Faça uma experiência. Pergunte a um brasileiro quais os traços de personalidade que definem o habitante do Brasil: é bem provável que ele diga “hospitaleiro”. É claro que generalizações como essa devem ser vistas pelo que de fato são, ou seja, estereótipos. Mas o emprego frequente do adjetivo “hospitaleiro” por brasileiros ao se descreverem como povo denota que uma parte importante da construção de sua autoimagem origina-se a partir da interação com quem é ‘de fora’, com estrangeiros. Entretanto, para muitos pesquisadores e entidades que militam pelos direitos dos imigrantes, se depender da legislação vigente no Brasil à respeito dos estrangeiros, o brasileiro não é tão hospitaleiro quanto pensa.
Mas porque estamos falando de imigração? Faz décadas que o Brasil deixou de ser um polo de atração de estrangeiros, como foi, por exemplo, durante o final do século 19 e começo do século 20, período em que milhões de imigrantes, na maior parte vindos da Europa, vieram para o país, a maioria para trabalhar nas lavouras. Mas para muitos estudiosos do fenômeno, o Brasil está se tornando novamente um país atrativo para imigrantes em busca de melhores condições de vida. Só que para muitos deles, o Brasil está longe de ser um “eldorado”: uma legislação restritiva e ultrapassada obriga muitos deles, principalmente os que emigram fugindo da pobreza, a permanecerem em situação irregular, forçados a trabalhar e viver em condições precárias e sujeitos a terem seus direitos mais básicos violados. Mesmo aqueles em condição regular no país – o que em si já exige um enorme esforço por parte do imigrante para transpor todas as barreiras burocráticas e econômicas impostas pela lei – vivem no país na condição de sub-cidadãos, sem poder desfrutar dos mesmos direitos que os brasileiros nascidos aqui.
História
Para começar a entender o que acontece atualmente, é interessante primeiro fazer um breve resgate da história da imigração para o país. Segundo Roberto Marinucci, pesquisador do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (Csem), em Brasília, os primeiros imigrantes a se estabelecerem no território onde hoje é o Brasil foram povos pré-históricos, ancestrais dos atuais indígenas - embora não se saiba ao certo nem como e nem quando eles chegaram. De acordo com Marinucci, a tese mais aceita é de que essas populações chegaram aqui entre os anos de 50 mil e 20 mil a.C, atravessando uma passagem de terra hoje submersa, no Estreito de Bering entre o estado americano do Alaska, nos EUA, e a Sibéria, na Rússia.
No século 16, após a “descoberta” do Brasil, a região passou a receber imigrantes europeus, principalmente portugueses, atendendo aos anseios da Coroa Portuguesa para assegurar a posse do território. No entanto, o fluxo migratório mais importante dos primeiros três séculos da colonização foi o dos que vieram acorrentados nos porões dos navios negreiros: com a intensificação da exploração econômica do território brasileiro, estima-se que cerca de 3 milhões de africanos tenham sido traficados como mão de obra escrava entre 1550 e 1850.
Política de “branqueamento”
A proibição do tráfico de escravos, em 1850, e, mais tarde, a abolição da escravidão, em 1888, deram origem a um novo período na historia da imigração para o país, caracterizado principalmente pela adoção de políticas ativas de atração de trabalhadores imigrantes, primeiro pelo Império, e mais tarde pelo governo federal. Segundo o geógrafo Helion Povoa Neto, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Niem/Ippur/UFRJ), a ideia era que os imigrantes viessem para trabalhar nas lavouras, principalmente no café. “Nesse período, a imigração foi estimulada por vários países da América, que incentivaram a imigração num período em que muitos países da Europa passavam por crises econômicas e políticas, fazendo com que alguns inclusive estimulassem a saída de pessoas”, explica Helion.
