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Goiás: o contraexemplo na saúde

Com toda a rede estadual administrada por Organizações Sociais, o estado foi um dos que mais avançou na entrega da gestão do SUS para o setor privado. Participantes do VI Seminário Nacional da Frente contra Privatização da saúde alertaram para a tentativa do governo goiano de “vender” o modelo a nível nacional, inclusive para outros setores, como a educação
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 30/11/2016 11h36 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

A receita parece ser a mesma utilizada em outros estados. Primeiro, deixa-se o serviço de saúde sucateado: faltam profissionais, faltam materiais de trabalho, medicamentos e infra-estrutura. Depois, sob o argumento de que nada funciona, vêm a solução: transferir a gestão dos serviços para Organizações Sociais (OS’s). E junto com a OS, o dinheiro também volta a aparecer. “A coisa aqui em Goiás está solta. Houve um crescimento enorme nos investimentos em saúde. Algo em torno de quase R$ 1 bilhão depois que se implantou a OS. Mas é um dinheiro aplicado sem fiscalização, e que não tem resultado em melhoria para a população”, denunciou a presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Único de Saúde no Estado de Goiás (Sindsaúde GO), Flaviana Barbosa, durante o VI Seminário Nacional da Frente contra a Privatização da Saúde, realizado entre os dias 25 e 27 de novembro, em Goiânia.

A entrega da gestão das unidades de saúde para OS começou em Goiás em 2010, ainda no governo de Iris Rezende (PMDB), e depois se aprofundou sob o governo de Marconi Perillo (PSDB), atual governador. Atualmente, toda a rede de média e alta complexidade do estado é administrada por OS’s. Permanecem geridos pelo poder público o Hemocentro, que, segundo Flaviana, também já foi anunciada a intenção de privatizá-lo, e o Laboratório Central (Lacen). “Quando o governo decidiu pelo processo da privatização e a gente questionava, a resposta do governo era sempre a mesma: ‘ah, não tem jeito, a lei 8666 [lei de licitações] atrapalha’. Mas o Lacen é um exemplo de gestão própria e lá também tem que reformar, tem que comprar equipamento. Você vai lá e vê que gracinha que é a unidade com gestão própria. A Lei 8666 não funciona lá? Tem suas dificuldades, mas estão reformando, estão cuidando do patrimônio”, reforçou.

Segundo a presidente do Sindsaúde, com a entrega da gestão para os OS’s, os trabalhadores da saúde passaram a conviver também com problemas nas relações de trabalho. Em um mesmo hospital, há até quatro tipos de contratos diferentes, o que acaba por gerar conflitos e perda de autonomia. “Olha, se você não fizer isso, você vai embora. Olha, se você der essa informação, você vai embora. Esse tipo de ameaça está muito frequente em Goiás. O problema de ter trabalhador terceirizado e quarteirizado dentro de um hospital não é ruim só para ele, você também coloca em vulnerabilidade o paciente porque esse trabalhador não vai ter coragem de denunciar os problemas do hospital, como falta de medicamentos, por exemplo. Pra que eu vou denunciar se eu posso ficar desempregado?”, alertou. Os servidores da saúde de Goiás encerraram recentemente uma greve que durou 65 dias, além das pautas corporativas, como o reajuste salarial – segundo o Sindsaúde, os profissionais trabalham há seis anos sem reajuste – a mobilização também pautou o fim dos contratos com as OSs e a necessidade de melhoria no atendimento à população.  “Hoje lidamos com uma seleção de pacientes, os procedimentos mais caros acabam sendo priorizados. As filas virtuais para a alta complexidade aumentaram”, enfatizou.

De Goiás para o Brasil

“Goiás infelizmente está sendo um modelo para o Brasil desse absurdo. Nosso governador está sendo garoto propaganda pelo Brasil”, apontou Flaviana, alertando para a necessidade de barrar o projeto a nível nacional. Os planos de privatização no estado não se limitam, no entanto, à saúde. O governo tenta, desde o ano passado, replicar o modelo na educação, mas enfrenta a resistência dos movimentos sociais organizados e do próprio Ministério Público que em diversas ações recomendou o adiamento da transferência da gestão. “Como o governo não está conseguindo transferir a gestão das escolas de educação básica, ele está querendo partir para as escolas técnicas, mas também ainda não implementou. Por isso foi muito importante a ocupação dos secundaristas, do movimento estudantil universitário junto com os sindicatos. Essa unificação da luta de estudantes e trabalhadores foi muito importante nesse processo da Educação”, reforçou Flaviana.

