas infelizmente já tem uma outra
decisão mais recente que questiona novamente esta competência, agora ela está
temporariamente na Justiça Federal”, detalha.



Segundo ele, após a definição de
que a Justiça Federal é a responsável por julgar o crime, já houve mais de 40
condenações. “Sem dúvida essa definição é fundamental. È claro que quem está
por trás dos crimes de trabalho escravo são grandes fazendeiros, grandes grupos
econômicos, pessoas que têm poder aquisitivo muito grande e influências
políticas fortes, o que é um complicador para punição”, reafirma.



A pena atual para quem submete
trabalhadores à condição de escravidão é de quatro a oito anos em regime
fechado. José Batista observa que se o proprietário rural estiver cometendo
também outros crimes, como grilagem de terra pública ou desmatamento ilegal,
por exemplo, a pena pode ser aumentada. Ele conta, no entanto, que das condenações
já feitas pela Justiça Federal, quase todos os fazendeiros estão recorrendo da
sentença em liberdade, já que a condenação foi em primeira instância. “A
informação que temos é que apenas um dos proprietários acusados encontra-se
preso atualmente, porque ele já estava preso por outro crime antes da
condenação”, relata.



Como uma terra pode ser desapropriada?



Atualmente, uma propriedade rural pode ser desapropriada
de duas formas no Brasil: se for improdutiva ou se não cumprir a função social.
Mas de acordo com o advogado da CPT, até o momento apenas uma propriedade foi
desapropriada por não cumprir a função social, todos os outros casos se referem
a desapropriações de terras improdutivas.



Além do bem estar dos proprietários e dos trabalhadores e
a observância das disposições que regulam as relações de trabalho, a função
social é garantida quando se cumprem também outros dois requisitos: o
aproveitamento racional e adequado e a utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.“Nós temos defendido que
enquanto não conseguimos aprovar a PEC do trabalho escravo, a desapropriação
pelo descumprimento da função social seria importante porque poderia abranger
todas as propriedades flagradas com trabalho escravo. O artigo 186 da
Constituição permite a desapropriação quando qualquer um destes requisitos da
função social forem desrespeitados”, explica José Batista.



Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente



De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) há
uma previsão de que em 2012 seja realizada a Conferência Nacional de Emprego e
Trabalho Decente nos moldes das conferências já realizadas em outras áreas. No
início de maio, o Ministério realizou um ato de pré-lançamento da Conferência,
no qual foi apresentado o Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente. De
acordo com o assessor especial do Ministro do Trabalho e Emprego, Mario dos
Santos Barbosa, o plano foi resultado de um processo de negociação entre
governo, trabalhadores e empregadores, com base no memorando de acordo de
cooperação técnica que o Brasil assinou com a OIT em 2003, por meio do qual o
país assume o compromisso de uma agenda de trabalho decente.



A agenda tem três prioridades: a geração de mais e
melhores empregos com igualdade de tratamento nos locais de trabalho, incluindo
a transversalidade da questão de gênero, raça, etnia e juventude; o combate ao
trabalho infantil e ao trabalho escravo e o fortalecimento dos atores sociais
para fortalecer a democracia. O Plano associa às prioridades metas para o ano
de 2011 e 2015. Entre as metas, está o aumento em 20% das fiscalizações de
denúncias de trabalho escravo em 2011 e em 50% em 2015. Além disso, o plano
prevê também a adoção de uma política de reabilitação psicossocial,
qualificação profissional e reinserção econômica dos trabalhadores resgatados
em 2011 e aumento da capacidade de atendimento destes trabalhadores em 2015. “A
ideia é que a Conferência seja um momento final de um processo que deve ser
alimentado pelas regiões e que possa contribuir para o avanço das políticas de
trabalho, emprego e produção social em nosso país”, declara Mario Barbosa.



Tramitação da PEC



A PEC do trabalho escravo já tramita na Câmara há dez anos
– foi  proposta pelo ex-senador Ademir
Andrade (PSB/PA), em 1999. A PEC já foi aprovada no Senado e em primeiro turno
na Câmara, com 326 votos favoráveis, e aguarda votação em segundo turno. Devido
a emendas apresentadas por deputados, terá que voltar ao Senado. “Existe uma
atuação muito forte do setor ruralista que tenta passar para a sociedade que
não existe trabalho escravo e eles fazem isso para garantir a expansão dos
interesses do capital no meio rural. Hoje nós assistimos à expansão de várias
frentes de interesse do agronegócio em direção à Amazônia, onde estão regiões
de fronteira em que se encontra a maioria dos casos denunciados de trabalho
escravo”, destaca José Batista.



Frei Xavier Plassat, da CPT, que
também participou do Encontro pela Erradicação do Trabalho Escravo, insiste que
a expropriação das terras é importante para coibir a prática. Para ele, se a
PEC for aprovada será uma ação bastante simbólica. “A dignidade e a liberdade
da pessoa são direitos fundamentais garantidos pela Constituição. O direito de
propriedade também está garantido, mas ele não pode se sobrepor aos princípios
fundamentais, que são a dignidade e a liberdade”, enfatiza. Ele completa
dizendo que o I Encontro pela erradicação do trabalho escravo remotivou a
oposição a esta prática e mostrou que há pessoas dispostas a combater o trabalho
escravo.



Leia também na Revista Poli nº 10: Trabalho escravo:
faces da forma de exploração que afeta milhares de trabalhadores no Brasil.