Estamos fazendo história com este acordo”, sentenciou a presidente Dilma Rousseff. Ao seu lado, na já longínqua tarde do dia 2 de março, estavam o vice-presidente Michel Temer, os governadores de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), e do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), além de ministros e outras autoridades públicas. “Houve, nesse processo, uma convergência de interesses em defesa dessas populações, em defesa do meio ambiente, em defesa da vida, em defesa de um outro tipo de relação entre a sociedade, o meio ambiente e entre as populações e os governos que estavam todos envolvidos nessa questão, juntamente com as empresas”. A presidente se referia à mineradora Samarco e suas controladoras, as transnacionais Vale e BHP Billiton, responsáveis pelo rompimento da barragem de Fundão que despejou 40 bilhões de toneladas de lama de rejeitos de mineração em casas, rios, lagoas e parte da costa capixaba.
A muitas centenas de quilômetros dali, Douglas Krenak assistia à cerimônia pela NBR, a TV oficial do governo federal e chegava à conclusão que relataria mais tarde à Poli: “Esse acordo não foi para nós”. Ele não está sozinho. A avaliação é compartilhada por movimentos sociais, pesquisadores, Ministério Público Federal (MPF) e pelos MPs estaduais de Minas e Espírito Santo. O ponto de partida recai sobre um argumento principal: faltou combinar com o povo.
“Solução inovadora”?
Mas, afinal, que acordo é esse? “Os estados, junto com a União, propuseram uma Ação Civil Pública [ACP] para compelir a Vale, a BHP e a Samarco a repararem os danos socioeconômicos e socioambientais. No curso dessa ação, as partes sentaram e fizeram um amplo debate à mesa de negociação. E foi construído um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta. É um acordo judicial”, explica o procurador-geral do Espírito Santo, Rodrigo Rabello. Com isso, aquela ACP proposta pelos governos contra as mineradoras seria extinta em caso de homologação do acordo, que se encontra em análise na 12ª Vara Federal de Belo Horizonte. Os governos argumentam que a judicialização seria prejudicial para as populações atingidas. “Se partirmos para o caminho usual, o caminho da demanda judicial, certamente levaremos de dez a 15 anos para obter um resultado definitivo desse processo”, prevê Rodrigo.
Contudo, um aspecto considerado problemático é que os governos se comprometem a se manifestar nos autos das ações judiciais que venham a ser propostas para fazer prevalecer as cláusulas e obrigações do acordo. Para se ter uma ideia, só na Justiça Federal de Minas Gerais, tramitavam 48 processos contra a Samarco no final de abril. “Normalmente nos casos de conflitos ambientais, a judicialização é uma linha perseguida pelas empresas e pelo próprio Estado. Mas nesse caso as empresas manobraram para sair da judicialização e fazer um acordo extrajudicial abrangente porque o contexto do rompimento foi o de um crime, segundo a Polícia Civil, segundo o Ministério Público. A Samarco judicializou até certo ponto, recorrendo, por exemplo, de todas as seis multas aplicadas pelo Ibama. Mas a multiplicação desses processos deixou de ser interessante e é aí que entra o acordo”, analisa Eduardo Barcelos, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A rapidez também é um aspecto que chama atenção no acordo. Segundo o procurador-geral do governo capixaba, a negociação com as empresas começou em meados de janeiro, cerca de 15 dias depois que os governos apresentaram a ACP conjunta, em 30 de dezembro do ano passado. No fim de fevereiro, a Agência Pública divulgou uma minuta do acordo, obtida com exclusividade. A julgar pelo documento, as negociações avançaram bastante rápido: com 98 páginas, a minuta é datada de 11 de fevereiro. Foi só a partir daí, por exemplo, que o Movimento de Soberania Popular Frente à Mineração (MAM) e o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração tomaram conhecimento do conteúdo do acordo.
