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ANS se contradiz com nomeação de diretor

Novo diretor tem currículo de serviços prestados a empresas privadas de saúde. Seu vínculo atual é com a Confederação Nacional de Saúde, que luta na justiça contra o ressarcimento do SUS, uma das principais bandeiras defendidas pela ANS. 
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 10/04/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Uma das pautas principais da Agência Nacional da Saúde (ANS) é o aumento do ressarcimento dos planos de saúde ao Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com nota enviada no mês de janeiro à imprensa, a Agência vem batendo recorde de devolução de recursos ao SUS por meio dessa fonte. O valor, que é pago pelas operadoras de planos de saúde quando seus consumidores têm cobertura negada pelos planos e são atendidos na rede pública de saúde, é uma importante forma de reforço ao financiamento do SUS, e entre 2011 e 2013, somou R$ 322 milhões, “montante duas vezes superior aos ressarcimentos somados da última década – de 2001 a 2010, o valor foi R$ 125 milhões”, como explica a nota.

O texto informa ainda que o “crescimento dos valores restituídos deve-se ao aperfeiçoamento de processos de gestão da ANS, contratação de servidores e a inscrição das operadoras em dívida ativa”. Esta vitória pode estar com os dias contados, como apontam especialistas da saúde e instituições como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (cebes) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), por conta da indicação do presidente da Confederação Nacional da Saúde (CNS) José Carlos de Souza Abrahão para o cargo de diretor da Agência publicada no Diário Oficial no dia 20 de março.

Um dos motivos desta desconfiança é o fato de a Confederação, dirigida por Abrahão, é responsável por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adi) - nº1931-8 de 1998 - contra a lei nº 9.656/98, na parte que discute o ressarcimento do SUS pelas empresas de planos de saúde privados. Embora não tenha sido na gestão de Abrahão, que assumiu a direção em agosto de 2003, ele já explanou diversas vezes sua posição a favor da Adin, inclusive em artigo publicado na Folha de São Paulo em 2010 . “ (...)a máxima constitucional de que ‘a saúde é um direito de todos e dever do Estado’ permanece inalterada. Com esse entendimento, e atendendo à filosofia que guia as ações da CNS, é que questionamos no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade do artigo 32 da lei dos planos de saúde (lei nº 9.656/98), que prevê o ressarcimento ao SUS caso o beneficiário do plano seja atendido pelo sistema público (ou por hospital público e conveniado). Isto é, se o paciente resolver comparecer a uma instituição pública ou conveniada de saúde e lá for atendido, a operadora do plano de saúde da qual o usuário é conveniado deverá ressarcir ao poder público os gastos referentes ao atendimento do paciente. O que defendemos aqui, obviamente, não é um enriquecimento das operadoras de planos de saúde ’à custa’ do SUS, e tampouco sugerimos que o Estado pretenda garantir recursos com a cobrança às operadoras, mas chamamos a atenção para a necessidade de se definir papéis e assumir responsabilidades”, diz Abrahão no artigo.

Além disso, em seu currículo, o diretor da CNS mostra seu forte histórico com entidades políticas patronais, como a presidência da Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (FEHERJ), e a presidência da organização internacional de empresários hospitalares denominada International Hospital Federation (IHF) no biênio 2009/2011.

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Ialê Falheiros entrevistou Abrahão para sua tese de doutorado, intitulada ‘Entidades empresariais e a política nacional de saúde: da cultura de crise à cultura da colaboração’. Segundo ela, esta entrevista trouxe claros posicionamentos sobre seu olhar na saúde. “Você veja, na época do [Sergio] Arouca era assim: ‘o sanitarismo do Arouca [versus] a iniciativa privada’... Não tem isso [mais], vamos pegar, vamos sentar e vamos conversar todo mundo. Essa é a visão de José Carlos [Abrahão]. Não há espaço no mundo hoje mais, que não se construa através do diálogo, cada um respeitando a importância do outro”, diz trecho da entrevista citada na tese.

Ialê, em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, explica ainda que a nomeação de Abrahão pode ser mais um passo para a naturalização da área da saúde como um grande mercado. “É um problema que vem sendo apresentado pelos empresários há muito tempo. Quando paramos e pensamos quem é o José Carlos Abrahão, é importante recuperar o histórico dele. A gente acredita que a formação e a trajetória dos sujeitos moldam a forma como ela vai atuar. Ao longo de toda sua trajetória, ele sempre se posicionou do lado patronal na política nacional de saúde, então, não é nesse momento que ele vai assumir uma ideologia publicizante. E nem podemos cobrar isso dele”, explica Ialê, que lembra: “Ele falou para mim que a saúde não é comércio para se ganhar dinheiro, apesar de termos que parar de demonizar o lucro. Mas afirmou que  ela é um business e tem que ser tratada de forma racional, com gestão corporativa e administrativas modernas. O que não pode é ele dirigir uma instituição criada para regular o mercado”.

