No ano em que se completam 50 anos do golpe que instaurou a ditadura empresarial-militar no Brasil, a Poli publicou uma série especial abordando diferentes temas relacionados ao período que vai de 1964 a 1985 e seus impactos. Na última edição de 2014, a Poli traz uma reportagem sobre a relação entre ditadura e educação no Brasil. Pesquisadores, militantes e trabalhadores em educação analisam o sentido da política implementada pelos governos militares em associação com o capital, que operou reformas no ensino básico e superior, e também sua combinação com as formas assumidas pela repressão e perseguição política nesse campo. Um dos principais protagonistas do enfrentamento à ditadura empresarial-militar no Brasil foi, afinal, o movimento estudantil, vinculado às escolas e universidades. Especificamente no campo da educação profissional, a reportagem discute o sentido da profissionalização compulsória no ensino médio, instituída pela reforma da educação básica de 1971, buscando analisar de que forma se combinava ao projeto mais amplo de educação do período.
“Para entender o papel do golpe de 1964 na desarticulação dos movimentos de educação, é preciso considerar o que acontecia nos início dos anos 1960 em torno de um movimento crítico na área”. A afirmação de Kênia Miranda, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NiepMarx/UFF), ajuda a entender o cenário da educação com que o golpe empresarial-militar se deparou. Os primeiros anos da década de 1960 foram marcados pelas reivindicações por reformas de base e amplas mobilizações nos meios urbano e rural. Nesse contexto, trabalhadores em educação organizaram-se em associações e, ainda em 1961, participaram das disputas em torno à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). A Campanha em Defesa da Escola Pública aglutinava professores e funcionários de escolas e universidades para a defesa do caráter público da educação em contraposição aos interesses do empresariado e da iniciativa privada que se fortaleciam.
Fora do eixo da educação formal, o mesmo período é marcado pelos movimentos de educação popular, que se dedicavam, sobretudo, à alfabetização da população pobre. “As experiências de alfabetização até então eram criadas por uma perspectiva focalizada, que tomava o analfabetismo como uma chaga nacional no contexto da modernização. As campanhas ofereciam elementos muito rudimentares da escrita, para que os trabalhadores pudessem votar, mas não tinham continuidade em um processo de alfabetização mais amplo”, explica Kênia Miranda. Ela completa: “O movimento da educação popular encara o analfabetismo como questão social. Os trabalhadores começam a ser alfabetizados a partir da lógica de trabalho da sua comunidade”. Segundo a professora, entre os diferentes movimentos que compunham a educação popular destacavam-se como principais experiências os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPCs da UNE), o Movimento de Educação de Base (MEB, vinculado à educação da base da Igreja Católica) e os movimentos de cultura popular constituídos pela perspectiva do educador e filósofo Paulo Freire em torno à pedagogia libertária. À exceção do MEB, que se reorganizou para atender às exigências do novo regime, todos os movimentos de educação popular foram extintos após o golpe
.Que formação era necessária?
O golpe de 1º de abril de 1964 interrompeu, então, as pressões ainda incipientes em defesa da educação pública feitas pelas associações e organizações de trabalhadores formais da educação, assim como as iniciativas não formais no campo da educação popular. O regime empresarial-militar instituiu o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) em substituição às experiências de viés crítico, sufocando e, ao mesmo tempo, se apropriando de alguns elementos das iniciativas da educação popular. Para Olinda Evangelista, professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC), esse foi um movimento competente, do ponto de vista dos interesses do regime ditatorial, para apropriação de uma demanda: “O governo encerrou as experiências de educação popular com violência e em seu lugar inseriu o Mobral, empurrando a demanda de forma institucional para o seu campo de dominação e interesse”, diz.
Mas ações como essa, tomadas pelo governo militar, se devem exclusivamente à necessidade de repressão? Como compreender a proposta da ditadura para educação em suas relações com o contexto político e econômico do período? No artigo “A universidade sob céu de chumbo: a heteronomia instituída pela ditadura empresarial-militar”, Roberto Leher, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Simone Silva, técnico-administrativa também da UFRJ, apontam que o momento deve ser compreendido como uma “destruição criadora”. Os pesquisadores destacam que, na perspectiva dos interesses burgueses, seria um erro compreender o processo de repressão a professores e funcionários apenas como a destruição de um projeto anterior. “Ao mesmo tempo em que a repressão foi recrudescida, o governo e seus apoiadores avançavam na contrarreforma da universidade, um objetivo perseguido de modo diligente desde os primeiros meses da ditadura”, diz o texto.
