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Expressão de uma entidade coletiva

Um breve balanço no aniversário de 5 anos da Revista Poli.
Virgínia Fontes - EPSJV/Fiocruz | 24/10/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 Esta é uma resenha orgulhosa, e em muitos sentidos. A Revista Poli vai muito além de uma mera publicação institucional, como tantas. Desde o primeiro número, a revista produziu e socializou conhecimento. Em suma, ela tem o que dizer. Construiu uma veia jornalística própria.

Como argutamente analisou Antonio Gramsci, algumas publicações expressam uma entidade coletiva, consolidam uma certa cultura e participam da formação do grupo ao qual pertencem. A Poli constitui uma ferramenta de co-produção e de socialização do conjunto das atividades e inquietações presentes na Escola Politécnica. É uma revista peculiar: não se limita a uma divulgação burocrática e instiga permanentemente a ir mais longe, com ritmo ágil a exigir sempre mais.

Uma quantificação de sua produção, tanto nas matérias quanto nas entrevistas, demonstra sua profunda inserção nos temas centrais da Escola Politécnica: Trabalho, Saúde e Educação. Lembro que esses temas, focos privilegiados da revista, são tratados a partir de ângulos próprios, que demonstram a estreita correlação entre eles: o de uma educação politécnica voltada para a superação da divisão entre trabalho manual e intelectual e pela emancipação do trabalho alienado (e cuja base teórica reencontra Marx e Antonio Gramsci); o da luta pela saúde pública e universal, balizada pelos marcos da Reforma Sanitária mantidos vivos na EPSJV e seu profundo compromisso pelos determinantes sociais da saúde; e, finalmente, a questão do trabalho sempre analisado a partir do conjunto das relações sociais, o que envolve explicitar as condições contemporâneas do capitalismo. Os trabalhadores são tomados como seres sociais cujas características se modificam segundo a expansão e/ou crises capitalistas; jamais são reduzidos a meros números abstratos de uma força de trabalho à disposição de um mercado abstrato.

Nas matérias dedicadas à saúde, a Poli cuida de apresentar as especificidades de cada tema, ao mesmo tempo em que incita a refletir sobre o conjunto do problema, sem jamais oferecer soluções simplistas. Estimula os jovens leitores a pensar nos desafios sociais contemporâneos: questão ambiental, drogas (inclusive abordando corajosamente a questão do crack ), saúde e ambiente, a estrutura da saúde da família e as lutas dos Agentes Comunitários de Saúde, os programas públicos de saúde (como o Mais Saúde), a relação entre publicidade e saúde, e o tema da violência . A Poli acompanha – sempre na defesa da educação e da saúde públicas, universais, laicas e de qualidade – a conjuntura nacional e internacional, à luz dos nossos problemas mais candentes. Assim, aborda temas de longo alcance na educação, como os desafios postos pelas diferentes maneiras de conceber a Educação à Distância e o Plano Nacional de Educação, e acompanha de perto tudo o que diz diretamente respeito ao ensino profissionalizante, como as cotas, o Enem, as diretrizes e mudanças curriculares e o Pronatec. No que tange ao trabalho, três grandes matérias se ocuparam das mudanças contemporâneas no mundo do trabalho , da imigração e da Consolidação das Leis do Trabalho -CLT.

O mais interessante e rico na leitura da Poli, para além das matérias destinadas especificamente a cada tema, é ver como eles se integram na esmagadora maioria das matérias e entrevistas. Como exemplo, vamos folhear o número 24 (jul-ago 2012). Ele apresenta uma densa matéria sobre a realização da Rio+20, no Rio de Janeiro, mas não se limita ao encontro oficial, destacando a Cúpula dos Povos. A Rio+20 aparece em perspectiva histórica, sem ocultar as diferenças internacionais e as profundas desigualdades sociais no tocante à questão ambiental. Analisa os crescentes riscos ambientais para a saúde, as transformações no mundo do trabalho resultantes de uma intensa privatização e financeirização, inclusive da natureza (o chamado “capitalismo verde”), e avança apresentando as lutas sociais no Rio de Janeiro contra megaempreendimentos altamente poluidores. E o faz acompanhando o ToxicTour, atividade popular realizada no período da Rio+20, que tornou público o chamado “lado negro do desenvolvimento”, como a contaminação de Santa Cruz pela TKCSA, o extermínio dos pescadores artesanais da Bahia de Guanabara, a contaminação de longa duração de Duque de Caxias, como a Cidade dos Meninos e dos bairros em torno da REDUC, lutas nas quais a EPSJV, o Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc) e a própria Fiocruz se engajaram. Aqui encontramos o papel pedagógico da revista e o tema da Educação; o que está em debate em sala de aula, nos laboratórios e nas pesquisas, assume na Poli a feição de uma matéria integrada, viva e esclarecedora. Essa edição ainda revela uma cínica proposta de Lawrence Summers, que foi economista chefe do Banco Mundial, a de exportar empresas poluentes para os países mais frágeis, e permite verificar como o argumento econômico pode maquiar interesses privados. Entrevista ainda Vladimir Saflatle, filósofo e professor da USP, sobre as lutas sociais contemporâneas. A matéria seguinte traz plataforma de acesso (disponível) para cartografia social de impactos sobre meio ambiente e injustiça ambiental. Apresenta ainda uma resenha de livro de Marcio Pochmann, o qual critica a suposição de uma ampliação de uma classe média no país, através de cuidadosa análise das contratações recentes de trabalhadores. A revista conclui com um verbete sobre Ambiente, favorecendo a conceituação dos temas centrais tratados nesse número.

