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Ficou para depois

Pela terceira vez, Congresso cancela sessão que analisaria os vetos presidenciais à lei que permite a quebra de patentes durante emergências sanitárias. Para especialistas, vetos fragilizam a lei
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 12/05/2022 16h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

O Congresso Nacional cancelou a última sessão conjunta marcada para apreciação de 16 vetos presidenciais, entre eles aqueles feitos ao Projeto de Lei nº 12/2021, que permite a quebra temporária de patentes de vacinas e medicamentos durante emergências sanitárias. É a terceira vez que uma sessão prevista para analisar os vetos à esse PL é cancelada desde setembro do ano passado, quando a lei foi sancionada e passou a vigorar com o número 14.200/2021. Ainda não há uma nova data prevista para análise dos vetos.

Segundo especialistas na área, os seis vetos ao texto aprovado no Congresso fragilizaram a nova lei. É o que diz o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Jorge Bermudez. “Os vetos diminuíram em parte o impacto que a lei teria se fosse aprovada na íntegra, bem como o exemplo que seria para o mundo uma lei aprovada no Brasil, ainda no calor da pandemia, que poderia ser um modelo para outros países”, aponta Bermudez. Segundo ele, pelo texto aprovado no Congresso, o titular de uma patente ou pedido de patente que fosse objeto de licenciamento compulsório – como é chamada oficialmente a quebra de patentes – ficaria obrigado, sob pena de ter anulada a patente no país, a fornecer todas as informações necessárias para a produção, inclusive material biológico, item essencial no caso do licenciamento compulsório de vacinas, por exemplo. Esses trechos foram vetados por Bolsonaro. “Se você quebra uma patente, vai ter que descobrir o que fazer, porque não tem nenhuma obrigação do titular em passar nem material biológico no caso de vacinas, nem informações, resultados de testes, etc”, enumera o pesquisador da Ensp/Fiocruz.

Esse ponto também foi destacado pelo analista da saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Matheus Falcão. Segundo ele, a produção de vacinas exige procedimentos industriais mais complexos do que os envolvidos na produção de um medicamento genérico, por exemplo. “Por ser um produto biológico, não existe vacina genérica. Uma nova vacina demanda todo um conjunto de pesquisas para mostrar que ela realmente é segura. Então, a transferência de tecnologia é tão importante quanto o licenciamento compulsório, para que se amplie a produção de vacinas, e portanto o acesso a vacinas contra a Covid-19. A parte vetada pelo presidente na lei é justamente a que tratava de compartilhamento de tecnologias”, ressalta.

Não tem nenhuma justificativa de ordem política senão o descompromisso e a negligência com essa pauta - Matheus Falcão

Nesse sentido, Bermudez lembra que a lei 14.200/21 só torna passíveis do licenciamento compulsório emergencial as patentes de produtos sobre os quais não existam contratos de transferência de tecnologia, como, por exemplo, as vacinas contra a Covid-19 produzidas em Bio-Manguinhos/Fiocruz como parte de um acordo firmado com a farmacêutica Astrazeneca, ou ainda a vacina produzida pelo Instituto Butantã em parceria com a Sinovac, a Coronavac. “Esse tipo de acordo não sai prejudicado pela lei”, assegura o pesquisador.

Outro trecho retirado do texto aprovado na Câmara pelo presidente foi o dispositivo que permitia que, durante uma emergência sanitária, o licenciamento compulsório fosse autorizado também através de lei aprovada no Congresso, e não somente por ato do Poder Executivo, como rege a legislação atual, que com o veto permanece inalterada. Bermudez lembra que a experiência da única vez em que o governo brasileiro quebrou uma patente – do medicamento efavirenz, utilizado no tratamento da Aids, em 2007 – exemplifica como o rito previsto pela legislação brasileira para a quebra de uma patente torna o processo moroso, e a possibilidade de que isso fosse feito por lei aprovada no Congresso poderia agilizar o licenciamento compulsório.  “Em uma emergência, uma pandemia, nós não podemos seguir todo esse ritual, que leva meses. Daí a razão pela qual o Congresso entendeu que seria pertinente excepcionalizar esse processo”, explica o pesquisador da Ensp/Fiocruz. E lamenta: “Mas isso também foi vetado”.