Segundo o pesquisador, no Brasil a opção por atrair imigrantes europeus para a lavoura ao invés de estimular o emprego da mão de obra dos negros recém-libertos pautou-se na doutrina da eugenia. “Isso foi muito marcante no Brasil porque o país tinha uma população que era em boa parte composta por uma mistura de brancos portugueses, africanos e índios. E na época se considerava que o Brasil precisava se civilizar, e essa civilização passava pela atração de bons trabalhadores e de preferência brancos; era uma concepção claramente racista, de melhoramento da raça”, explica Helion, complementando: “Primeiro se tinha uma ideia de criar colônias separadas, como as colônias alemãs no Sul. Depois se começa a ter uma preocupação com a mistura, alegando que ela poderia ser positiva para o povo brasileiro porque aumentaria o seu ‘coeficiente eugênico’. A ideia era quanto mais branca fosse a pessoa, mais civilizada ela seria, melhor trabalhadora, etc. Na época isso era defendido abertamente”.
Ofertas de empregos nas lavouras
A política de atração de imigrantes adotada pelo Estado brasileiro, segundo Helion, consistia em, primeiro, propagandear, nos países em crise da Europa, que o Brasil estava oferecendo terras e oportunidades de emprego nas lavouras. Segundo, era praxe que as passagens dos imigrantes interessados fossem pagas pelo governo, que também definia onde cada colono ficaria lotado ao desembarcar no país. Com isso, vieram para o Brasil cerca de 4,4 milhões de imigrantes entre os anos de 1870 e 1929, principalmente italianos, alemães, espanhóis, portugueses e japoneses. Estes começaram a vir a partir de 1908, rompendo com a opção do Estado brasileiro pelos europeus. “Os cafeicultores precisavam desesperadamente de trabalhadores e nessa época a Itália e a Alemanha começaram a restringir a vinda de pessoas para o Brasil, por causa de denúncias de maus tratos, de exploração e do que a gente chama hoje em dia de tráfico, em que as pessoas vinham atraídas por intermediários com promessas de vantagens que chegando aqui não se concretizavam”, afirma Helion.
Conquistas trabalhistas
Não foi só na lavoura que os imigrantes tiveram papel fundamental. Com o início da industrialização do país, muitos deles foram para as cidades trabalhar como operários. “O objetivo da imigração era claramente a agricultura, mas com as crises do café, muitos imigrantes ficavam desempregados e acabavam indo para as cidades trabalhar nas indústrias”, diz Helion. Além disso, com o tempo muitos estrangeiros começaram a vir por conta própria, pagando as próprias passagens - o que os eximia da obrigação de irem para as lavouras – e indo para as cidades trabalhar como operários. Segundo Helion, esses imigrantes tiveram uma atuação importante como força política em prol dos direitos dos trabalhadores, e a presença maciça de imigrantes nas indústrias coincidiu com um período de grande ebulição das lutas de trabalhadores no Brasil no início do século 20. “A importância dos imigrantes nesse período foi enorme. Eles trouxeram da Europa experiência de organização política, eram alfabetizados – o que era raro entre os trabalhadores da época. Os primeiros jornais operários são obras de imigrantes, principalmente dos italianos e espanhóis, que tinham uma tradição anarquista. Eles tiveram um papel importantíssimo nas conquistas trabalhistas que vieram depois”, ressalta o pesquisador.
Declínio da imigração e aumento da emigração
Esse cenário de entrada massiva de imigrantes no país passa por uma ruptura a partir dos anos 30, quando o governo de Getúlio Vargas passa a limitar a entrada de imigrantes sob a alegação de que era preciso proteger o trabalhador nacional. Além disso, ganha importância o processo de migração interna de trabalhadores do Nordeste e de Minas Gerais para o Sudeste. Segundo Helion, a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em que o Brasil rompe justamente com os países que mais exportavam trabalhadores para o país – Itália, Alemanha e Japão – também foi um ponto de ruptura da imigração, que na década de 1970 praticamente zera. “No Brasil acaba a política de atração, a migração interna é grande e também mudam-se as condições nos países de origem. Após a guerra, a Europa e o Japão já não tem um excedente demográfico tão grande, e vão passar por um processo de reconstrução que vai absorver toda a força de trabalho”, detalha.
