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ACS e ACE conquistam piso salarial nacional na Comissão Especial

Plenários da Câmara e do Senado ainda precisam aprovar o PL que estabelece que até 2015 agentes terão piso de dois salários mínimos.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 19/10/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Se a Câmara e o Senado aprovarem o substitutivo ao projeto de lei 7495/2006, já aprovado na Comissão Especial, e a presidente Dilma o sancionar, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e os Agentes de Combate às Endemias (ACE) não poderão mais trabalhar por menos de R$ 750 mensais como salário. A proposta de um piso salarial nacional para a categoria foi aprovada no início de outubro na comissão de parlamentares criada especialmente para deliberar sobre o tema. Pelo texto, o piso terá um primeiro reajuste em agosto de 2012, quando passará a ser de R$ 866,89. Já a partir de janeiro de 2013, o valor sofrerá reajustes anualmente até atingir, em 2016, os dois salários mínimos reivindicados pela categoria. Bastante mobilizada, a Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias (Conacs) levou cerca de 7 mil trabalhadores para Brasília para pressionar pela aprovação do piso. Os agentes acompanharam de perto a votação realizada no dia 4 de outubro.

De acordo com a assessora jurídica da Conacs, Elane Alves, a proposta foi negociada pelos agentes com a comissão especial para que a categoria não fique mais tempo esperando essa regulamentação, ainda que os dois salários mínimos só se tornem realidade daqui a quatro anos. “Para a categoria não é o ideal, mas isso afasta a possibilidade de o governo federal questionar impactos financeiros. O governo sustenta que está passando por uma crise, mas, pelo que foi aprovado, neste e no próximo ano não haverá impacto financeiro algum para o governo federal. Então, a proposta aprovada afasta esse argumento”, afirma. Elane acrescenta ainda que durante todo o trabalho da comissão especial, durante as audiências públicas realizadas nos estados, os gestores demonstraram preocupação com a regulamentação do recurso em lei para que pudessem inclusive cobrar do governo federal que fosse cumprido o repasse. De acordo com ela, a categoria buscará também dialogar com os governos estaduais para que, a exemplo do governo federal, esse ente federado também regulamente a sua contrapartida aos agentes. “Essa luta irá possibilitar que nos estados onde os agentes estão mais mobilizados se consiga alcançar o valor de dois salários mínimos ou até mais do que isso antes de 2015”, diz.

Segundo a Conacs, há uma grande disparidade salarial entre os agentes, dependendo da região onde trabalham. Com o piso, a tendência é que haja uma melhor equiparação. O governo federal já repassa R$ 750 para os municípios, entretanto, desse valor, em muitos casos são descontados os encargos sociais dos agentes, o que faz com que o valor recebido seja ainda menor. “Essa disparidade é uma situação que não é possível ser aceita, é um trabalhador que exerce a mesma atividade, tem as mesmas atribuições, as mesmas dificuldades, as mesmas responsabilidades, de um canto a outro do país. E um ganha R$ 400 e outro ganha dois salários mínimos. Alguns estados e municípios pagam mais de dois salários aos agentes. Então, queremos equilibrar um pouco, pelo menos garantindo o mínimo necessário para a sobrevivência”, observa Elane.

Pela proposta, a União arcará com 95% do pagamento do piso. Mas o projeto também prevê um incentivo financeiro (de no mínimo 5% e no máximo 15% do valor já repassado aos municípios, caso haja comprovação de melhoria dos indicadores de saúde. Para o deputado Domingos Dutra, relator do projeto de lei na comissão especial, a aprovação do substitutivo que regulamenta o piso dos agentes continua o processo de reconhecimento da importância dos agentes comunitários de saúde e de combate às endemias. Ele conta que a comissão analisou 19 projetos de lei que tramitavam na Câmara e no Senado sobre o trabalho dos agentes, grande parte deles tratando da questão do piso. O deputado explica que alguns foram descartados por serem inconstitucionais. Para ele, a reivindicação de dois salários mínimos é legítima, mas não seria possível neste momento. “Não havia outra forma de resolver a questão. Primeiro porque não podemos vincular nada ao salário mínimo porque é inconstitucional, segundo porque hoje quem paga aos agentes os R$ 750 é a União,, então, para aumentar de uma vez só e em um valor maior teríamos muita resistência do governo federal. A presidente Dilma não quer nem ouvir falar do piso, porque tem a PEC 300 que é o piso dos policiais, tem a PEC dos agentes penitenciários... Então, qualquer valor outro que fosse pago de uma vez ou que fosse além desse salário dificilmente seria aprovado porque o executivo federal não toparia”, diz. Domingos Dutra lembra que os municípios não poderão mais retirar dos R$ 750 os recursos para pagarem os encargos sociais dos agentes.

O deputado explica que assim como o financiamento do SUS, o pagamento dos agentes deveria ser tripartite, ou seja, dividido entre municípios, estados e União. O deputado ressalta, no entanto, que os municípios e estados reclamam, com razão, que 70% dos tributos arrecadados ficam nas mãos da União. “Todas as vezes que há uma crise econômica, o governo federal, para não deixar a crise se alastrar, abre mão de receitas como IPI e imposto de renda, e isso reduz as receitas municipais”, argumenta.

