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Democracia é saúde

Primeira mesa de debate da 16ª CNS resgatou a discussão central da conferência que estabeleceu as bases do SUS, em 1986
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 05/08/2019 09h41 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

‘Saúde como direito’ foi o tema da primeira de três mesas de debate da 16ª Conferência Nacional de Saúde, que começou no domingo e vai até o dia 7 de agosto, no Parque da Cidade, em Brasília. A 16ªCNS, ou 8ª+8, tem como pauta central a retomada das diretrizes da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que estabeleceu as bases do Sistema Único de Saúde. Assim como a 8ª CNS, a Conferência que acontece este ano tem como tema ‘Saúde e Democracia’.

Essa relação foi o fio condutor das apresentações realizadas pelos três palestrantes da mesa que ocorreu na tarde de domingo (04): o professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Emerson Merhy, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), e a liderança quilombola Josefa da Guia, da comunidade quilombola da Serra da Guia, em Sergipe.

Resgate da memória da 8ª CNS

Merhy celebrou a realização da 16ª CNS no atual contexto, marcado por desmontes dos direitos sociais inscritos na Constituição de 1988, bem como as próprias instâncias de controle e participação social que ela criou. “Uma conferência desse porte é a expressão de um conjunto de atos heroicos coletivos neste momento que a gente vive”, disse Merhy, contrastando-o com o contexto de realização da 8ª conferência, 33 anos atrás. “O processo de organização da 8ª foi um momento de muita alegria. Estávamos saindo da ditadura militar, vivendo o desafio de construir um outro país, no qual todas as vidas valessem a pena, sem discriminação, sem produção de desigualdade. A 8ª carregava esse espírito, de desafiar a história do Brasil, que foi construído secularmente em cima de muita morte, de muita violência e desigualdade”, resgatou. 

A 8ª CNS, disse Merhy, consagrou a ideia de que a saúde é inseparável da democracia. “A 8ª vai usar a noção de que a saúde é um direito de qualquer um. Em um país que em nenhuma das sete constituições anteriores tinha colocado elementos específicos sobre saúde, desejávamos uma constituição que dissesse que todo brasileiro brasileira tem direito à vida decente, à vida com qualidade. O Sistema Único de Saúde vai ser idealizado em cima dessa ideia”, apontou.

Para Merhy, é necessário “extrair esperança” da 16ª CNS, resgatando a memória daqueles que ajudaram a construir o SUS ao longo das três últimas décadas. “A melhor maneira de fazer isso, para mim, é lembrar um dos maiores sanitaristas deste país e que tem longa presença na luta que o SUS espelha. Ele se chama Davi Capistrano da Costa Filho, que foi secretário municipal de saúde de Santos nos anos 90 e cometeu ousadias que mostraram que o SUS não se trata simplesmente de construir um novo serviço de saúde, mas de um novo Brasil”, lembrou o professor da UFRJ. Segundo ele, Davi Capistrano foi inclusive ameaçado de prisão quando pregou a redução de danos como a estratégia mais eficaz contra a transmissão do vírus HIV entre jovens usuários abusivos de drogas, que compartilhavam seringas e contaminadas. “Ele mostrava que a construção do SUS não é só oferecer procedimentos de saúde, mas defender em cada ato a ética da vida”, disse Merhy. O professor da UFRJ lembrou ainda do papel de Davi Capistrano na luta antimanicomial em Santos, quando atuou pelo fechamento do Hospital Anchieta. “Era um verdadeiro campo de concentração, um desrespeito total a vida de quem era designado como louco, como anormal”, lembra.

Por fim, Merhy destacou que o campo da saúde é um dos que mais consegue mobilizar pessoas em torno de uma pauta comum, e que essa mobilização é fundamental para resistir contra o desmonte das políticas sociais que vem se acelerando nos últimos anos. “O direito para nós é como o oxigênio, precisamos para viver. Não abrimos mão disso. É fundamental que os muitos Davis que existem em nós renasçam no cotidiano, renasçam aqui nesse encontro”, concluiu. 

A líder quilombola da comunidade de Serra da Guia, no município de Poço Redondo, em Sergipe, Josefa da Guia, afirmou que trabalha como parteira há 55 anos, e desde os sete trabalha como rezadeira. “Estamos com muita dificuldade, a cada dia que passa não chega o que a gente precisa”, lamentou. Saúde, continuou Josefa, é mais do que apenas um atendimento de qualidade nos serviços. “Saúde precisa de moradia de qualidade, precisa que o povo seja ouvido”, disse.

Pelo fim da EC 95

A deputada federal Jandira Feghali destacou a importância de refirmar os parâmetros estabelecidos pela 8ª CNS. “A gente muitas vezes cai na armadilha de achar que as coisas que são ditas há 33 anos ficam ultrapassadas, mas a gente esquece que a todo momento tentam destruir aquilo que estamos há 33 anos construindo”, alertou.

Mas o SUS vem resistindo, com dificuldades e limites, continuou a deputada federal pelo PcdoB. “O esforço não foi pequeno”, lembrou. Ela destacou que a crise social, política e econômica que se abate sobre o país tem gera efeitos concretos sobre as condições de saúde da população. Segundo ela, o número de pessoas procurando postos de saúde com sintomas relacionados a ansiedade e a depressão, e isso não é por acaso. “As pessoas estão vivendo a precariedade no trabalho após a aprovação da reforma trabalhista, estão com medo do crescimento do ódio, da violência, deste clima de absoluta insegurança”, pontuou. E completou, lembrando do que ela vê como ataques a democracia no país. “Não se pode falar em democracia quando se despreza a existência da fome, quando os dados científicos são negados, o cinema é censurado, os mortos e desaparecidos políticos são desrespeitados”.

Para ela, a realização da 16ª CNS aponta para a importância do controle social enquanto uma política de Estado no Brasil. “O controle social é uma conquista da qual não podemos abrir mão”, destacou.

Para a deputada, a derrubada da Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um teto de gastos da União pelos próximos 20 anos, precisa ser item central na pauta de reivindicações da conferência. “A EC 95 promove uma asfixia brutal. Para gastar em educação precisa tirar da saúde, pra gastar na saúde precisa tirar da educação. É inviável. Precisamos discutir que Estado nós queremos, pois não há democracia sem Estado. Ele precisa ser responsável por induzir as politicas sociais”, afirmou.

Jandira destacou ainda a importância de resistir contra a reforma da Previdência, cuja votação em segundo turno deve ter início a partir do dia 6 de agosto na Câmara dos Deputados. “Um dos aspectos da reforma é quebrar o conceito da Seguridade Social que está na Constituição. Devemos impedir que isso aconteça”, reivindicou. Para ela, a defesa da democracia é a ‘mãe de todas as batalhas’ atualmente no país. “Eu não sei de que forma vamos fazer com que esse país entre em ebulição, mas ele precisa entrar. Não podemos mais ficar em silêncio. Precisamos manter nossa unidade, nossa esperança, e não podemos perder nossa capacidade de nos indignar”, pediu a deputada federal, concluindo sua apresentação com um grito de “Viva o SUS, viva o povo brasileiro, viva o Estado de direito”.