A partir da década de 1980, o Brasil se torna um país de emigração. Segundo dados contidos no artigo Situação das migrações internacionais do Brasil Contemporâneo, do pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais Dimitri Fazito, 3 milhões de brasileiros deixaram o país entre as décadas de 1980 e 1990, o que, segundo ele, foi reflexo da “reestruturação produtiva do sistema capitalista global”, que provocou uma reversão, em nível internacional, dos fluxos migratórios ocorridos após a Segunda Revolução Industrial, na metade do século 19. “A dinâmica do sistema capitalista contemporâneo tem exigido intensa mobilidade das populações de países periféricos em direção aos países centrais”, ressalta Fazito. Nesse contexto, ao mesmo tempo em que o Brasil exportou trabalhadores para países ditos desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos, passou a receber um número cada vez maior de imigrantes chineses, coreanos, bolivianos e paraguaios, além daqueles provenientes de países da África. Esse fluxo, segundo Helion Povoa, difere da imigração observada até a década de 1930 por não contar com uma política ativa por parte do Estado brasileiro no sentido de atrair imigrantes, que passam a vir por conta própria, por se constituir de populações de origens diversas e também por não ter o mesmo peso quantitativo. Assim, o Brasil adentrou o século 21 com uma população de 750 mil imigrantes estrangeiros residindo no país, bem menor do que os 3 milhões de brasileiros que viviam no exterior.
Imigração volta a ter papel importante
Entretanto, essa situação começa a mudar: segundo dados do Ministério da Justiça, o número de estrangeiros residindo no país regularmente aumentou 50% de 2009 para 2011, passando de 961 mil para 1,46 milhão de pessoas, principalmente de origem portuguesa (329 mil), boliviana (50 mil), chinesa (35 mil) e paraguaia (17,6 mil). Além disso, de acordo com o Ministério do Trabalho, no mesmo período o número de vistos de trabalho concedidos para estrangeiros aumentou 64%, de 42.914 em 2009 para 70.524 em 2011.
Segundo Paulo Iles, coordenador executivo do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), se forem considerados os estrangeiros em situação irregular vivendo no país – estimados em cerca de 600 mil – o número de estrangeiros residindo no país e o de brasileiros no exterior são hoje praticamente iguais. Isso porque, aliado ao crescimento da imigração para o Brasil nos últimos anos, cresce também o número de emigrantes brasileiros que retornam ao país. Iles enumera alguns dos fatores que, segundo ele, contribuem para essa nova realidade: crise financeira e recrudescimento das políticas migratórias e da xenofobia na Europa e nos Estados Unidos; o bom momento econômico pelo qual passa o Brasil, que apresenta índices de crescimento estáveis apesar da recessão que acomete outros países, consolidando o país na posição de 6ª maior economia do mundo; e escassez de mão de obra em alguns setores da economia brasileira, entre outros. Além disso, complementa Roberto Marinucci: “a redução da taxa de natalidade e a maior expectativa de vida da população brasileira está provocando um envelhecimento demográfico que pode provocar, em alguns anos, falta de população economicamente ativa”. Ele afirma que, segundo a ONU, se persistirem os atuais índices de crescimento demográfico, o Brasil terá, em 2030, uma forte carência de trabalhadores. “Todos esses fatores apontam para um expressivo aumento da presença de estrangeiros nos próximos anos no Brasil”, diz Marinucci.
Com o ressurgimento do tema da imigração como um fator estratégico para o país, pesquisadores e entidades de defesa dos direitos dos imigrantes procuram pautar os debates que ocorrem no âmbito do governo e da mídia, no sentido de buscar uma reformulação da legislação sobre estrangeiros vigente no país, bem como de procurar quebrar algumas concepções preconceituosas acerca dos imigrantes que ainda permeiam muitos desses debates. Nas próximas páginas, você vai conhecer algumas dessas demandas.
