Análise
por: Marcelo Melo (professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz e da UFRJ) e Anakeila Staufer (professora e pesquisadora da UERJ)
O Globo contra a universidade pública: a construção de uma falácia
Desfiando um rosário – pequeno e mal arrumado – de lamentações fiscais, o editorial do jornal O Globo de 24 de julho, intitulado “Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito”, propõe o fim da gratuidade na Educação Superior como forma de “corrigir uma distorção social [acesso à universidade]”, bem como ajudar a “equilibrar os orçamentos deficitários das universidades” e contribuir “para o reequilíbrio das contas públicas”. A fragilidade dos poucos argumentos elencados no texto expõe a tônica do pensamento neoliberal que subjaz aos ataques perpetrados contra os serviços públicos e revela uma das facetas mais nefastas de um processo que caminha a passos rápidos: transformar serviços essenciais em bens a serem consumidos. Afinal de contas, se o serviço é bom, por que não cobrar por sua prestação?
Ressurgindo das cinzas do ideário neoliberal iniciado na década de 1990 com o governo Collor e aperfeiçoada nos anos do governo de FHC, o que se deseja reinstituir com o atual governo golpista é a preconização de um sistema educacional que possa incidir na formação de um novo trabalhador e um novo homem que contribua para a superação da atual crise internacional capitalista (Neves, 2002). A fim de consolidar a estratégia neoliberal, nas últimas décadas, vêm sendo instituídas políticas governamentais no campo educacional que visam à modificação da LDB, a privatização, a fragmentação e o empresariamento da educação, e, mais recentemente, a ingerência autoritária sobre os educadores através da instituição da Escola sem partido.
Infelizmente, não nos é estrangeira a tentativa de instaurar mais uma reforma educacional que visa a adequar a educação – neste caso a Educação Superior – aos mandos econômicos e político-ideológicos da burguesia mundial. Tais estratégias têm raízes mais profundas e muito bem articuladas, as quais são engendradas já na Educação Básica. Assim como em diversos municípios e estados do país, o governo do estado do Rio de Janeiro oferece um “projeto institucional” de nome inusitado – Correção de Fluxo – para “corrigir” o problema da defasagem idade-ano escolar de seus educandos. O famigerado projeto conta com a parceria da Fundação Roberto Marinho, que oferece material didático de gosto e conteúdo duvidosos, cursos para a (de)formação de professores, além de vídeos com atores globais. Na prática, o que se evidencia é o fomento à parceria público-privada, em que a indução privada se realiza de acordo com a lógica mercantil, fragmentando, focalizando, reduzindo a esfera pública na educação e permitindo a expansão de instituições privadas que, sequer, atendem a requisitos mínimos exigidos pela LDB. O que se pretende com a parceria público-privada é o apagamento das fronteiras entre essas duas instâncias, desmantelando-se a esfera pública e priorizando o espaço privado – que se converte numa instância pública não estatal, mas não abre mão de receber investimentos públicos.
A iniciativa privada já se fazia presente na educação, sobretudo na Educação Superior, desde a década de 1960 (Sader e Leher, 2004). No entanto, ainda de acordo com os referidos autores, a mercantilização da educação não se instaura a partir de sua privatização, mas sim por mecanismos que submetam o interesse público à lógica privada, fazendo com que pressupostos liberais – “individualismo, competição e aceitação de uma concepção de mundo operacional ao capital” – sejam assumidos.
Na esteira desse pensamento, volta à baila a ideia de que a solução para tornar o ensino superior menos injusto seria arrancar-lhe a gratuidade, fazendo com que os mais ricos paguem e os mais pobres recebam bolsas de estudo. Calcada no senso comum, a princípio, essa ideia parece até fazer algum sentido, ainda mais quando aparece acompanhada pela suposta neutralidade de números, porcentagens e justificativas fiscais. Porém, ao olharmos tais dados, vemos que essa ideia não passa de uma grande falácia.
O editorial do jornal afirma que “os alunos de renda mais alta conseguem ocupar a maior parte das vagas nos estabelecimentos públicos, enquanto aos pobres restam as faculdades pagas”. Curioso é que, nos casos em que números são realmente necessários, esses não são oferecidos. Conforme aponta o economista Bruno Mandelli em reportagem à Carta Capital , uma rápida consulta aos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, 2014) revela que as universidades privadas abrigam mais estudantes ‘ricos’ do que ‘pobres’ e que, por outro lado, há um contingente maior de estudantes ‘pobres’ nas universidades públicas do que nas universidades privadas.
O editorial ainda atribui a necessidade de repensar a oferta de gratuidade do ensino superior ao desequilíbrio das contas públicas – mais um exercício de lógica fiscal rasteira. Ocorre que o fim da oferta gratuita do ensino superior não pode servir de arremedo para a gestão duvidosa dos recursos públicos. Além de isenções fiscais concedidas a grandes empresas e da não-taxação de grandes fortunas, o que se observa é o repasse de dinheiro público para financiar o ensino privado: uma verdadeira enxurrada! Só este ano, mais de 18 bilhões de reais dos cofres públicos serão destinados ao FIES (Fundo de Financiamento Estudantil). O financiamento público pode ter oferecido a estudantes mais pobres o acesso à Educação Superior, mas também desvela mais uma face perversa da estratégia neoliberal no campo da educação: o sucateamento da universidade pública e o enriquecimento de grandes conglomerados.