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Mariana Lima Nogueira acredita que o piso salarial valoriza o trabalho dos agentes, mas observa que o tipo de vínculo dos agentes também é muito diferente em cada região. Ela cita como exemplos os estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e Porto Alegre. No primeiro, todos os agentes são concursados, já no Rio de Janeiro, eles são vinculados a Organizações Sociais (OS), e em Porto Alegre, parte dos agentes tem até mesmo vínculo de estagiários. “Apesar de a Estratégia de Saúde da Família ser destacada na política nacional de atenção básica como principal estratégia organizadora da atenção, temos essa precarização ainda presente do vínculo dos agentes comunitários de saúde”, critica.

A professora comenta ainda que há uma grande disparidade salarial entre os ACS e os técnicos de enfermagem, por exemplo. “Essa diferença salarial contribui para a divisão técnica do trabalho porque junto com ela vem o esvaziamento da formação, há uma desvalorização do espaço formativo dos agentes associada a uma supervalorização do cotidiano do trabalho deles”, explica. Mariana alerta que outro problema que esses trabalhadores podem enfrentar é o atrelamento de seus pagamentos ao cumprimento de metas e objetivos de produtividade, o que já vem sendo discutido em alguns estados e municípios. “O ACS já vem organizando o seu trabalho a partir de metas. As metas são estratégias utilizadas em vários momentos na história da saúde pública. O problema não está nas metas, mas na pactuação delas junto aos ACS. Os nossos alunos já falaram que é impossível fazer quantidades determinadas de visitas domiciliares em um tempo também determinado, porque cada visita domiciliar é diferente, precisa ter um cuidado, às vezes uma visita tem uma escuta mais demorada do que a outra”, reforça.

A também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Vera Joana Bonrstein ressalta que muitas vezes os agentes lidam com problemas de outras áreas. “Os ACS lidam com uma série de problemas da comunidade que vão além dos problemas de saúde.Nnão é a toa que esse profissional é chamado de mediador social, porque ele acaba ouvindo da população também problemas de documentação, de habitação, uma série de questões”, diz. A professora comenta que os governos têm destinado outras funções além das de saúde aos ACS. “Ele acaba desempenhando papéis na defesa civil e no Bolsa Família, por exemplo. Isso desconcentra o trabalho dos agentes porque as principais funções desse profissional seriam a prevenção de doenças e a promoção da saúde. E na promoção da saúde, o trabalho seria muito mais o de articular vários setores do que de substituí-los. Como outros setores do governo não estão presentes, pede-se ao agente para assumir essas funções”, questiona.

Desafios também na formação

A lei 11.350 assegura que os agentes comunitários de saúde devem ter uma formação inicial. A lei não diz, entretanto, que essa formação precisa continuar. “Os agentes deveriam ter formação técnica, pois eles têm um trabalho muito importante e complexo e para o qual ainda não se destinam os devidos investimentos”, sugere Mariana. E completa: “Há dívidas históricas com estes trabalhadores em relação à melhoria salarial e condições de trabalho e também em relação à formação. Essa discussão do aumento dos gastos em relação aos ACS é usada como argumento para a não formação técnica dos agentes. Esperamos que a pauta da formação continue sendo uma frente do movimento organizado dos agentes comunitários porque ainda há muito o que conquistar”. A professora explica que poucos estados realizaram a formação continuada desses trabalhadores. No Rio de Janeiro, a EPSJV/Fiocruz coordena a formação de alguns agentes comunitários de saúde, no âmbito de uma parceria com a secretaria municipal de saúde. “Em muitos lugares só acontece a primeira etapa do curso técnico, que é financiada pelo Ministério da Saúde. E em alguns municípios não foi realizada nem a primeira etapa ainda, apenas realizam um curso chamado de ambientação, que é um curso rápido, de introdução aos temas da Saúde da Família. Os municípios justificam que quando fizerem a primeira etapa descontarão essa carga horária da ambientação já realizada”, comenta.

Mobilização

Antes da aprovação do piso salarial na comissão especial, os agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias permaneceram acampados durante três dias em Brasília. As professoras Mariana e Vera Joana reforçam a importância de a categoria permanecer mobilizada para conquistar os direitos. “Desde 1991, os agentes são considerados trabalhadores da saúde em uma política nacional. Mas eles só tiveram a profissão reconhecida 14 anos depois, com a lei 10.507.Depois, com a lei 11.350, começa-se a falar de vínculo e a aprovação do piso só vem depois de mais de 20 anos. Com isso, vemos a importância da organização dos agentes em um movimento social”, ressalta Mariana.

A assessora jurídica do Conacs também concorda que a mobilização deve continuar. Ela faz um apelo aos agentes para que continuem unidos e fortaleçam a Conacs. “Ainda temos muito o que fazer. Como mostra o exemplo dos professores, não basta ter isso na lei, somos nós que temos que conseguir esse piso na prática. Precisaremos partir para o embate nos estados e municípios. Sabemos muito bem que as nossas conquistas não caem em nosso colo. Há estados que sequer cumprem o que determina a emenda constitucional 51”, diz.