Sub-cidadania
Atualmente, uma das principais reivindicações de imigrantes e de entidades de apoio a essas populações no Brasil é a garantia do direito de participar da vida política do país. A Constituição Federal de 1988 proíbe que os imigrantes votem e sejam votados. Segundo o relatório Brasil: Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes, produzido pelo Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante, divulgado em dezembro de 2011, o Brasil é o único entre os países da América do Sul a não reconhecer o direito ao voto dos estrangeiros em nenhum nível da administração política. Para Marina Novaes, advogada do Centro de Apoio ao Migrante de São Paulo (Cami), ligado ao Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) da Igreja Católica, essa proibição é fruto de uma “mentalidade militar” no tratamento aos imigrantes. “A legislação que se refere aos estrangeiros no Brasil em geral é pautada pelo paradigma da segurança nacional: existe uma preocupação em não deixar que os estrangeiros interfiram no país”, analisa. Segundo Marina, a luta pela garantia do direito ao voto é hoje a principal bandeira dos imigrantes que residem no país. “Sem isso os imigrantes vão ser para sempre sub-cidadãos, sem poder escolher quem os representa”, aponta. Para piorar, diz ela, os imigrantes não despertam o interesse da classe política, justamente pela sua impossibilidade de votar.
Estatuto do Estrangeiro
A legislação infraconstitucional que diz respeito aos estrangeiros restringe ainda mais as possibilidades de atuação política dos imigrantes. É o caso da lei n° 6.815, o Estatuto do Estrangeiro, aprovada durante a ditadura militar, em 1980. Em um de seus artigos, o Estatuto proíbe que os imigrantes participem “da administração ou representação de sindicatos ou associações profissionais”. Segundo o relatório do CDHIC, o Estatuto “inspira-se na doutrina da segurança nacional, impondo uma série de controles burocráticos e restringindo as possibilidades de residência no Brasil”. De acordo com Paulo Iles, o Estatuto enfoca a defesa da soberania e do trabalhador nacional, e “praticamente não fala em direitos, só diz o que o estrangeiro não pode fazer”. Em seu relatório, o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante aponta que, além das inúmeras proibições, o Estatuto peca pela discricionariedade de suas disposições. “Discricionariedade significa que a Administração tem certa liberdade para avaliar, por exemplo, nos casos dos pedidos de visto e de residência, se os concederá ou não. Isto significa que os critérios para a concessão dos pedidos não são totalmente previstos no Estatuto ou em outras regras. Pode significar também que a norma não é totalmente objetiva, dando margem a uma avaliação subjetiva do agente administrativo”, afirma o relatório, que aponta que isso gera insegurança jurídica para os imigrantes.
O Estatuto também estabelece a divisão de competências de cada órgão da Administração Federal que atua com temas migratórios: ao Ministério das Relações Exteriores, coube a responsabilidade sobre a concessão de vistos; ao Ministério do Trabalho e Emprego, a concessão de autorizações para o trabalho; por fim, ao Ministério da Justiça, por meio do Departamento dos Estrangeiros – órgão da Secretaria Nacional de Justiça –, em parceria com a Polícia Federal (PF), coube a responsabilidade sobre a tramitação dos documentos relacionados com as residências temporária e permanente, e a emissão da Carteira de Identidade do Estrangeiro (CIE). Essa pulverização das competências para atuar junto aos imigrantes entre diversos ministérios, aliada à discricionariedade da legislação, segundo o relatório, é mais um obstáculo à regularização dos imigrantes, criando enormes entraves burocráticos.
