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Observatório na Mídia

22/06/2016 09h06 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Análise

por: Felipe Machado - professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz

"Ousar" para quem?

O editorial da Folha de S. Paulo de 17 de junho evidencia a tônica do que pretende a atual força política que tomou o Estado: reduzir o alcance dos direitos sociais garantidos na Constituição brasileira. O título do editorial, “Ousar com o SUS”, aponta para uma mudança radical na condução das políticas de saúde que, se der certo, será estendida para outras políticas sociais.

Trata-se da proposta de uma redução radical no financiamento do setor e na aposta de que uma gestão eficiente será suficiente para dar conta dessa diminuição de recursos. Certamente uma aposta minimamente “ousada” já que é unânime na área da saúde pública que o SUS hoje já é subfinanciado. Nenhum esquema de gestão inovador conseguirá, com menos dinheiro, fazer mais e melhor.

De fato, essa é a utopia do pensamento neoliberal que insiste em rondar o cenário nacional. Mais do que utópico, esse pensamento se traveste de dogmática quando o assunto são as políticas sociais. Não é de hoje que a ameaça aos direitos sociais existe no Brasil: ela é sempre a carta na manga daqueles que se veem incomodados com um mínimo de melhora nas condições de vida da população.

Roberto Campos, poucos dias após a promulgação da Constituição, declarou que ela estava fadada ao fracasso e contabilizou 76 vezes a menção à palavra direitos e quatro vezes à palavra deveres. Campos, que tinha clareza do que significaria constitucionalizar os direitos sociais e já atacara a Constituição no seu nascedouro,  se referia a esse processo como “estupro de liberdade de escolhas sociais”.

Passamos muito tempo sem ouvir esse vocabulário, e eis que novamente os direitos sociais voltam à cena como algozes da crise fiscal. No atual cenário turbulento, a solução final é limitar o crescimento dos gastos com saúde e educação por 20 anos, tendo como base a inflação do ano recessivo de 2016. Na prática, não significará uma “redução relativa”, como sugere a Folha, mas um golpe fatal num sistema já subfinanciado.

Para se ter uma ideia, países da América Latina, mais pobres que o Brasil, gastam mais com saúde, e diversos países Europeus gastam o dobro. Mesmo usando o eufemismo da “redução relativa”, o jornal reconhece que haverá “privações a que a população se verá submetida”. Que população? Certamente não toda ela, mas, sobretudo aquela que mais precisa do sistema público de saúde. Ou será que o governo Temer está pensando em “ousar” eliminando os subsídios e isenções de imposto de renda para aqueles que utilizam o serviço privado?

No fim, o jornal ainda aponta o dedo para outros responsáveis pela atual crise financeira do SUS: as distorções criadas por aqueles que buscam na justiça o acesso aos seus direitos na saúde. A proposta “ousada”, neste caso, seria dar completa autonomia aos “administradores” para definirem os procedimentos passíveis de serem financiados pelo SUS, retirando dos cidadãos sua capacidade de tentar influenciar o rumo das políticas de saúde, seja pelas vias tradicionais dos conselhos e conferências de saúde, seja pela via indireta da Justiça.

Distorções devem ser identificadas e corrigidas, mas definir o rumo das políticas de educação e saúde nos próximos 20 anos com base nessas distorções parece uma proposta casuística, cuja solução já estava dada antes de o problema existir. Para o receituário neoliberal, a solução sempre é reduzir direitos sociais, independentemente da origem da crise, e é bom que a crise venha, porque aí mesmo que se justificam os ataques aos direitos sociais.

Vivemos o tempo em que é possível expressar aquilo que era indizível há pouco tempo. Neste caminho, veremos em breve o renascimento das propostas mais ousadas dos pais do neoliberalismo, como as do economista austríaco Friedrich Hayek, para quem o Estado não deveria garantir o direito à vida dos cidadãos com serviços de saúde ou garantias alimentares, pois estaria indo contra o controle natural que se estabelece sobre a vida e a morte. Roberto Campos e Hayek parecem comandar do túmulo o desgoverno Temer.

Ousar com o SUS

Se prosperar no Congresso, a proposta do governo Michel Temer (PMDB) de fixar um teto para o crescimento dos gastos públicos tenderá a promover uma redução relativa das despesas com saúde e educação: em vez de vinculadas à receita, passarão a se atrelar à inflação do ano anterior.

Ainda que não fosse por esse motivo, porém, os recursos para essas áreas (e para todas as outras) se mostrariam escassos nos próximos anos. Ninguém ignora que a gestão de Dilma Rousseff (PT) queimou o dinheiro de hoje e de amanhã, exigindo que todas as esferas da administração pública apertem os cintos por um período longo.

A fim de discutir esse cenário de escassez, esta Folha promoveu, nos dias 14 e 15, o Fórum Saúde em Tempo de Recessão. Especialistas em medicina, economia e administração debaterem alternativas para o setor num período de grave crise econômica.

Discutiu-se, entre outros temas, o SUS, que inevitavelmente terminará afetado. Não escapou aos convidados do encontro uma questão óbvia: as privações a que a população se verá submetida podem ser minoradas com medidas que tragam maior eficiência.

Um ponto nevrálgico é assegurar que as autoridades sanitárias tenham condições de planejar e gerir o sistema com racionalidade e previsibilidade. Isso significa que o acesso ao SUS não pode ser um cheque em branco ao portador.

Cabe aos administradores, valendo-se da melhor medicina baseada em evidências e de um cálculo de custo-benefício, estabelecer listas das terapias, procedimentos e medicações cobertas.

O rol deve ser extenso a ponto de abarcar quase todas as doenças. Quem quiser uma abordagem extraordinária —seja um medicamento recém-lançado, seja uma terapia ainda não validada pelos consensos científicos— deverá buscá-la às próprias expensas.

Cada vez que alguém, recorrendo à Justiça, consegue obrigar o SUS a pagar um tratamento experimental caríssimo, está tirando do sistema dinheiro que poderia salvar a vida de vários pacientes com moléstias mais simples.

A impessoalidade frequentemente exige que os gestores pareçam insensíveis. Pode ser ruim para a imagem dos indivíduos, mas é a garantia de que pessoas com menor capacidade de mobilização não serão deixadas para trás.

Tempos difíceis exigem criatividade e até certa ousadia.

Editorial Folha de S. Paulo - 17/06/2016
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