O governo brasileiro lançou, na semana passada, um documento de 37 páginas que sintetiza a contribuição do país para as discussões da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que acontecerá no Rio de Janeiro, de 20 a 22 de junho de 2012. Elaborado pelos ministérios do Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e das Relações Exteriores, submetido à consulta pública e à colaboração de outros ministérios, o texto traz oito propostas, algumas delas subdivididas, e muitas baseadas em experiências brasileiras.
A ideia de um ‘Programa de Proteção Socioambiental Global’, por exemplo, enfoca a superação da pobreza extrema, apostando no “componente social”. Para isso, cita iniciativas brasileiras como o ‘Minha casa, minha vida’, ‘Bolsa Família’ e ‘Brasil sem Miséria’. “O objetivo do programa é alcançar um patamar em que a qualidade de vida e condições ambientais sejam incorporadas integralmente aos direitos das populações pobres”, diz o texto. Para Alexandre Pessoa, pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) que vem acompanhando as discussões da Rio+20, um dos problemas dessa proposta é que, ao recuperar a questão social, ainda se trabalha com a ideia de segurança alimentar — que calcula uma cota mínima diária de alimentos para as populações — e não com um conceito que ele considera mais adequado e atual, que é o da soberania alimentar — que leva em conta o direito dos povos à autogestão de sua produção e cultura alimentar. “Quando falamos em soberania alimentar, estamos considerando os diferentes papéis que os países ocupam na divisão internacional do trabalho e do comércio no que diz respeito à produção agrícola, por exemplo. Além disso, o enfrentamento dos agrotóxicos enquanto uma questão de saúde pública deveria ser explicitado nessa parte do documento”, avalia.
Para o pesquisador, outro problema das propostas do governo brasileiro é exatamente não demarcar a diferença dos impactos socioambientais nos países ricos e pobres. A proposta de criação de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — que seguiriam os moldes dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio —, por exemplo, defende que eles deveriam ter “caráter global, voltados igualmente a países desenvolvidos e em desenvolvimento”. O assessor extraordinário do Ministério do Meio Ambiente para a Rio + 20, Fernando Lyrio, também destaca a importância de se dar peso distinto aos países. “Vinte anos depois, o legado da Rio-92, com a Declaração do Rio e seus 27 Princípios, permanece atual, em particular o princípio de ‘responsabilidades comuns, porém diferenciadas’, segundo o qual os países desenvolvidos devem tomar a dianteira nos desafios do desenvolvimento sustentável, tendo em vista sua responsabilidade histórica pelo uso insustentável dos recursos naturais globais. Os Princípios do Rio incluem a necessidade de que os países desenvolvidos mantenham oferta adequada de recursos financeiros e de transferência de tecnologia, de modo a auxiliar os países em desenvolvimento a alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável”, explica. Ele, no entanto, não acha que isso esteja ausente do documento brasileiro.
Outra proposta contida no documento é a construção de um ‘pacto global para produção e consumo sustentáveis’, que envolve três ações: uma política de compras públicas sustentáveis; programas de “etiquetagem de consumo e eficiência energética”; e o financiamento de pesquisas voltadas para o desenvolvimento sustentável. Para Guilherme Franco Netto, coordenador geral de Vigilância Ambiental em Saúde do Ministério da Saúde, esse é um dos pontos do documento que tem relação mais direta na área da saúde. “Se as compras públicas forem mais ambiental e sustentavelmente adequadas, isso vai implicar benefícios para a saúde”, acredita, lembrando que, no Brasil, só recentemente, na gestão do ministro José Gomes Temporão, foi proibido, por portaria, que o ministério da saúde adquirisse material que contivesse amianto, substância cancerígena. Alexandre Pessoa, no entanto, identifica nessa proposta um enfoque que aponta soluções individuais para os problemas ambientais. Segundo ele, isso aparece sobretudo no item que trata da classificação do consumo que, de acordo com o documento, “possibilita a agentes privados, notadamente os consumidores, avaliar e otimizar o consumo de energia/combustível dos equipamentos, selecionar produtos de maior eficiência em relação ao consumo e melhor utilizar os equipamentos, possibilitando economia nos custos de energia”. Essa individualização dos problemas e das soluções é, aliás, uma das principais críticas que especialistas e integrantes de movimentos sociais têm feito à ideia de economia verde , que está presente em todo o documento do governo brasileiro.
Fernando Lyrio, no entanto, ressalta que a contribuição brasileira está centrada numa ideia de “economia verde inclusiva”, que, ao contrário de uma concepção individualizante, enfocaria uma mudança nos padrões de desenvolvimento. “Na visão brasileira o conceito de ‘economia verde inclusiva’ expressaria melhor o foco num ciclo de desenvolvimento sustentável com a incorporação de bilhões de pessoas à economia, com consumo de bens e serviços em padrões sustentáveis e viáveis, que combatam o desperdício e promovam o reaproveitamento dos recursos. E a Rio +20 representa uma oportunidade para a revisão dos atuais padrões de desenvolvimento, sobretudo, à luz da insuficiência de seus resultados econômicos, sociais e ambientais”, explica, fazendo uma ressalva: “Para tanto, é preciso reforçar a ligação do conceito de economia verde com o de desenvolvimento sustentável, de forma a evitar uma leitura do conceito de economia verde que privilegie os aspectos de comercialização de soluções tecnológicas sobre a busca de soluções adaptadas às realidades variadas dos países em desenvolvimento”.