Migração Irregular
Para muitos imigrantes, principalmente para aqueles que entram no Brasil fugindo da pobreza em seus países de origem, frente às dificuldades colocadas pelo processo de regularização previsto na lei, só resta viver e trabalhar no país de maneira irregular. Segundo Roberto Marinucci, o Ministério da Justiça estima em 600 mil o número de imigrantes irregulares vivendo no Brasil, embora algumas ONGs aleguem que esse número pode chegar a 1,5 milhão de pessoas. “O migrante em situação administrativa irregular vive permanentemente como um ‘foragido’, sem poder reivindicar direitos, denunciar violações ou, mais simplesmente, usufruir dos serviços sociais. Há muitas denúncias, no Brasil, sobre bolivianos ou peruanos que trabalham em condições análogas à escravidão: o problema principal é representado pela condição migratória irregular, pois essas pessoas não têm como denunciar seus algozes”, afirma Marinucci.
Denúncias de trabalho escravo
Algumas das denúncias de que fala Marinucci estão presentes em reportagens produzidas pela ONG Repórter Brasil, ligada ao combate ao trabalho escravo. O problema atinge principalmente os bolivianos – segundo a ONG, existem hoje 50 mil imigrantes deste país trabalhando em condições análogas à escravidão nas confecções da cidade de São Paulo – mas também afeta imigrantes de outros países latinoamericanos, como Peru e Paraguai. Uma reportagem de 2010 denuncia: “Os imigrantes fazem turnos de até 16 horas em confecções de roupas nos bairros do Brás, Pari e Bom Retiro. O ambiente de trabalho é fechado, sem janelas e com pouca luz. Os bolivianos moram nas fábricas e precisam pagar tudo para o patrão, desde a máquina de costura que trabalham até a água, luz e comida. Por isso, acabam endividados e ‘presos’ nas confecções. Para garantir que os imigrantes não fujam, além de trancarem as portas das fábricas, os patrões ameaçam chamar a Polícia Federal para deportar aqueles em situação ilegal”.
Em outra reportagem, de agosto de 2011, repórteres da ONG relataram uma operação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), que flagrou trabalhadores estrangeiros trabalhando em condições análogas à escravidão em oficinas de costura subcontratadas por uma fornecedora da famosa marca Zara, do grupo espanhol Inditex. Segundo a reportagem, durante a fiscalização foram apreendidos cadernos que mostraram que muitos trabalhadores imigrantes chegavam a receber pelos seus serviços metade do salário mínimo vigente no país na época. Além disso, a reportagem também citou o relatório da fiscalização, que denunciou as práticas discriminatórias dos empresários frente aos imigrantes. De acordo com o relatório, enquanto todos os trabalhadores brasileiros encontrados nas oficinas estavam com suas carteiras de trabalho assinadas, desempenhando jornadas de trabalho condizentes com a lei e com seus direitos trabalhistas e previdenciários garantidos, os imigrantes eram submetidos a condições precárias “em absoluta informalidade, jornadas extenuantes e meio ambiente de trabalho degradante”. A reportagem continua falando da ausência de normas referentes à saúde e à Segurança do Trabalho: “Além da sujeira, os trabalhadores conviviam com o perigo iminente de incêndio, que poderia tomar grandes proporções devido à grande quantidade de tecidos espalhados pelo chão e à ausência de janelas, além da falta de extintores [...] As máquinas de costura não possuíam aterramento e tinham a correia toda exposta. O descuido com o equipamento fundamental de qualquer confecção ameaçava especialmente as crianças, que circulavam pelo ambiente e poderiam ser gravemente feridas”.