O cerne do acordo é a criação de uma fundação de direito privado sem fins lucrativos, instituída por Samarco, Vale e BHP. Caso o documento seja homologado, caberá a essa fundação a gestão e execução de todas as ações de compensação, mitigação e recuperação dos danos causados pelo rompimento da barragem. O acordo também prevê que isso será feito por meio de “projetos”, mas principalmente a partir de 39 programas divididos em dois eixos: socioeconômico e socioambiental. Esses programas já estão definidos pelo acordo, que lista desde a reconstrução de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira – distritos de Mariana completamente destruídos – até a coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos, com previsão de R$ 500 milhões a serem destinados aos municípios impactados.
A ideia de uma fundação privada não norteou os debates sobre recuperação desde o início. A força-tarefa criada em novembro pelo governo de Minas, por exemplo, chegou a levantar alternativas bem diferentes, como a criação de dois fundos de reparação geridos em conjunto pela União, estados e um consórcio formado pelas cidades afetadas. O primeiro a defender um fundo privado e taxar de ineficiente a gestão pública dos recursos advindos da compensação foi o fotógrafo Sebastião Salgado, que tem um projeto de recuperação de nascentes no rio Doce financiado pela Vale. Ao longo de novembro, Salgado passou a dar declarações em defesa das mineradoras, afirmando que elas teriam “preocupação ecológica” e que “precisamos dessas empresas na sociedade em que vivemos” (Época 24/11). Recebido no Palácio do Planalto, afirmou que era “possível recuperar todo o rio”. Coincidência ou não, a partir daí, a ideia do fundo – e depois da fundação – pegou. E a linha de argumentação de Salgado foi adotada por autoridades públicas.
Em artigo de opinião publicado no site Consultor Jurídico, o advogado-geral do Estado de Minas Gerais, Onofre Batista Júnior, afirma que a fundação é “uma solução inovadora” porque foge da “experiência brasileira” em que “os mecanismos tradicionais de bloqueio de recursos de empresas criam uma montanha de dinheiro a ser administrada por agentes públicos” resultando em “ineficiência total”. Ainda segundo ele, “a situação exige que se leve em conta a viabilidade financeira do fluxo de caixa das empresas” e que “quanto mais rápido a empresa voltar a produzir, mais fácil será obter os recursos necessários à recuperação integral”. Bastante convergente, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, declarou no programa Bom Dia Ministro que o acordo “é uma estrutura inovadora” porque “nenhum dos recursos vem para os cofres públicos”. Ainda segundo ela, “isso [os recursos] vai para um fundo em que a sociedade vai gerir o acesso aos recursos e resultados”.
Essa tal ‘sociedade’
Mesmo colocada em termos abstratos, a “sociedade” não será a responsável por “gerir” nem recursos, nem resultados. Na estrutura da fundação, o papel destinado a ela é o de “opinar” para usar o termo exato do acordo. Chama-se Conselho Consultivo a instância em que, nas palavras da Advocacia Geral da União (AGU) “os impactados poderão efetivamente participar”. Contudo, das 17 vagas previstas, apenas cinco são destinadas aos representantes dos atingidos. O mesmo número de assentos está previsto para representantes de instituições de ensino e pesquisa e para o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. Os dois restantes devem ser ocupados por membros de uma comissão vinculada à Marinha. O acordo não prevê que esses “impactados” sejam representantes de algum movimento social ou organização dos atingidos, como acontece nos espaços de controle social nas políticas públicas. Para chegar ao Conselho Consultivo, deverão ser indicados pelo Comitê Interfederativo, outro braço do acordo.
Formado pelas três esferas do poder público e externo à fundação, o Comitê Interfederativo deve validar, acompanhar, monitorar e fiscalizar os programas da fundação. Na interpretação de Rodrigo Rabello a “sociedade civil” também tem assento nessa instância, já que uma vaga está reservada para o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce – que a essa altura já acumula seis vagas em instâncias previstas pelo acordo. Mas o histórico recente de protagonismo da sociedade civil no Comitê da Bacia não é animador. A presença das empresas de mineração é marcante: Vale, Samarco, Anglo American e Centaurus Metals estão na lista de membros no quadriênio 2013-2017. “Indústria e mineração”, aliás, entra no rol dos usuários como um grupo específico e ocupa mais vagas que “organizações civis”, “organizações técnicas de ensino e pesquisa” e “comunidades indígenas”. Já na diretoria do Comitê, ao lado de empresas do ramo da celulose do porte de Fibria e Cenibra, a sociedade civil está representada por um consórcio intermunicipal de saneamento e pelo Lions Club de Manhuaçu. O presidente do Comitê é o prefeito de Colatina, Leonardo Deptuslki (PT), que ganhou notoriedade ao pousar para um jornal bebendo água da torneira uma semana depois da lama ter chegado à cidade que governa.
