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Da seguridade social para a dívida pública

Governo propõe nova prorrogação da Desvinculação de Receitas da União até 2015. Com o fim da DRU na educação em 2009, já foram injetados cerca de R$ 17 milhões para a área.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 26/08/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O governo federal apresentou ao Congresso no mês de junho a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 61/2011 que prorroga até 2015 a Desvinculação de Receitas da União (DRU). O nome da medida a autodefine: trata-se de destinar recursos que teriam destino certo para áreas como a seguridade social e deixá-los à disposição do governo para outras destinações. O mecanismo existe desde 1997, embora com outra denominação, e a última prorrogação foi feita em 2007 com vigência até o final deste ano. O governo justifica que a estrutura orçamentária e fiscal brasileira possui “elevado volume de despesas obrigatórias” e também “vinculação expressiva de receitas orçamentárias a finalidades específicas”, o que reduz “o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, e prejudica a formação de poupança para promover a redução da dívida pública”. Entretanto, para entidades e pesquisadores, a DRU não deveria existir. E, na raiz do problema, está justamente o pagamento da dívida pública.

A proposta enviada ao Congresso continua a mesma desde o início da vigência da DRU: a desvinculação de 20% de toda a arrecadação da União. A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), no documento ‘Análise da Seguridade Social 2010 ’, aponta, entre as bandeiras da instituição, a não renovação da DRU. A associação explica que o mecanismo retira muitos recursos das contribuições sociais, que são tributos criados com destinações específicas, como a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins). A DRU retirou em 2010, segundo dados da Anfip, mais de R$ 45 milhões dessas contribuições.

Em 2009, outra emenda constitucional (EC 59) aprovou o fim gradual da DRU para a educação. O Ministério da Educação (MEC) comemorou a medida. Em matéria publicada no dia 30 de dezembro de 2009 em seu próprio site, o MEC ressalta o quanto o fim da DRU representa em recursos a mais para a área. “A aprovação da Emenda Constitucional nº 59, que determina o fim gradual da desvinculação das receitas da União (DRU) sobre as verbas federais da educação, é o maior avanço do setor desde a constituinte de 1988. A avaliação foi feita pelo ministro Fernando Haddad, ao falar nesta quarta-feira, 30, sobre as conquistas da educação em 2009. O fim da DRU significa o ingresso de cerca de R$ 7 bilhões no orçamento da educação em 2010 e, com o fim da incidência, em 2011, cerca de R$ 10 bilhões a mais por ano. É uma reversão importante, segundo Haddad, porque, desde 1994, a desvinculação retira 20% dos recursos que deveriam ser destinados à educação”, anuncia a matéria. Pelos cálculos da Anfip, a DRU retirou da educação em 2008, antes da aprovação da EC 59, R$ 9,2 bilhões.

Para o presidente da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, Saraiva Felipe (PMDB-MG), é preciso haver um esforço do congresso para que a DRU também não incida sobre os recursos do orçamento da União para a saúde. “Na esteira da mobilização pela regulamentação da Emenda Constitucional 29, outro ponto a ser discutido é livrarmos a saúde dessa desvinculação que, na verdade, deprime mais ainda o orçamento da saúde. São alguns bilhões de reais que deixam de entrar para a área”, destaca. O deputado reforça a importância de se aprovar rapidamente também a regulamentação da Emenda Constitucional 29 para garantir mais recursos para a saúde. “A área da seguridade social é a mais prejudicada com a DRU”, reforça o deputado.

Na justificativa da PEC que prorroga a DRU, assinada pelo ministro da Fazenda Guido Mantega e pela ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão Miriam Belchior, o governo afirma que a desvinculação ampliou as possibilidades de atuação dos gestores públicos e possibilitou atender as demandas da sociedade com rapidez sem comprometer o equilíbrio fiscal das contas públicas. “A DRU tem permitido à Administração Pública Federal não só estabelecer prioridades, mas também prover e alocar recursos para torná-las exequíveis. Ressalte-se que a conjuntura do Brasil urge investimentos e respectivas fontes de financiamento, a fim de adequar a infraestrutura do País às exigências internacionais correlatas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016”, diz o texto.