Propostas de mudanças
Já falamos nessa reportagem sobre algumas das principais críticas que vem sendo feitas ao Estatuto do Estrangeiro. Entre os órgãos da Administração Federal com competência para tratar da imigração, também parece haver o entendimento de que a lei precisa ser reformulada. Tanto que o Ministério da Justiça apresentou ao Congresso, em 2009, o projeto de lei n° 5.655, que visa atender a essa demanda. Para Paulo Iles, contudo, o texto do projeto do novo Estatuto repete muitos erros do anterior e inclusive traz algumas mudanças para pior. “O projeto que está tramitando pretende criminalizar a imigração irregular, o que o estatuto atual não prevê. Ou seja, o imigrante em situação irregular poderá ser preso, caso o projeto seja aprovado do jeito que está”, aponta Iles, e completa: “o novo estatuto não contribui para o combate à exploração. Com ele, o imigrante precisará comprovar que está no país regularmente para poder procurar qualquer autoridade policial. Isso vai fazer com que os imigrantes não procurem a polícia para fazer BO em casos de exploração no trabalho”, ressalta.
O projeto de revisão do Estatuto do Estrangeiro também causa preocupação ao estabelecer que o objetivo da política imigratória do país deve ser “a admissão de mão de obra especializada adequada aos vários setores da economia nacional, ao desenvolvimento econômico, social, cultural, científico e tecnológico do Brasil, à captação de recursos e geração de emprego e renda, observada a proteção ao trabalhador nacional”. Essa disposição vai ao encontro de uma tese defendida por alguns setores do governo, que no contexto da entrada de milhares de imigrantes haitianos pelo norte do Brasil, no começo do ano, passaram a defender uma “imigração seletiva”. Foi o caso de uma equipe formada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, encarregada de criar uma política nacional de imigração. Em uma notícia veiculada no jornal O Globo, o coordenador do projeto, o economista Ricardo Paes de Barros afirmou: “Como o Brasil é agora uma ilha de prosperidade no mundo, há muita gente de boa qualidade que quer vir. Mas a fila do visto é a mesma para todos. Não estamos olhando clinicamente para ver quem vai trazer tecnologia”.
Para Paulo Iles, a declaração sinaliza alguns preconceitos arraigados com relação aos imigrantes. “Essa ideia remonta ao Brasil colônia, e mostra um preconceito que tem no fundo uma seletividade por cor. Entraram no Brasil 55 mil portugueses em um ano e 5 mil haitianos em dois anos: o que preocupou foram os 5 mil haitianos, e não os portugueses”, ressalta.
Para Roberto Marinucci, é natural que o governo queira atrair mão de obra qualificada para o país, mas esse não pode ser o único objetivo da política migratória. “O problema de fundo é que a questão migratória não pode ter apenas um viés economicista. Ao aceitar apenas imigrantes ricos e qualificados, o Brasil revela estar interessado não em acolher pessoas, mas apenas ‘fontes de dinheiro’. É a lógica do lucro econômico como critério básico”, critica. “A rejeição de migrantes que fogem da miséria é extremamente grave. Num país com fronteiras tão porosas como o Brasil, isso vai fomentar a imigração irregular e a exploração dos trabalhadores migrantes”, complementa.
Política Nacional
Também causou estranhamento a notícia de que o governo estaria elaborando uma política nacional de imigração, uma vez que, em 2010, o Conselho Nacional de Imigração – órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, mas composto por representantes de diversos ministérios, sindicatos e entidades da sociedade civil – aprovou uma proposta de criação de uma “Política Nacional de Imigração ao Trabalhador Migrante”, que foi depois colocada em consulta pública por meio de audiências públicas e de contribuições pela internet. Segundo Paulo Iles, a proposta foi importante por estabelecer princípios e diretrizes pautadas pela defesa dos direitos humanos dos imigrantes. Ela deveria ter sido aprovada por todos os ministérios envolvidos e transformada em norma por meio de um decreto presidencial, o que não ocorreu. “A política construída de forma participativa com foco na garantia de direitos dos imigrantes foi engavetada”, aponta o relatório Brasil: Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes, do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante. “Aparentemente, a tendência do governo brasileiro, neste momento em que finalmente o tema das migrações entra na agenda, é a de reproduzir as políticas fracassadas dos países do hemisfério Norte, restritivas e altamente seletivas, que, no entanto, não têm impedido o afluxo de migrantes a seus territórios. Ao contrário, apenas impingem ainda maior sofrimento a estes seres humanos”, critica o relatório.