A carta enviada à Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal , assinada pelo Idec, Cebes e Abrasco, vai ao encontro da posição de Ialê. O documento aponta como problema o histórico de Abrahão, seu posicionamento em relação ao ressarcimento e sua postura como gestor. “A indicação do Sr. José Carlos de Souza Abrahão causa grande preocupação ao Idec uma vez que ele ocupa atualmente a presidência da CNS, entidade sindical de terceiro grau que representa estabelecimentos de serviços de saúde no país, tais como hospitais, clínicas, casas de saúde, laboratórios de análises clínicas e patologia clínica (...)”, diz o texto.Procurado pela EPSJV/Fiocruz, José Carlos Abrahão não concedeu entrevista alegando indisponibilidade  de agenda.

Importância do ressarcimento

Para conseguir chegar aos dados em relação ao ressarcimento, a ANS identifica os usuários atendidos no SUS e cruza essas informações com o banco de dados da Agência, cujo cadastro é abastecido pelos planos de saúde. A partir da identificação de que um usuário com plano de saúde foi atendido no SUS, a ANS notifica as operadoras sobre os recursos que devem ser ressarcidos e cobra a devolução. Caso as operadoras não paguem, são encaminhadas para inscrição em dívida ativa. Nos últimos três anos, aponta a Agência em nota enviada à EPSJV, os valores inscritos em dívida ativa somaram R$ 321 milhões, cifra dez vezes superior ao valor incluído nos três anos anteriores (2008 a 2010), que soma R$ 31,6 milhões. “A cobrança mais eficiente gera maior compromisso das operadoras em realizar os ressarcimentos. Houve aumento da identificação, cobramos mais e aperfeiçoamos as nossas bases de dados com melhorias no sistema de informática”, explicou o diretor-presidente da ANS em exercício, Bruno Sobral, na nota.

A pesquisadora da EPSJV analisa o cenário apresentado hoje.  “As empresas de planos de saúde lucram com o risco. Elas trabalham com um montante que é pago pelos trabalhadores, pelas empresas empregadoras e pelo Estado, através do subsídio público. Eles vão trabalhando com regime de pré-pagamento de quem, em caso de necessidade, vai utilizar o serviço. Se todo mundo adoecer, é claro que ele não vai ter lucro. E este lucro vem de diversas formas: remunerando mal os médicos, disputando com os hospitais, autorizando alguns procedimentos e não autorizando outros, além do pré-pagamento, que é aplicado no mercado financeiro”, explica.

Além de aumentar o volume de recursos reembolsados, de acordo com a ANS, também foi intensificada cobrança sobre as operadoras de planos de saúde. “Desde 2011, foram cobradas 483 mil internações, 36% a mais do que na década anterior. Apenas em 2013 foram cobradas 237 mil internações.  Os pagamentos efetuados para a Agência são repassados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) e aplicados em ações de saúde e programas estratégicos do Ministério da Saúde”.

Ialê explica ainda que o argumento em favor da universalidade do SUS é utilizado conforme os interesses que estão em jogo. “Os empresários tentam comprovar com diversos dados como os planos de saúde são importantes para desonerar o SUS, mas quando um paciente é atendido no SUS e tem plano de saúde, isso quer dizer que ele pagou por um serviço e não utilizou aquele serviço, portanto, as empresas de plano de saúde estão lucrando duas vezes”, defende Ialê.

A história se repete

Não é a primeira vez que há uma mobilização contra a indicação de representantes de empresários para a ANS. Em 2009, o Conselho Nacional de Saúde manifestou desacordo com a indicação de nomes como Maurício Ceschin, ex-diretor da Qualicorp e da Medial e Leandro Reis Tavares, ex-diretor da Amil para a diretoria da Agência. Tavares e Ceschin, apesar do repúdio público, acabaram compondo a diretoria colegiada.  “Neste momento, em que se vinham conseguindo progressos, embora tímidos, na regulamentação dos planos de saúde coletivos – que representam 77% do total de planos de saúde e são onde acontecem os abusos mais flagrantes por parte das operadoras de planos de saúde contra os direitos dos trabalhadores e dos consumidores - , repassar aos planos de saúde o controle da ANS, ou seja, a regulamentação do setor e a fiscalização de si próprios é um grave retrocesso que precisa ser corrigido com urgência”, dizia a moção .

Em evento realizado no final do ano passado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em Belo Horizonte, também foi aprovada uma moção de repúdio contra a nomeação do diretor da ANS, Elano Figueiredo, que pediu exoneração do cargo em seguida. Na ocasião, Elano havia omitido em seu currículo o fato de ter trabalhado para a operadora de saúde Hapvida.