“Mariana expôs o limite entre o público e o privado no Brasil. A escolha que o país faz de governar com o privado revela a dificuldade que temos de conduzir e mediar um processo de conflito, tragédia, crime como esse” (Eduardo Barcelos)
De qualquer forma, todas as decisões estratégicas da Fundação cabem a outra instância: o Conselho Curador. Nele, cinco votos são suficientes para aprovar qualquer ação. Só as empresas têm seis. E o membro indicado pelo Comitê Interfederativo não tem poder de veto. Além disso, esse representante é caracterizado no acordo como “privado”. Segundo a AGU, deverá ser indicado “algum especialista ou acadêmico sem vinculação pública”, pois “o poder público não participa, com seus agentes, das instâncias internas de uma entidade privada”.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) critica o número de assentos destinados à população no Conselho Consultivo, e questiona o fato de não haver vaga para a sociedade nem no Conselho Curador nem no Comitê Interfederativo. Presente desde a primeira hora no acompanhamento e organização das vítimas da lama da Samarco, o MAB é um bom exemplo de como a participação vem sendo pensada no acordo desde a sua negociação. Joceli Andreoli, da coordenação nacional, conta que a única vez que o MAB foi chamado para integrar uma reunião sobre o acordo ele já estava fechado. O convite foi feito pela Casa Civil no domingo à tarde (28/02) para uma reunião que aconteceria na segunda-feira de manhã (29/02). “Nós fomos convidados de última hora, sem acesso ao texto do acordo para poder avaliar. Só o MAB estava lá. Então, qualquer menção à participação social é questionada pelo MAB. Não teve participação dos sujeitos que foram atingidos para construir o acordo. Tampouco do movimento organizado, que é legítimo na representação dos atingidos”, afirma.
Douglas Krenak tem uma história semelhante: a liderança indígena afirma que seu povo ficou sabendo do acordo pela internet. “Nós entramos em contato com a Funai, que diz que vai acontecer a assinatura. Ficamos sabendo que Brasília enviou a proposta do acordo para a coordenação de Governador Valadares pedindo que enviassem com a maior urgência o que tivesse de ‘conversa’ com os índios para que pudessem colocar no acordo. Mas também fiquei sabendo que o acordo teve Grupos de Trabalho. A nossa grande revolta é que na elaboração nós teríamos que estar sentados na mesa. Junto com os advogados, com todo mundo”, diz, e completa: “Não somos contra acordo. Somos contra a exclusão das pessoas no acordo. Diante da situação, o que o nosso povo mais quer é acordo. Mas do jeito que eles estão propondo ficou difícil. Esse acordo foi para estruturação do Estado e da empresa”.
Os Ministérios Públicos batem no mesmo ponto. “Nenhum MP assinou o acordo. Houve convites à participação em determinadas reuniões a que membros dos MPs compareceram e apontaram a falta de participação dos atingidos nas negociações. A partir de determinado momento, os MPs deixaram a mesa de negociação”, diz Edmundo Antônio Dias, procurador dos Direitos do Cidadão do MPF em Minas Gerais. Segundo ele, a ausência de audiências públicas dirigidas às comunidades e populações atingidas faz com que o acordo viole o princípio do devido processo legal coletivo, na medida em que dispõe dos direitos desses grupos sem se certificar de que eles concordam com o conteúdo do acordo. “E mais: com relação aos povos indígenas e tradicionais, a União estava obrigada a consultar de forma prévia, livre e informada cada um deles, já que o país é signatário da Convenção 169 da OIT”, alerta. Procurada pela Poli, a Funai respondeu que “tem garantido a participação indígena nesse processo desde o seu início”. Questionada sobre como essa participação aconteceu durante a negociação, respondeu que o acordo “possui dois itens que contemplam a participação do povo Krenak no processo”, se referindo ao momento posterior à negociação.