Esta foi apenas uma micro-amostra do trabalho levado adiante por uma pequena, qualificada e rigorosa equipe de jornalistas, comprometida a fundo com a própria noção de politecnia.

Vale observar que um dos maiores desafios de nosso tempo é pano de fundo que a Poli reencontra e atualiza em várias edições: a defesa de serviços públicos universais somente será coerente se ousar analisar a tendência crescente à privatização e à expropriação de direitos – na saúde, na educação e no trabalho.

Em 2011, Poli preparou substantiva matéria sobre as transformações ocorridas no mundo do trabalho , com entrevistas sólidas de pesquisadores renomados da área, trazendo à tona a reconfiguração da divisão internacional do trabalho em tempos de “flexibilidade”, que se traduz em excesso de atividade (com forte impacto na saúde dos trabalhadores) e redução de direitos. Há uma tendência forte de se considerar o surgimento de um novo proletariado, ligado a diferentes atividades laborais, e não apenas às atividades que tradicionalmente foram consideradas como operárias, no campo e nas cidades. A revista não se furta a esmiuçar a polêmica que essa tese – apesar de consistente – suscita. O tema reaparece em outros números, sob a forma de entrevistas, resenhas, comentários.

Em diversos números da revista, as variadas e complexas formas de privatização são esmiuçadas. Ao longo, sobretudo, dos últimos três anos, tornou-se mais evidente que as grandes transformações que envolvem o trabalho, os trabalhadores, a educação e a saúde estão direcionadas não apenas para converter grande parte desses setores públicos em iniciativas privadas, mas em associar (através das famosas “parcerias”), parcelas crescentes dessas atividades com a “gestão privada”, embora contando com fartos recursos públicos. Em 2011, a Poli enfrentou diretamente o tema, abordando a gestão da saúde, os embates e estratégias de privatização. No mesmo número , aliás, publica entrevista com o Ministro da Saúde que confessa não ter “preconceito com qualquer modelo gerencial”.

Em 2013, no número 27 da revista , o tema central foram as relações público-privadas na educação, mostrando como se disseminam parcerias privadas que introduzem a dinâmica e a lógica do mercado no próprio seio das escolas públicas. As grandes reivindicações que explodiriam a partir das Jornadas de Junho de 2013 já estavam presentes na revista, de maneira rigorosa e fundamentada.

No recente número 29 , o tema de capa é: ‘Saúde: direito ou consumo?’. Nesse número, a revista ecoa as manifestações populares que lotaram as ruas de inúmeras capitais e cidades no país, e traz consistente análise sobre as diversas modalidades de privatização implementadas na saúde. O aumento de recursos públicos não irriga as políticas universais mas aprofunda a intimidade com os setores empresariais, direcionando verbas públicas para o setor privado. Saúde, educação e transporte foram alvos fundamentais das manifestações, mostrando o acerto da longa série de matérias, com dados, entrevistas, debates e análises realizadas pela Poli. Uma foto de cartaz em passeata merece atenção: “queremos saúde e educação no padrão Fifa!”.

Esta resenha estaria incompleta se não mencionasse um elemento especial de nossa revista: seu texto ágil e limpo, sua preocupação pedagógica que escapa, entretanto, do didatismo, sua opção por esclarecer o leitor de maneira moderna, através de quadros explicativos e de destaques divertidos, do estabelecimento de verbetes e utilização das cores. O perfil crítico e rigoroso nada tem de pesado ou chato: é uma revista viva, gostosa de ler, bonita de folhear, com capas bem pensadas e engraçadas. A reflexão crítica na Poli alia a inteligência ao prazer.

Bravo, Poli!

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