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Observatório na Mídia

07/05/2015 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Análise

por: Ramón Chaves, estudante de ciências sociais da UERJ e ex-aluno da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

A volta dos que não foram: discussões em torno do reaparecimento da direita no Brasil

Muito se tem dito sobre o atual “ressurgimento” da direita no Brasil. O tom das análises é bastante diverso, mas com frequência sobressai uma característica em especial: a dificuldade em reconstruir a trajetória da ação política da direita no país, interpretando-a, muitas vezes, como um corpo estranho que irrompe em um céu límpido. Esse é o caso da reportagem publicada na última terça-feira de abril no jornal O Globo. Nela, o jornalista Marcelo Remigio recorre aos famosos “especialistas” na tentativa de explicar o crescimento da direita e do centro-direita no Brasil.

Marly Motta, pesquisadora da FGV, responde indicando “duas vertentes para a recuperação da direita” no país: o aspecto internacional que, segundo ela, tem contribuído para a expansão da direita e suas variantes em diversos países e, internamente, a avaliação negativa do governo PT. Em suas palavras, “um governo mal avaliado politicamente, economicamente e moralmente”.

Ao recorrer exclusivamente a argumentos de natureza política-eleitoral, a pesquisadora despreza recursos analíticos que permitem vislumbrar mais amplamente o cerne do problema e, com isso, apreender as determinações mais complexas desse processo. A “avaliação negativa” do governo PT nos remete ao esgotamento do pacto social proposto e conduzido pelo partido nos últimos doze anos. O consentimento passivo das massas ao projeto do governo vem se esfacelando nos últimos tempos. O aumento no número de greves no setor público e em áreas até então dinâmicas do setor privado, como a construção civil, somada ao transbordamento da ordem produzido nas jornadas de junho funcionam como um bom indicador da dificuldade de manutenção do atual modelo de harmonização social, o que, por sua vez, desafia o consentimento ativo das lideranças e centrais sindicais. Diante desse cenário, diversas frações da burguesia, mais ou menos conservadoras, acionam o sinal de alerta e começam a se afastar do grupo político que já não é capaz de atender adequadamente aos seus interesses. A classe média tradicional, caixa de ressonância do discurso conservador, vai às ruas cumprir seu papel de cão raivoso da burguesia, ajudando a “sangrar” o governo Dilma.

Tudo isso, porém, não corrobora a tese de reaparecimento da direita, afinal de contas, em nenhum momento ela se fez ausente. Nem legumes, nem fenômenos sociais brotam sem cultivo. A direita enquanto representação política da burguesia está enraizada na dinâmica própria da luta de classes e sua amplificação recente se assenta no acirramento da tensão entre as classes e frações de classe no Brasil, o que define contornos mais claros a posições políticas por elas defendidas.

Por outro lado, a coalização que sustenta – ou sustentava – o governo PT sempre se apoiou em setores extremamente conservadores, como as bancadas ruralista e evangélica. Não se pode esquecer, por exemplo, que a eleição de Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, em 2013, foi resultado de acordo político com o Partido dos Trabalhadores.

Outro ilustre académique procurado pelo Jornal, o professor Daniel Aarão Reis, acredita “que havia muita dificuldade em se assumir como de direita” e que, atualmente, o processo de diversificação interno à posição contribui para superar o estigma associado a ela.

Nesse caso, o problema é mais grave. O professor parece ter esquecido completamente a famosa formulação teórica marxista em que a ideologia dominante é entendida como a ideologia da classe dominante e que, portanto, os valores predominantes de um tempo são aqueles que emergem das relações sociais de produção nas quais as classes estão inseridas – com as devidas mediações políticas, culturais, sociais, enfim. Quero dizer, o pensamento conservador, como expressão ideológica da burguesia, sempre assumiu o lugar de supremacia entre nós e, com raras exceções, enfrentou resistências em seu processo de disseminação e consolidação sobre o conjunto da sociedade.

O professor faz “vista grossa” para o fato de que a direita e o pensamento conservador sempre estiveram presentes hegemonicamente nas universidades, nas escolas, nas famílias, nos meios de comunicação, na organização do trabalho, nas reformas urbanas e, já há algum tempo, até mesmo em partidos históricos da esquerda.

Ele deve desconhecer também a famosa espécie Tius malas que costumam aproveitar qualquer reunião familiar para despejar o velho e requentado discurso de ódio contra pobres, nordestinos, negros, mulheres, gays, lésbicas etc. Sua margem de atuação, como todos sabem, é extensa. Atuam através das piadas sem graça e de mau gosto ou – do que tem sido cada vez mais comum – mediante aquele palavreado irracional em defesa da redução da maioridade penal, da pena de morte, das bombas nas favelas e do prestigiado discurso do “tem que ensinar a pescar”.

Ora, quem, historicamente, precisou lutar para se afirmar, para buscar legitimidade e para superar a descrença em relação ao seu “idealismo” foram os indivíduos e grupos associados à esquerda. E, muito mais do que constrangimentos em eventos domésticos, a esquerda enfrentou e enfrenta o ódio de classe e a coerção da burguesia através do cada vez mais sofisticado braço armado do Estado. Na história recente do Brasil a esquerda enfrentou, muitas vezes com a própria vida dos seus membros, a violência do Estado e da reação da classe dominante. Não nos deixam mentir os “desaparecidos” da ditadura varguista e da ditadura empresarial-militar, nem as vítimas do latifúndio improdutivo e do agronegócio, como os 19 mortos em Eldorado dos Carajás.

De qualquer forma, o “ponto alto” da reportagem é a peça cômica travestida de questionário que o jornal elaborou para mensurar a tendência ideológica dos leitores. São dez perguntas que passeiam por temas como “combate a pobreza”, “direitos trabalhistas”, “sindicato”, “homossexualismo” (isso, com esse –ismo no final mesmo), entre outros. A opção da direita consiste, na maior parte das questões, nos “mantras” reproduzidos diariamente nas páginas do próprio jornal, como o apoio à redução da maioridade penal, a diminuição da “carga tributária”, a defesa da meritocracia e a necessidade de “adequação” dos trabalhadores à nova realidade econômica. As alternativas à esquerda são, em geral, bem domesticadas – e entre apenas duas respostas, o jornal faz de qualquer conservador minimamente letrado um indivíduo de extrema-esquerda.

O conjunto da obra evidencia o grande esforço do jornal em alimentar o moinho da “nova direita”. Não se sabe se mais por identidade ideológica e tática política ou para fidelizar clientes e aumentar o número de assinantes, afinal de contas, como a direita gosta de dizer, governista ou não, são tempos de crise.

Direita reaparece e ganha adesão na trincheira contra o governo

A direita reapareceu no país. Tendência observada nas eleições do ano passado, a defesa de ideais de direita e centro-direita ganhou força nas manifestações antigoverno promovidas desde março. (...) Para especialistas, reconhecer que concorda com parte dessas ideias ou admitir em público "ser de direita" já não assustam muito.

Marcelo Remigio, O Globo, 26/04/2015
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