Para Saraiva Felipe, no entanto, essa justificativa não procede. Segundo o deputado, justamente porque o país sediará esses grandes eventos é que precisa como nunca dos recursos para as áreas sociais desvinculados pela DRU. “Esse argumento é antigo, é o mesmo em muitas décadas. Ele considera que o que é destinado à saúde nunca é investimento, é sempre gasto que pode ser comprimido. Mas, inclusive em função da Copa e das Olimpíadas, precisamos mostrar para o mundo que estamos bem, até porque temos um sistema de saúde cuja engenharia é admirada pelo mundo. Precisamos mostrar que na área social e, sobretudo, na área da saúde, nós temos um sistema adequado, que pode inclusive responder a eventuais necessidades adicionais de atendimento que podem surgir em virtude da realização desses eventos”, responde.

O médico sanitarista Gilson Carvalho também aposta que a DRU não deveria existir. “A DRU só existiu como um meio de a União burlar a divisão de receitas. Passou por vários nomes. Inicialmente FSE-Fundo Social de Emergência depois FEF- Fundo de Estabilização Fiscal e hoje DRU. A DRU não deveria incidir sobre nenhuma das áreas que pertencem ao capítulo constitucional da Ordem Social . Por exemplo, na hipótese de ser criada a CSS – Contribuição Social da Saúde exclusivamente para a saúde, esta iria ficar apenas com 80% da arrecadação e a União, com as outras áreas, ficaria já na boca do caixa com 20%”, exemplifica. ilson também defende a importância de se regulamentar a Emenda Constitucional 29 para garantir mais recursos para a saúde.

Buracos na seguridade social

Os recursos retirados da seguridade social para a DRU não são, de acordo com Saraiva Felipe, compensados. Para o deputado, a CPMF poderia cumprir em parte essa função, entretanto, com o fim da contribuição, novamente há insuficiência de recursos. Ele explica que uma batalha no congresso sempre foi manter a CPMF sem que isso significasse a substituição de fontes de financiamento, ou seja, à medida que entrassem os recursos da CPMF, não houvesse em paralelo a retração de recursos do orçamento geral da União para a saúde. O deputado comenta que, entretanto, quando foi feita uma negociação de que todo o recurso da CPMF seria destinado à saúde e isso não implicaria a redução dos gastos do orçamento geral da União com a área, o congresso definiu pelo fim da contribuição. “Foi um grande abalo para a saúde, nós deixamos de ter uma fonte fixa e passamos de novo a depender da conjuntura do orçamento geral da União apenas. Os recursos são insuficientes e os gestores ficam fazendo ‘escolhas de Sofia’ a todo momento: não inclui isso, inclui aquilo, e a qualidade do atendimento vem caindo. Nós temos um grande receio de que o SUS perca substância política, vá se desgastando de tal forma que a população o repila, não lute para que ele seja o grande seguro que abranja o conjunto da população brasileira”, preocupa-se.

O professor Elias Jorge, pesquisador do tema do financiamento da saúde, considera que a área tem um problema estrutural de financiamento que vai além dos problemas gerados pela DRU. Ele explica como a desvinculação funciona e que prejuízos traz para a seguridade social, segundo ele, a área mais atingida. “O mecanismo é retirar recursos da seguridade social, o que a torna deficitária. Ao aplicar a DRU, os recursos que eram da seguridade passam a ser do orçamento fiscal. Como fica faltando dinheiro para cobrir despesas da seguridade, o orçamento aporta novamente. Mas o que acontece é que cada vez mais o montante de recursos deslocado e que precisa ser remanejado vai aumentando”, diz.

O professor comenta também que a saúde não conta mais com os recursos da CPMF, embora as despesas que a contribuição cobria continuem acontecendo. Elias Jorge explica que existem despesas da seguridade social que são incomprimíveis, ou seja, não podem deixar de ser feitas. “São despesas da previdência, algumas da saúde e da assistência. e então, para fechar o orçamento da seguridade, o dinheiro retorna. Não se pode suspender, por exemplo, a bolsa família, então, os recursos terão que voltar, mas com isso se provoca o desfinanciamento crônico da seguridade social”, observa.

Elias Jorge cita um estudo coordenado por ele e realizado no âmbito do setor de economia do Ministério da Saúde que compara as receitas e as despesas da seguridade social. A pesquisa chegou à conclusão de que ao longo dos anos, o país deixou de acumular como patrimônio da seguridade cerca de R$ 300 bilhões pelas sucessivas aplicações da DRU. “Na seguridade, as receitas superam as despesas. Portanto, a seguridade é amplamente superavitária. A conta é mais ou menos a seguinte: o que o país tem hoje como reserva cambial é mais ou menos o que a seguridade deixou de receber ao longo desses anos por causa da incidência da DRU”, destaca.