A ideia de economia verde inclusiva está presente de forma explícita no documento, inclusive como proposta. Trata-se da ideia de se estabelecer um pacto que inclua a publicização dos relatórios de sustentabilidade das empresas e a criação de índices de sustentabilidade. O texto traz como exemplo o índice de Sustentabilidade Empresarial, criado pela Bovespa. “Por esse índice, considera-se um investimento como socialmente responsável se, além dos resultados financeiros para o investidor, há considerações ambientais, práticas de responsabilidade social e padrões éticos para selecionar as empresas participantes dos fundos de investimento”, explica Fernando Lyrio. Criticando o que classifica como um processo de financeirização dos problemas ambientais, que transforma as obrigações das empresas em lucro, Alexandre Pessoa não acredita na eficácia desse tipo de ‘certificação’. Ele lembra o exemplo do complexo siderúrgico ThyssenKrupp CSA, no Rio de Janeiro, que, apesar de responder a diversas denúncias e ações do Ministério Público Estadual, por poluição e danos à saúde da população, recebeu ‘sinal verde’ do Conselho Executivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, da Organização das Nações Unidas, para obtenção de créditos de carbono.
Na mesma linha, o documento propõe também que se firme um protocolo internacional para a sustentabilidade do setor financeiro, tomando como exemplo o ‘Protocolo Verde’, iniciativa dos bancos públicos e privados brasileiros, que, de acordo com o texto, “assumiram o compromisso de incluir a dimensão ambiental nos seus procedimentos de análise de risco e avaliação de projetos, bem como priorizar ações de apoio ao desenvolvimento sustentável”.
Balanço de duas décadas
Um dos problemas que Alexandre Pessoa identifica na forma como está sendo organizada a Rio+20 e que, segundo ele, o documento elaborado pelo governo brasileiro reitera, é não fazer nem propor um balanço dos problemas e dos avanços da questão ambiental nos 20 anos que separam a Rio 92 do evento que vai acontecer em 2012. “Afinal, são poucas as experiências exitosas na efetivação da Agenda 21 Local”, opina. Ele considera, inclusive , que o documento é um recuo em relação à Agenda 21 , conjunto de propostas que resultaram da Rio 92. Fernando Lyrio defende o documento: “As propostas apresentadas na Contribuição Brasileira alinham-se com temas da Agenda 21, abrangendo não somente a gestão e conservação dos recursos naturais, como também as dimensões social e econômica, e formas de implementação. Dessa forma, as propostas brasileiras visam tanto temas da Agenda Ambiental já presentes na Agenda 21 quanto temas dos novos desafios ambientais”, diz. Ele exemplifica: “O capítulo 3 da Agenda 21 já tratava do combate à pobreza como fundamental para a sustentabilidade do planeta, o que se alinha plenamente com a proposta da Rio +20 de discutir ‘economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza’ e, nesse contexto, com a Proposta 1, de estabelecer um ‘Programa de Proteção Socioambiental Global’”.
Saúde na Rio + 20
Embora o Ministério da Saúde tenha colaborado com o documento brasileiro após a consulta pública, nenhuma proposta apresentada diz respeito diretamente à área da Saúde. Além das compras públicas sustentáveis, Guilherme Franco Netto acredita que, a partir da experiência dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, a Saúde pode contribuir com indicadores relevantes, por exemplo, para materializar a proposta de criação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. “A questão da saúde do trabalhador, por exemplo, precisa ser tratada de forma melhor. Temos ainda, mesmo nos países desenvolvidos, mas sobretudo naqueles em desenvolvimento, estatísticas inaceitáveis relativas a mortes por acidente de trabalho. Temos tecnologia de ponta, que reduz isso porque mecaniciza tudo, mas, ao mesmo tempo, temos vários processos de extração mineral ou de construção civil no Brasil que se dão ainda no ritmo daquela música do Chico Buarque: ‘morreu na contramão atrapalhando o tráfego’”, exemplifica.