Também presente no seminário, o professor da faculdade de direito da UFG, Alexandre Aguiar, afirmou que Goiás é hoje um dos principais laboratórios de políticas públicas regressivas do Brasil. “Isso é muito grave, porque na semana passada o governador de Goiás chamou prefeitos e governadores do PSDB em um seminário de orientação de políticas públicas para a cidade de são Paulo, que vai ser governada pelo Dória [João Dória, novo prefeito de São Paulo eleito pelo PSDB], para apresentar a proposta de gestão pública de Goiás, as Os na saúde e educação, como alternativa de administração pública. Então, a gente percebe que tem uma tentativa de avançar da perifeira para o coração do país essa política de terra arrasada”, alertou. O professor enfatizou que tanto na saúde, quanto na educação, as OS foram apresentadas como solução após uma quebra de qualidade dos serviços por meio do desinvestimento. “E aí, na educação, surgiram duas alternativas que são muito graves do ponto de vista das consequências sociais. Uma é as OS e a outra é a militarização. No molde OS de gestão, o estado por decreto, sem consulta à população, transfere a gestão da escola para a polícia militar. Hoje temos mais de 40 escolas militarizadas em todo o estado. Essas escolas têm cobrança de taxas, tem a uniformização e a militarização da educação. Há, por exemplo, a expulsão de alunos que são enquadrados como transgressores, é uma escola homofóbica”, acrescentou.

Desde meados de novembro, estudantes da UFG realizam um acampamento na universidade contra essas políticas e também contra a PEC 241. Laureanna Vieira, membro do Diretório Central dos Estudantes e também da Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem, relatou que o acampamento foi uma forma de manter a resistência viva após os estudantes terem sofrido reintegração de posse de alguns prédios ocupados. Laureanna reforçou, durante o seminário, a necessidade de unidade para barrar os retrocessos. “A PEC 241 acabou sendo um elemento que unificou não só o movimento estudantil, mas as esquerdas também. Eu acho que o desafio é continuar, estabelecer uma unidade forte. Precisamos lembrar que são pessoas que vão morrer com a falta de recursos para a saúde. Diante dessa perda de direitos, não podemos ficar sectarizando os espaços, temos que unificar”, convocou.

Declaração política do seminário

A nota política do VI Seminário Nacional da Frente contra a Privatização da Saúde enfatizou a conjuntura crítica na qual se aprofundam as ameaças ao SUS e a necessidade de resistência. “Em um momento de intensificação da ofensiva contra os direitos sociais e às liberdades democráticas, mais do que nunca é necessária a organização dos trabalhadores/ trabalhadoras para a resistência. O governo ilegítimo Michel Temer e seu ministro da saúde, Ricardo Barros, vem frequentemente anunciando medidas que ferem de morte o SUS. Declarações de que o “SUS e o direito à saúde não cabem na Constituição” são indícios de maior abertura para a saúde privada”, afirmaram os participantes. A luta contra a PEC 55 também ganhou centralidade no documento. “A Proposta de Emenda Constitucional 55/2016, que propõe o congelamento da destinação de recursos para a saúde por 20 anos sem levar em consideração o crescimento populacional, mudança de perfil epidemiológico e as necessidades de saúde daí decorrentes representam uma afronta direta ao direito à saúde garantido na constituição. Estas medidas precisam ser combatidas ou o futuro da classe trabalhadora brasileira estará comprometido”.

A carta política do Seminário, que reuniu participantes de fóruns e frentes contra a privatização da saúde de 15 estados, além de movimentos sociais, estudantis e sindicatos que atuam em defesa do SUS, apontou ainda a construção de uma greve geral como uma estratégia para barrar os retrocessos. “É preciso criar as condições para a realização de uma greve geral no país, assim como criar um espaço nacional para que a classe trabalhadora nas suas mais diversas expressões (sindical, social, estudantil e popular) possa dialogar e construir uma forma de atuação conjunta que aponte não só para a resistência aos ataques, mas também para a conquista de novos direitos. É papel da FNCPS contribuir para esse processo fortalecendo as lutas contra os ataques ao SUS público, 100% estatal, de qualidade e aos direitos sociais”, concluíram os participantes.