Quais os objetivos e o sentido, então, dessa contrarreforma pretendida para a universidade, realizada finalmente em 1968? E das políticas para a educação básica, que também passou por um processo de reforma em 1971? Olinda Evangelista aponta que, para compreender o projeto da ditadura empresarial-militar para educação, é necessário identificar a natureza de classe daquele regime: “A ditadura foi um movimento do capital, não dos militares exclusivamente”, diz. Identificando a ditadura como o momento que consolida o capital monopolista no Brasil, correspondendo, assim, aos interesses de classe capitalistas, ela explica que o projeto de educação do regime precisa corresponder às demandas colocadas por aquela conjuntura: “O governo do Juscelino Kubitschek [1956-1961] já estava introduzindo no Brasil algumas mudanças na economia. Na década de 1960 e início dos anos 1970 isso se aprofunda, e o projeto educativo anterior, originário do período compreendido entre os anos 1920 e 40, já não oferecia mais as respostas necessárias”, explica. E completa: “Havia uma demanda fundamental de construção de um sujeito e uma consciência que fossem palatáveis aos rumos que as relações de produção estavam tomando: o desenvolvimento industrial e as demandas impostas pelo ‘milagre econômico’. O projeto era o do ‘Brasil grande’, do ‘Brasil potência’. A perspectiva que orientava a educação, então, era a da teoria do capital humano: a ideia de que o ser humano tem um capital em si mesmo, que será potencializado pela educação, pela formação desse capital para sua valorização”.
Acordos MEC-Usaid e as reformas de 1968 e 1971
A demanda, então, era por uma formação percebida como qualificação para o trabalho. A teoria do capital humano passa a organizar a educação pela perspectiva da pedagogia 'tecnicista' ou 'produtivista': voltada para a introdução dos trabalhadores às técnicas necessárias à reprodução do capital monopolista em consolidação. Foi nesse contexto que o governo militar brasileiro, através do Ministério da Educação, selou uma série de acordos com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, pela sigla em inglês), com a intenção de rediscutir o modelo e funcionamento da educação no Brasil, do nível básico ao superior.
Os acordos, mantidos inicialmente em sigilo, foram divulgados em 1966 e traçaram as linhas gerais que deveriam ser seguidas pelo sistema de ensino brasileiro. Eles se materializaram principalmente na Reforma Universitária de 1968, implementada pela lei 5540/68, apesar de também indicarem eixos para a educação básica. Um dos protagonistas desse processo foi o estadunidense Rudolph Atcon, convidado pelo MEC para ser um dos idealizadores da reforma da universidade no Brasil. “O Rudolph Atcon elaborou, junto ao Ministério da Educação, uma proposta de reforma de cima para baixo, implementando um modelo tecnicista de ensino superior”, analisa Olinda Evangelista.
em janeiro de 1969, é publicado o decreto 447, conhecido como o “AI-5 das universidades”. Ele previa a punição sumária de professores, alunos e funcionários das instituições de ensino superior que fossem considerados subversivos. Nas universidade se escolas, a perseguição aumentou.
José Rodrigues, professor da Faculdade de Educação da UFF e pesquisador do Niep-Marx, explica que a reforma instituiu um modelo de ensino superior brasileiro marcado pela dualidade: “Os acordos MEC-Usaid indicam a construção de uma universidade formada pela importação da perspectiva da universidade humboldtiana [modelo consagrado na Alemanha, pela Universidade Humboldt de Berlim, marcado pela integração entre ensino, pesquisa e extensão] com um corte estadunidense, empresarial. O produtivismo que hoje assola as universidades nasceu nesse momento, a partir da importação do modelo americano de se fazer ciência. É a lógica de uma ciência instrumental”, diz. E completa, apontando as contradições desse discurso: “O modelo que emerge da reforma de 1968 faz um elogio do sistema humboldtiano somado à perspectiva empresarial norte-americana, mas não é esse o modelo implementado massivamente no Brasil. Ele fica restrito ao número de matrículas muito pequeno nas universidades federais e na Universidade de São Paulo, enquanto se propaga o ensino superior privado com cursos de graduação considerados de qualidade mais baixa e sem integração entre ensino, pesquisa e extensão”.
Dados publicados recentemente pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) confirmam essa tendência: atualmente, mais de 70% das matrículas no ensino superior no Brasil estão nas instituições privadas.