O certo é que, mesmo atacadas e sucateadas, as universidades públicas ainda são, reconhecidamente, centros de excelência em ensino e pesquisa. Não é à toa que universidades como a USP, UFRJ e Unicamp figuram entre as melhores do mundo, aparecendo sempre muito bem colocadas em rankings e avaliações internacionais – “padrões de qualidade” que o sistema capitalista adota. Em outras palavras, investir na universidade pública não tem sido um mau negócio para o país.
O princípio da gratuidade é uma conquista e constitui um dos pilares do princípio republicano de igualdade, não podendo ser negociada sob qualquer pretexto. Ao invés de propor o fim da gratuidade para a Educação Superior, apoiando-se em ideias rasas e mal fundamentadas, o que se espera é o inverso, isto é, a universalização do acesso à universidade pública. Para tanto, é preciso seguir a tática do “gato que corre atrás do próprio rabo”: investir na qualidade social da Educação Básica, a fim de proporcionar o acesso mais democrático à Educação Superior e, consequentemente, construir uma universidade pública de qualidade socialmente referenciada. Ao contrário do que propõe o jornal do O Globo, cortar o rabo do gato tornaria a Educação Superior ainda mais injusta, impingindo ao nosso país uma posição subordinada aos países centrais, no que tange à produção científica, cultural, tecnológica, além de solapar cada vez mais a possibilidade da soberania nacional.
Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito
Numa abordagem mais ampla dos efeitos da maior crise fiscal de que se tem notícia na história republicana do país, em qualquer discussão sobre alternativas a lógica aconselha a que se busquem opções para financiar serviços prestados pelo Estado. Considerando-se que a principal fórmula usada desde o início da redemocratização, em 1985, para irrigar o Tesouro — a criação e aumento de impostos — é uma via esgotada.
Mesmo quando a economia vier a se recuperar, será necessário reformar o próprio Estado, diante da impossibilidade de se manter uma carga tributária nos píncaros de mais de 35% do PIB, o índice mais elevado entre economias emergentes, comparável ao de países desenvolvidos, em que os serviços públicos são de boa qualidade. Ao contrário dos do Brasil.
Para combater uma crise nunca vista, necessita-se de ideias nunca aplicadas. Neste sentido, por que não aproveitar para acabar com o ensino superior gratuito, também um mecanismo de injustiça social? Pagará quem puder, receberá bolsa quem não tiver condições para tal. Funciona assim, e bem, no ensino privado. E em países avançados, com muito mais centros de excelência universitária que o Brasil.
Tome-se a maior universidade nacional e mais bem colocada em rankings internacionais, a de São Paulo, a USP — também um monumento à incúria administrativa, nos últimos anos às voltas com crônica falta de dinheiro, mesmo recebendo cerca de 5% do ICMS paulista, a maior arrecadação estadual do país.
Ao conjunto dos estabelecimentos de ensino superior público do estado de São Paulo — além da USP, a Unicamp e a Unifesp — são destinados 9,5% do ICMS paulista. Se antes da crise econômica, a USP, por exemplo, já tinha dificuldades para pagar as contas, com a retração das receitas tributárias o quadro se degradou. A mesma dificuldade se abate sobre a Uerj, no Rio de Janeiro, com o aperto no caixa fluminense.
Circula muito dinheiro no setor. Na USP, em que a folha de salários ultrapassa todo o orçamento da universidade, há uma reserva, calculada no final do ano passado em R$ 1, 3 bilhão. Mas já foi de R$ 3,61 bilhões. Está em queda, para tapar rombos na instituição. Tende a zero.
O momento é oportuno para se debater a sério o ensino superior público pago. Até porque é entre os mecanismos do Estado concentradores de renda que está a universidade pública gratuita. Pois ela favorece apenas os ricos, de melhor formação educacional, donos das primeiras colocações nos vestibulares.
Já o pobre, com formação educacional mais frágil, precisa pagar a faculdade privada, onde o ensino, salvo exceções, é de mais baixa qualidade. Assim, completa-se uma gritante injustiça social, nunca denunciada por sindicatos de servidores e centros acadêmicos.
Levantamento feito pela “Folha de S.Paulo”, há dois anos, constatou que 60% dos alunos da USP poderiam pagar mensalidades na faixa das cobradas por estabelecimentos privados. Quanto aos estudantes de famílias de renda baixa, receberiam bolsas.
Além de corrigir uma distorção social, a medida ajudaria a equilibrar os orçamentos deficitários das universidades, e contribuiria para o reequilíbrio das contas públicas.