Dos entes signatários do acordo procurados pela Poli, o governo mineiro é o único que sustenta que o processo de negociação foi participativo. AGU e Procuradoria Geral do Espírito Santo ressaltam, em linhas gerais, que a negociação que criou o acordo assegura participação na fundação e nas ações que ela deverá executar. Questionado sobre como teria acontecido essa negociação, Minas respondeu que “para a celebração do acordo foram realizadas mais de 50 reuniões, e muitas delas incluíram os atingidos”. Porém o governo se refere a reuniões da força-tarefa criada em novembro, a mesma que no início dos trabalhos discutia ideias bem diferentes do acordo, como os fundos públicos. Outra proposta do governo apresentada à força tarefa foi a Ação Civil Pública contra as empresas – a mesma que o acordo pretende extinguir. A participação teria acontecido também através do trabalho da Mesa Estadual de Diálogo e Negociação Permanente. Segundo o governo, essa instância teria “ouvido as demandas das comunidades” e “mantido estreito diálogo com o MAB”.
Finalmente, o governo cita a única reunião sobre o acordo que o MAB sustenta ter participado, aquela de 29 de fevereiro, dizendo que reuniu “representantes das comunidades afetadas e de movimentos sociais para fechar a redação final do acordo, antes de ele ser homologado na Justiça”. Questionado sobre quais movimentos sociais seriam estes, o governo enviou uma matéria que só cita o MAB, caracteriza a reunião como “primeiro encontro” e afirma que “outras reuniões” aconteceriam “ao longo da semana”. Ocorre que em 27 de fevereiro, o portal do governo do Espírito Santo divulgou que o acordo havia sido firmado, detalhando, inclusive, os pontos principais. Procurado pela Poli, o governo capixaba confirmou que o texto já estava fechado na data, antes, portanto, do “primeiro encontro”. Já as “outras reuniões” não foram feitas a tempo, já que a assinatura oficial ocorreu na tarde do dia 2 de março.
Só a partir daí o acordo foi publicado na íntegra nos sites da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais e da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo. Segundo Joceli, foi assim que o MAB teve acesso ao texto. “Fizemos uma análise do acordo e apresentamos as críticas, propondo, inclusive, refazer antes que seja homologado. Já tivemos reuniões com o MPF para não aceitar e dar um parecer levantando todas as armadilhas do acordo”, diz. O documento do MAB lista 23 delas. Outra análise crítica sobre o documento partiu dos pesquisadores Bruno Milanez e Raquel Giffoni do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS) e conclui que a melhor saída seria a impugnação do acordo. O procurador-geral do Espírito Santo, por sua vez, sustenta que não há alternativa. “Nós estamos torcendo para que efetivamente a gente possa chegar a bom termo, possa ver esse acordo homologado para que a população comece a enxergar essas ações, esses benefícios chegando até ela. Porque a gente não pode pensar, como reação, que o acordo não é bom. Propor outra ação. Não adianta. Não adianta propor outra ação. Nós temos que caminhar nessa linha”.
“O acordo é mais uma expressão da lógica de licenciamento e monitoramento que causou o rompimento da barragem da Samarco, notadamente baseada em auditorias contratadas pela própria empresa e fiscalizadas por órgãos ambientais falidos e sem independência porque o líder do Executivo tem sua campanha eleitoral financiada por essas mesmas empresas”, critica Bruno Milanez. Eduardo Barcelos concorda: “Mariana expôs o limite entre o público e o privado no Brasil. A escolha que o país faz de governar com o privado revela a dificuldade que temos de conduzir e mediar um processo de conflito, tragédia, crime como esse”.