Em linhas gerais, a reforma das universidades em 1968 implementa uma formação voltada às necessidades do mercado através da aceleração dos cursos, da fragmentação das turmas anuais em disciplinas cursadas semestralmente e da introdução do sistema de créditos, da priorização da destinação de recursos para as áreas de interesse do capital, mais diretamente vinculadas ao setor produtivo, e corte verbas para as áreas de ciências humanas, da adoção de incentivo à criação de universidades particulares, com oferecimento de subsídios para alunos de baixa renda, e do desenvolvimento de perspectivas de gestão empresariais nas universidades públicas. “No entanto, uma das principais reivindicações do movimento estudantil naquele período não foi atendida: a expansão de vagas no ensino superior. Com a implementação do vestibular unificado, os excedentes, ou seja, aqueles alunos que passavam nas provas, mas não tinham acesso garantido às universidades por falta de vagas, aparentemente ‘desapareceram’.
Com o vestibular, eliminatório, extingue-se a figura do excedente não pelo aumento de vagas, mas pela reprovação definitiva de todos que não teriam vagas garantidas”, analisa Olinda Evangelista. Um mês depois da aprovação da reforma do ensino superior, veio o que é considerado por alguns analistas o mais duro golpe do regime empresarial-militar: a promulgação do Ato Institucional nº 5, o AI-5, decreto que suspendeu uma série de garantias constitucionais e deu poderes extraordinários ao presidente. A instituição do AI-5 marcou o fechamento do regime e o início do período mais sombrio das perseguições, torturas e assassinatos de militantes pelo Estado. O ano de 1968 havia sido um marco de intensas manifestações no Brasil e no mundo, o que foi respondido com mais repressão e cerceamento pela ditadura.
Complementarmente, em janeiro de 1969, é publicado o decreto 447, conhecido como o “AI-5 das universidades”. Ele previa a punição sumária de professores, alunos e funcionários das instituições de ensino superior que fossem considerados subversivos. Nas universidade se escolas, a perseguição aumentou. Professores cassados e presos, estudantes desaparecidos, torturados e mortos. O decreto 447 aprofundou, assim, as restrições que já tinham sido impostas dois anos antes, pelo decreto 228 de 1967, que limitava a atuação das entidades de representação estudantis. “Foi um conjunto pesadíssimo de medidas de contenção, inibição, repressão, assassínio, morte, tortura, exílio e prisão, adotado para dar sustentação ao projeto de desenvolvimento econômico que estava sendo implementado”, aponta Olinda Evangelista.
Já depois do AI-5, em 1971, no cenário de fechamento do regime e refluxo dos movimentos organizados diante da repressão, foi aprovada a lei 5692, que implementou a reforma da educação básica. A escolarização obrigatória passou de quatro para oito anos, com a fusão dos antigos primário e ginasial no primeiro grau. Os antigos cursos clássico e científico foram fundidos no segundo grau, que passou a ser compulsoriamente profissionalizante, com três anos de duração. A lógica da formação para o mercado, a partir da teoria do capital humano, visando à qualificação de trabalhadores para o desenvolvimento econômico, orientou todo o processo.
“Hoje temos o mesmo discurso dos anos 1970: a educação precisa estar a serviço do desenvolvimento e gerar ‘competitividade’. O desemprego, agora como em 1970, é associado à baixa escolaridade e o trabalhador é responsabilizado por se qualificar para o mercado”
José Rodrigues
Olinda Evagelista explica que, formalmente, a dualidade que até então caracterizava o ensino básico desapareceu: “Antes, alguns cursos básicos davam acesso ao ensino superior e outros eram apenas profissionalizantes, encaminhando direto o trabalhador para o mercado. A reforma de 1971 acabou com isso, pois todos os cursos passaram a dar acesso a ensino superior. E, com o vestibular unificado, o estudante poderia optar por qualquer curso na universidade. Junto a isso, todos os cursos passaram a ser profissionalizantes no nível médio, sendo entendidos como habilitações para os diversos campos do mercado de trabalho. Em tese, não haveria mais dualidade, já que não havia duas formas de cursos diferentes, o profissionalizante e o que dá acesso ao nível superior”. Mas ela completa, destacando que nesse processo também se desenvolveu uma estratificação, que é estrutural e necessária a toda educação em sociedades divididas em classes: “As escolas particulares, de segmentos altos e médios, não implementaram a profissionalização do jeito previsto pela lei. Inventaram profissionalizações que se dirigiam aos vestibulares de medicina, odontologia e cursos de elite, driblando a lei. No sistema público de ensino a legislação foi implementada, e assim a classe trabalhadora e os segmentos médios que não podiam pagar escolas privadas, entravam na vertente do ensino compulsório profissionalizante. Permanece a ideia de duas escolarizações, uma para a burguesia e outra para o trabalhador”.