Para Matheus Falcão, os vetos também atrapalharam a aplicação da lei no contexto da pandemia da Covid-19, uma vez que retiraram do texto a menção explícita à Emergência em Saúde Pública de Interesse Nacional (ESPIN) declarada em decorrência da infecção humana pelo Sars-Cov 2, o vírus causador da Covid-19. No final de abril, o Ministério da Saúde publicou portaria na qual declara o fim da ESPIN causada pela pandemia de Covid-19. Ainda assim, diz o analista de saúde do Idec, a discussão sobre a quebra de patentes continua sendo pertinente também no caso do novo coronavírus. “Talvez – e faço questão de enfatizar o talvez – a pandemia esteja mesmo arrefecendo, e venha a terminar em breve, mas ainda assim o acesso a essas tecnologias segue sendo importantíssimo. Vamos continuar fazendo campanhas de imunização, produzindo e comprando vacinas, e é fundamental que continuemos. Algumas pessoas terão ainda casos graves da Covid, ao que tudo indica, e será fundamental ofertar o tratamento de que elas necessitam, que muito provavelmente será um tratamento medicamentoso. Então, ainda continua na pauta o acesso a tecnologias contra a Covid-19”, argumenta Falcão, para quem a demora do Congresso em analisar os vetos é “injustificável”. “Não tem nenhuma justificativa de ordem política senão o descompromisso e a negligência com essa pauta. É fundamental que esse veto seja derrubado pelo Congresso Nacional”, reivindica.


Na OMC, debate se estende desde 2020

Não é só no Brasil que essa discussão vem mobilizando debates sobre os limites dos direitos de propriedade intelectual das empresas que detêm patentes na área da saúde. Globalmente, essa discussão ganhou força a partir do final de 2020, quando Índia e África do Sul apresentaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) uma proposta de suspensão temporária da proteção patentária de todas as tecnologias associadas ao controle da pandemia do novo coronavírus, incluindo, além das vacinas, produtos como medicamentos, kits de diagnóstico e equipamentos de proteção. O licenciamento compulsório, ou quebra de patente, é uma das ‘flexibilidades’ previstas no Tratado Internacional de Propriedade Intelectual, conhecido como Trips, parte de um conjunto de acordos assinados em 1994 que deram origem à OMC.

Inicialmente, a proposta de Índia e África do Sul não recebeu o apoio do governo brasileiro, que por conta disso recebeu críticas de países em desenvolvimento. “O governo brasileiro emitiu uma posição um tanto dúbia, não se manifestou de forma favorável como era esperado, na contramão do que vem sendo a posição histórica do Brasil nesses fóruns, de defesa do acesso a tecnologias da saúde, de defesa da flexibilização das proteções de propriedade intelectual em favor do acesso e do direito à saúde”, aponta Falcão, completando em seguida: “Uma posição muito respeitada, sobretudo no Sul Global, mas que não encontrou eco no atual contexto”.

Ao longo das discussões no âmbito da OMC ganhou força uma proposta com foco na suspensão das patentes somente das vacinas. Proposta que, embora mais limitada do que a proposição original defendida por Índia e África do Sul, conta com o apoio dos Estados Unidos, país cujo governo historicamente se alinha aos interesses da indústria farmacêutica dentro da OMC.

Em março, a entidade anunciou um “acordo provisório” firmado entre Estados Unidos, União Europeia, Índia e África do Sul. No dia 3 de maio, a diretora geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, anunciou que um documento final sobre a quebra de patentes de vacinas contra a Covid-19 havia sido enviado aos países-membros para aprovação. A expectativa é de que ele seja aprovado até junho. 

Ressaltando que esse tipo de acordo dentro da OMC precisa ser aprovado por consenso, sem votação, e que, por outro lado, ao contrário de uma resolução da Organização Mundial da Saúde, por exemplo, tratam-se de decisões que os países ficam obrigados a cumprir, Jorge Bermudez avalia que o que está sendo proposto é um “arremedo” da proposta originalmente feita por Índia e África do Sul. “A proposta inicial suspendia temporariamente 40 dos 73 artigos do Acordo Trips, e a proposta que os Estados Unidos e a Europa colocam agora suspende um único parágrafo”, critica.