Concepção de estado

Para Elias Jorge existe uma constante disputa que opõe de um lado setores dos governos que são a favor da desvinculação e de outro, setores contrários. “Todo secretário da fazenda é contra a vinculação das receitas, e todo secretário das áreas sociais é a favor desesperadamente da vinculação. Porque, ao se estabelecer a vinculação, há uma garantia mínima de recursos para aquela área poder funcionar. Nós temos vinculação de recursos à educação, por exemplo, desde 1946. Com a ditadura militar caiu a vinculação, mas depois retornou. O argumento contrário é que, se a vinculação resolvesse, os problemas da educação já estariam resolvidos, mas a questão é que mesmo tendo vinculação já temos um monte de problemas, imagine sem ela”, diz.

 O professor lembra que as contribuições sociais sobre as quais incidem a DRU foram criadas na Constituição de 1988. Os constituintes instituíram, de acordo com ele, um conceito de seguridade e romperam com o conceito de seguro. “Até 1988 havia uma dupla punição ao cidadão que estava afastado do processo econômico: se ele não tinha emprego, também não tinha cobertura do Estado nem da previdência e nem da saúde. A Constituição introduz o conceito de seguridade, que está diretamente ligado à ideia de inclusão e de cidadania. e então, rompe-se assim com a ideia de o seguro ser estendido apenas àquele contribuinte direto e cria cobertura também para o contribuinte indireto. Com isso, cumprindo o sistema de proteção social no Brasil que em princípio tem pelo menos cinco tópicos – saúde, previdência, assistência, educação e trabalho -, a constituinte responsavelmente criou as contribuições sociais para suportarem esse sistema”, aponta. Ele complementa que para o Estado gerenciar a dívida pública é que foi criada esta maneira de desvincular recursos das contribuições.

Elias Jorge reforça o alerta sobre as consequências do fim desses tributos. “Se não se garante a vinculação para os programas sociais, a tendência é manter uma sociedade cada vez menos solidária. E a solidariedade só se faz pela intervenção do Estado, arrecadando de quem tem e distribuindo para quem necessita. Essa é a concepção de equidade que está na Constituição no tópico da seguridade social. Para isso ela precisa ser financiada e ter contribuições exclusivas”, diz.

Para Gilson Carvalho, é importante que se faça, no lugar da DRU, uma reforma tributária. “É imprescindível que se faça uma reforma tributária que privilegie na arrecadação a justiça tributária e na distribuição entre os entes federados a proporção com suas funções constitucionais, redefinindo assim fontes de receita e explicitando melhor a distribuição dos tributos”, propõe.

Tramita no Congresso a PEC 233/2008, que propõe uma reforma tributária, mas diferente da pensada por Gilson Carvalho. Entre as medidas propostas pela PEC, está a transformação das contribuições em impostos, o que significaria o fim da vinculação dos tributos a áreas específicas. “Esta é a tentativa mais elaborada feita até agora de dar o tiro mortal nessa concepção de seguridade auto-financiada pela intervenção do Estado. Seria a criação de uma DRU permanente”, opina Elias Jorge.

Entretanto, para o professor, o governo não teria condições hoje de acabar totalmente com a DRU. “As contas não fecham, fazer isso equivaleria quase a fazer uma revolução socialista, que é denunciar a dívida pública. Essencialmente as demandas para pagamento da dívida são maiores do que a capacidade do governo de pagá-la, por isso o governo tem que ficar recorrendo a esses mecanismos”, sustenta.

Dívida pública

A auditoria cidadã da dívida pública, um movimento composto por várias entidades, também considera que a conta não fecha. Levantamento feito pelo movimento mostra que em 2010, o pagamento tanto da dívida externa quanto da dívida interna, bem como os recursos destinados para custear os juros, amortizações e refinanciamento das dívidas consumiram 93% de todo o orçamento da União. As três áreas da seguridade social – saúde, previdência e assistência social – ficaram, juntas, com apenas 28,77% dos recursos. Em 2011, até o momento, os cálculos indicam que o pagamento da dívida ficou com cerca de 53% do orçamento. “Nós defendemos uma auditoria da dívida pública. Inclusive em 2000 foi feito um grande plebiscito no qual 6 milhões de pessoas votaram pelo não pagamento dessa dívida enquanto não se fizesse uma auditoria, conforme determinou a Constituição, e ela jamais foi realizada. Essas pessoas votaram e exigiram uma auditoria porque há inúmeros indícios de ilegalidade nessa dívida. A dívida interna já chega a quase R$ 2,5 trilhões, e a externa a mais de US$ 300 bilhões. Nós temos que mostrar que dívida é esta. E a recente CPI da dívida na Câmara dos deputados mostrou que um dos fatores principais disso é a aplicação de juros sobre juros”, afirma o economista Rodrigo de Ávila, do movimento pela Auditoria Cidadã da Dívida. Rodrigo acrescenta que o Supremo Tribunal Federal já declarou o mecanismo de cobrança de juros sobre juros como ilegal.