Analisando a reforma de 1971 e a profissionalização compulsória, José Rodrigues aponta que as ‘brechas’ encontradas não devem ser entendidas como incoerências da proposta ditatorial. “Era para ser assim mesmo. É o mesmo processo que aconteceu com a educação superior: se proclama um modelo único e se instala um modelo dual. Em uma sociedade capitalista, marcada pela divisão de classes, a educação dos segmentos médios e altos vai ser sempre diferente da educação da classe trabalhadora”, aponta. Ele ainda destaca que a lógica da reforma é muito semelhante ao discurso atual de formação para “empregabilidade”: “Hoje temos o mesmo discurso dos anos 1970: a educação precisa estar a serviço do desenvolvimento e gerar ‘competitividade’. O desemprego, agora como em 1970, é associado à baixa escolaridade e o trabalhador é responsabilizado por se qualificar para o mercado”.
Outro elemento fundamental que perpassou o conteúdo da educação desde o nível básico ao superior no período da ditadura foi a criação de disciplinas voltadas à sustentação ideológica do regime empresarial-militar. Nas séries iniciais do primeiro grau, foi introduzida a disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC); nas séries finais e no segundo grau, a disciplina Organização Social e Política Brasileira (OSPB); e, no ensino superior, a disciplina Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB). “Junto a isso, houve a exclusão das disciplinas de sociologia e filosofia. Foram retiradas as disciplinas de reflexão e inseridas as de doutrinação”, conta Olinda, que destaca ainda que esse processo foi acompanhado por políticas de treinamento tecnicista de professores e elaboração de currículos escolares e livros didáticos pela mesma perspectiva.
Refletindo sobre o que as mudanças implementadas pela ditadura no campo da educação consolidaram para o período posterior, Kênia Miranda destaca o desenvolvimento do setor privado e sua conformação como um nicho de mercado capitalista. “As reformas da ditadura abriram muito espaço para iniciativa privada: o percentual de verbas destinadas à educação pública foi bastante diminuído e, com isso, a setor privado cresceu bastante. Do início dos anos 1960 até o fim da ditadura a iniciativa privada triplicou o seu tamanho na educação brasileira, o que é uma expansão brutal. A Constituição de 1967 assegurou, ao mesmo tempo, o acesso das instituições privadas às verbas públicas, através da expansão de bolsas, relativizando o próprio sentido de gratuidade do ensino”, destaca a professora da UFF.
Do ponto de vista da organização dos trabalhadores para resistir a esses processos, ela aponta um salto entre o que havia antes e depois da ditadura. A professora lembra que, ao final dos anos 1970, os processos de reorganização sindicais, partidários e de movimentos sociais também se expressaram na educação. Segundo Kênia, a organização docente avança em relação aos movimentos associativistas ou lúdicos do início dos anos 1960 em direção à constituição de entidades de caráter sindical. “A classe trabalhadora consegue se reorganizar no Brasil nos fins da década de 1970, em várias categorias. Nesse contexto das lutas sociais, os trabalhadores da educação se rearticularam.
A partir daí organizaram novos instrumentos de luta, criando associações – porque professores, como servidores públicos, não podiam se sindicalizar – que, na verdade, essas têm caráter tipicamente sindical, de enfrentamento, construção de grandes mobilizações, greves e participação na construção e difusão de partidos políticos. Com isso, começam também a pautar o debate pedagógico e buscar interferência na política educacional”, avalia.
Olinda Evangelista concorda, destacando que o movimento docente, muito reprimido no período da ditadura, aparece de forma mais contundente no período posterior, pautando a elaboração da crítica do projeto ditatorial. Pensando no que permanece em relação a esse projeto, avalia que ele precisa ser compreendido em suas bases conjunturais: “Aquele projeto educativo é um fenômeno de conjuntura, responde a um contexto. Então, mudado o contexto, o que permaneceu? Primeiro e mais importante, a estrutura do capital. A relação capital-trabalho e a expropriação de mais-valia são elementos estruturais. Então, o que fica de fundamental é a ideia de que o trabalhador precisa qualificar a sua própria riqueza, percebida como o ‘capital humano’”, avalia.
E conclui: “Essa visão da educação como qualificação para o trabalho não desapareceu. Agora, com a flexibilização do trabalho e, portanto, com mudanças das relações no âmbito da produção econômica, o capital demanda outro trabalhador, o trabalhador flexível. E segue dizendo que o trabalhador precisa se qualificar para garantir sua inserção”