Também está ausente do documento qualquer discussão que relacione a questão ambiental e o perfil epidemiológico brasileiro. “Conseguimos fazer uma referência à mudança do quadro epidemiológico, mas muito superficialmente”, admite Guilherme. No que diz respeito ao Brasil, a Agenda 21 e a discussão da Rio 92 deu destaque às doenças ditas negligenciadas. Hoje, esse problema persiste, mas, segundo Guilherme, o quadro precisa ser ampliado. “Temos a maior urbanização do mundo: nenhum país das dimensões do Brasil teve o volume de urbanização que nós realizamos nos últimos 30 anos, com tendência de crescer ainda mais. E não temos um sistema básico de transporte decente, nosso esquema de relações de trabalho é precário, vivemos um monopólio ou controle absurdo das grandes indústrias farmacêuticas e de alimentos — agora agravada pela questão dos agrotóxicos. Isso acaba criando um cenário de vulnerabilidade e risco. E vamos pagar o preço disso”, alerta.
Outro problema, identificado pelo próprio Guilherme, é que o SUS não aparece no documento como exemplo de política exitosa relacionada ao tema da Conferência. “É até meio contraditório o fato de o SUS enquanto política universalista e seus avanços não entrar e outras políticas públicas de outras áreas serem citadas”, admite. E justifica: “Este é um documento que chama para o debate, não é homogêneo nem completamente acabado”.
Ele acredita, no entanto, que tudo isso será resolvido no documento que está sendo elaborado especificamente para a área da saúde. O Ministério da Saúde está à frente desse processo, mas pretende fazer um debate amplo. “Vamos pegar um pouco dos ensaios que nos interessam desse documento oficial do Brasil para fazermos uma análise. Faremos uma introdução sobre o valor de um modelo universalizante como é o SUS, destacando o quanto avançamos do ponto de vista da redução das iniquidades no país. Vamos fazer uma retrospectiva do que era a saúde na época da Rio 92, com um balanço de como estamos hoje e os desafios que temos para frente”, detalha. Segundo ele, os avanços foram muitos. “Precisamos lembrar que o SUS foi instituído efetivamente em 1991, portanto, apenas um ano antes da Rio 92. Naquela época, nós tínhamos 3% de cobertura de atenção básica no país, hoje estamos com 61%, cobrindo mais de 100 milhões de pessoas, tivemos uma importante redução da mortalidade infantil... Esses são fatos que precisamos explicitar, ao mesmo tempo em que devemos apontar nossos desafios”, diz.
Guilherme conta que já participou de duas atividades relativas à área da saúde na Rio + 20. Uma foi uma iniciativa da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), que fez uma consulta aos países da região das Américas para a realização de um debate que gere um documento regional sobre a área da saúde na Rio + 20. Outra foi uma roda de conversa no Congresso Brasileiro de Epidemiologia, da Abrasco, também sobre como a saúde deve se preparar para a Conferência. O Ministério vai realizar ainda um grande seminário em abril de 2012 para, já com o documento pronto, aprofundar essa questão. Além disso, o ministério vai propor à Organização Mundial da Saúde (OMS), na próxima assembleia mundial da saúde, que o tema Rio+20 seja objeto de uma resolução e que sejam realizados alguns eventos da saúde durante a Conferência. “Estamos montando essa grade, abrindo cada vez mais o debate, para que tenhamos mais precisão sobre qual o projeto da saúde. Vale dizer que tudo que foi feito na saúde até agora foi na contra-hegemonia porque, no fundo, essa agenda entrou de modo muito tangencial na Rio 92. Tomara que inclusive a crítica dos movimentos sociais possa nos ajudar a conquistar um pouco mais de propriedade para fazermos a saúde dialogar com essa agenda”, diz.
Guilherme acredita que o documento oficial lançado pelo governo brasileiro também pode ajudar nessa busca de espaço para as discussões relacionadas à área da saúde na Conferência. Isso porque, como ele destaca, o texto afirma que a Rio+20 não é apenas uma conferência de meio ambiente. “Há uma disputa importante, principalmente entre a área econômica e a área ambiental sobre quem vai ter a hegemonia desse processo”, identifica. Mas completa: “O Brasil está dizendo que o desenvolvimento sustentável se baseia num tripé em que os elementos precisam estar no mesmo nível: o social, o econômico e o ambiental”.
Outras propostas
As outras propostas concretas apresentadas pelo documento são a criação de um repositório de iniciativas, que tornem públicas práticas e tecnologias relacionadas ao desenvolvimento sustentável; a criação de novos indicadores para mensuração do desenvolvimento, a partir da compreensão de que o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e o PIB (Produto Interno Bruto) não são suficientes; e a criação e fortalecimento de uma estrutura institucional do desenvolvimento sustentável, que se subdivide em seis ações: “criação de um mecanismo permanente de coordenação de alto nível entre todas as instituições internacionais que lidam com o desenvolvimento”; a transformação do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas em Conselho de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas; estabelecimento da participação universal e de contribuições obrigatórias para o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma); o lançamento de um processo negociador para uma convenção global sobre acesso à informação, participação pública na tomada de decisões e acesso à justiça em temas ambientais; a participação de atores não-governamentais nos processos multilaterais; e a governança da água, que trata do fortalecimento do sistema de gerenciamento dos recursos hídricos da ONU.
Leia mais no Especial Rio+20.