O CDHIC alerta para o perigo de o Brasil adotar as práticas discriminatórias com relação aos imigrantes intensificadas pela crise na Europa e nos EUA, onde os imigrantes servem muitas vezes como bode expiatório de problemas econômicos, políticos e sociais. Exemplo dessa postura é a chamada Diretiva de Retorno, lei aprovada pelo Parlamento Europeu em 2008 que transformou a imigração irregular em crime. Segundo o CDHIC, na época a medida foi duramente criticada pelo governo brasileiro, bem como por governos de países sul-americanos. “Para ter coerência e dar fundamento a este discurso, os países sul-americanos devem, no entanto, analisar as suas próprias realidades e dedicar-se ao tema dos direitos dos migrantes. Assim, a sociedade e os governantes brasileiros devem refletir sobre a política migratória do Brasil e o Projeto de Lei nº 5.655 em tramitação, para que se possa traduzir juridicamente o discurso do direito à migração, da abordagem integral do fenômeno migratório, do respeito irrestrito dos direitos humanos destas pessoas”, aponta o relatório do Centro.
O professor Helion Povoa pontua que a “imigração seletiva” desejada por parte do governo brasileiro é impossível. “A imigração é um processo que no fundo é incontrolável. O Brasil quer ter presença internacional importante, quer ter assento permanente no conselho de segurança da ONU e para as pessoas que estão em situação econômica precária, isso sinaliza que o país deve oferecer oportunidades de trabalho, já que é a 6ª economia do mundo. O Brasil não pode querer só um dos lados, ou seja, ter prestígio político e atrair só os imigrantes desejados”, avalia.
Saúde e Educação para os imigrantes
De acordo com o relatório do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante, a Constituição brasileira não coloca nenhum obstáculo ao acesso dos imigrantes - mesmo aqueles em situação irregular - aos serviços públicos de saúde e educação. Segundo a Organização Mundial dos Imigrantes (OIM), o Brasil está entre os cinco países do mundo que garantem o acesso de imigrantes sem documentos aos seus serviços de saúde (os outros são França, Portugal, Argentina e Espanha).
Segundo o relatório do CDHIC, havia há alguns anos um receio entre imigrantes sem documentos em buscar os serviços de saúde. “Atualmente, é possível notar uma modificação nesta postura, com um expressivo aumento no acesso a este serviço. Isto não significa, no entanto, que a equipe de saúde esteja capacitada para trabalhar com essa população, e que todos tenham conhecimento e instruções de como agir nos casos em que o imigrante não possua documentos brasileiros. Há relatos, mesmo que escassos, de que a falta de documentação gerou constrangimentos”, informa.
Na educação, a questão é um pouco mais complicada, segundo o CDHIC, uma vez que o Estatuto do Estrangeiro dá margem à interpretação de que os alunos em situação irregular não podem frequentar a escola, ao estabelecer em um de seus artigos que as escolas só poderiam fazer a matrícula de estrangeiros “devidamente registrados”. “De todo modo, ainda que a Constituição garanta o direito de todos à educação, com ou sem documentação regular no país, a falta de documentos ainda é relatada como um entrave para entrar nas instituições educativas (quando solicitam que demonstrem situação regularizada no Brasil), para mudar de escola (quando não emitem o histórico escolar), e mesmo para concluir o curso já realizado (com a não emissão do certificado de conclusão de curso)”, aponta o relatório, que afirma que a questão ainda é bastante ignorada pelo poder público. “Não existem ações focalizadas que considerem as especificidades dos imigrantes em nenhuma esfera, nível ou modalidade de ensino. São frequentes os relatos de discriminação, não valorização da diversidade cultural e, especialmente, barreiras relacionadas ao idioma”.