O economista comenta que é recorrente o discurso por parte dos governos de que a seguridade social não tem recursos, entretanto, não se questiona o desfinanciamento promovido pelo próprio executivo. “Sempre dizem que a previdência é deficitária, que a saúde não tem dinheiro. É uma grande contradição porque o governo pega os recursos para pagar a dívida e depois diz que não tem dinheiro”, salienta.

A CPI criada para investigar o pagamento da dívida pública encerrou os trabalhos em maio de 2010. A CPI teve pouca repercussão na mídia e houve muitas divergências sobre o relatório final da comissão. O relatório oficial aprovado na CPI por deputados da base do governo e do PSDB reconheceu que a dívida é produto de altas taxas de juros, mas concluiu que não existem irregularidades nesse pagamento. Entretanto, outros parlamentares, junto a movimentos sociais, como o da Auditoria Cidadã da Dívida, elaboraram um relatório alternativo com várias denúncias de irregularidades. O documento foi apresentado ao Ministério Público Federal, que atualmente está analisando as provas. Ambos os relatórios, o oficial e o alternativo, têm o mesmo número de assinaturas de parlamentares. Rodrigo lembra que durante os trabalhos da Comissão, foram solicitadas ao Executivo várias informações sobre, por exemplo, o montante de recursos desviados de cada área social pela DRU. “Esse requerimento não foi respondido pelo governo federal, nem o governo diz que sabe”, questiona.

A auditoria cidadã da dívida lamenta que, mesmo prevista na Constituição de 1988, uma auditoria da dívida pública, para estudar a fundo os mecanismos de pagamento, não seja colocada em prática. Em 2007, o Equador promoveu uma auditoria da dívida do país e o resultado foi a anulação de cerca de 70% do montante devido aos credores externos. Para Rodrigo, diante dos montantes destinados ao pagamento da dívida pública no Brasil, a argumentação do governo de que a DRU é necessária porque o orçamento da União tem grande número de destinações específicas é uma manipulação. “Quando o governo faz esse cálculo, ele retira o gasto com a dívida, que chega a quase 50% do orçamento. O governo simplesmente tira esse valor que é pago à dívida pública e o que resta ele diz que é engessado. Isso não tem nenhum cabimento porque deveria ser analisado o orçamento como um todo e não o orçamento já expurgado do gasto com a dívida”, questiona.

Elias Jorge reforça que, na raiz de toda a discussão da DRU, está a discussão da dívida pública. O professor também aposta na necessidade de uma auditoria para identificar como o país chegou a essa situação. “A auditoria, que não pode ser confundida com calote, virou um nome meio maldito, mas essa reflexão aprofundada é eternamente necessária. A dívida suga os recursos e a energia do país, por isso vale a pena aprofundar essa discussão. Da mesma forma que discutir a reforma tributária envolve discutir também a dívida e envolve discutir também qual o nível de manutenção dos princípios da seguridade que desejamos manter. Se vamos aprofundar o projeto da Constituição de 1988, então temos que garantir a integridade e integralidade dos recursos para seguridade social”, defende.

Para Saraiva Felipe, é preciso pensar em alternativas para o pagamento da dívida, de forma a não sacrificar a seguridade social. “Temos que ter outros mecanismos, não pode ser sacrificando a área social como um todo e particularmente uma área já bastante sofrida em termos de financiamento, que é a área da saúde. É questão de uma opção política do governo. Com R$ 1,50 por habitante por dia não vamos conseguir oferecer um sistema universal, equânime, gratuito, com participação social. É isso que temos como gasto público nas três esferas de governo, para oferecer desde a promoção até o atendimento mais complexo. É muito pouco, o ideal é que gastássemos pelo menos como outros países da própria América Latina, aproximadamente US$ 800 por habitante ao ano [em torno de R$ 3,50 reais por dia]”, propõe.

MPOG

O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) foi procurado para comentar sobre a proposta de prorrogação da DRU, entretanto, a assessoria de imprensa do órgão informou que o ministério não se pronunciará enquanto a PEC 61/2011 estiver tramitando no Congresso.