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Lei de Responsabilidade Fiscal é um dos grandes desafios dos futuros prefeitos

Diante das limitações, prefeituras utilizam alternativas para cumprir (ou não) a lei.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 04/10/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Considerada uma das grandes mudanças da administração pública dos últimos tempos e comemorada por diversos legisladores, a Lei de Responsabilidade Fiscal (nº 101/00) hoje é utilizada para justificar inúmeras ações do poder municipal. Também reconhecida como lei da transparência, ela atende à exigência do artigo 165 § 9º da Constituição, mas, 12 anos após sua promulgação, ainda não conseguiu atingir seus dois principais objetivos: redução do gasto com as despesas de pessoal e diminuição da dívida pública. Além disso, deu margem a diferentes iniciativas que sacrificam o investimento em áreas como educação, saúde e infraestrutura.

Após a sua criação, de acordo com levantamento realizado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) denominado 'Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF), entre os anos de 2008 e 2010, 384 municípios brasileiros continuam descumprindo o teto de 60% para despesas com o funcionalismo determinado pela Lei. Ao mesmo tempo, aqueles que gastavam menos de 60% entre 2000 e 2010 aumentaram seus números, passando, em valores médios, de 43,2% para 50%. O Índice de Responsabilidade Fiscal, Social e de Gestão (IRFS) - Fiscal, Gestão e Social da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) 2002- 2009 mostra também que o gasto médio dos municípios com pessoal apresentou um aumento de cerca de 3%, mas, em médias gerais ainda está abaixo do teto, somando 48,41%.

No entanto, embora não atingido pela média dos municípios, muitos ainda usam este argumento como justificativa para a não realização de novos concursos para diversas áreas. "Embora tenhamos estes índices, impor um teto é muito preocupante porque ele impede ações para atender a diferentes demandas necessárias. Na gestão de um prefeito, ele deve levar em conta todos os professores de que a população necessita, todos os médicos, o pagamento de todo o sistema de segurança. Enfim, essa é uma grande questão e, inclusive, já saiu uma pesquisa da CNM mostrando como este limite estrangula as necessidades do município", argumenta a assessora de Política Fiscal e Orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Eliana Graça .

Para os que defendem a lei de responsabilidade fiscal, a questão da redução da dívida pública é mais positiva. De acordo com o índice da CNM, os municípios passaram de uma situação de insuficiência de caixa em 2002 e 2003, que significa ter mais restos a pagar do que disponibilidades de recursos, para uma situação de sobra de caixa entre 2004 e 2009. Em contrapartida, o estudo da Firjan revela que desde 2000 os orçamentos municipais para investimentos em educação, saúde e infraestrutura oscilam em torno de 10%. Já o do CNM aponta que a taxa de investimento teve uma queda significativa em 2009, passando de 12,9% em 2008 para 9,21% em 2009, uma redução de quase 30%.

De acordo com Eliana Graça este fenômeno é o mais preocupante em relação à LRF. "O espírito que rege esta lei, como o próprio nome diz, é uma preocupação com as contas. Ninguém é contra uma boa gestão fiscal. Todo mundo quer transparência e responsabilidade com gastos porque sabemos que muitas vezes esses gastos não são convertidos em benefícios para a população, mas não dá para haver uma rigidez muito grande que impeça o atendimento a solicitações daquilo que a população necessita", explica.

Iniciativas para flexibilização da lei

De acordo com o professor de direito tributário, financeiro e administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP) e membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Kiyoshi Harada, a LRF é combativa para o que ele chama de "cultura dos calotes". Segundo ele, as emendas constitucionais 30/2000 e a 62/09, ambas que parcelam a dívida, permitem a inadimplência e promovem a política do endividamento, indo de encontro à lei. "Os governantes regionais e locais acham normal o desvio sistemático das verbas para pagamento de precatório para atender outras prioridades que trazem mais projeções na mídia, mais visibilidade para o eleitorado. A questão é perguntar como é que não tem dinheiro se o recurso está previsto. A única forma é a receita ter dado menos que o orçado", argumenta.

Eliana Graça , por outro lado, explica que as prioridades devem ser fundamentadas nas necessidades da população e não na redução da verba pública ao pagamento de dívidas. Ela explica, por exemplo, que o Inesc enviou uma proposta de emenda à LRF, que foi transformada no projeto de lei 264/2007, para que pudesse abrir exceções nestes tetos rígidos em determinados casos. "A lei também é um impedimento àqueles que têm vontade de fazer as coisas. Esta emenda flexibiliza para que o prefeito que tiver como meta erradicar o analfabetismo possa contratar pessoas mesmo que ultrapasse o limite de 60%", exemplifica.

Contudo, de acordo com Eliana, a dicotomia está lançada. Se por um lado há um impedimento de contratações ferindo os serviços sociais, por outro, esta proibição dá brechas para diversas manobras que vêm sendo tomadas por diferentes municípios em todo o país.

No ano passado, o Tribunal de Contas (TC) do Rio Grande do Norte realizou um levantamento segundo o qual pelo menos as cidades de Goiás, Espírito Santo, Paraná, Rondônia, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Rio Grande do Norte estão excluindo o Imposto de Renda retido na fonte de seus funcionários, na definição de despesa com pessoal, possibilitando assim, mais recursos disponíveis no orçamento. A ação não é isolada: o projeto de resolução que tramita no senado com o nº 42/11, do senador Casildo Maldaner (PMDB-SC), permite que estados e municípios inadimplentes contratem operações de crédito junto às próprias instituições credoras para regularizar os débitos pendentes."Sempre se acha um jeitinho de burlar as coisas. Agora, com esta lei amarrando determinados assuntos, fica ainda mais complicado, porque além de ela não resolver o problema da dívida, ainda provoca vários tipos de desdobramentos, como a precarização do trabalho e dos serviços públicos", comenta Eliana. A assessora do Inesc explica que a terceirização - outro fenômeno que cresceu depois da LRF - não entra como ‘gasto de pessoal', que atingiria o teto e, sim, como gastos com ‘serviços de terceiros', que é o caso das Organizações Sociais (OS).

OSs

Outra forma de não atingir o teto estabelecido pela LRF é a utilização das Organizações Sociais (OS) para fazerem a gestão de determinados setores públicos. Assim,a contratação de pessoal passa a ser de responsabilidade da instituição contratante e não do município, não contabilizando, portanto, no total de gastos com pessoal. "Quem paga o pessoal não é a prefeitura, é a empresa, portanto, este valor não entra na conta dos 60%. Mas, isto tem consequências porque o serviço público passa a não ser mais organizado por uma gestão pública e com isso deixa de ter um servidor público comprometido com as metas e propostas do governo municipal e com outras metas a cumprir. Então, você tem uma legislação limitada que só imaginou uma realidade, que era a economia de gastos, e todo mundo tem que pagar sua dívida", explica Eliana.

No entanto, com a contratação das OSs, essa economia de gastos vislumbrada pela LRF passa a não ser realizada. Estudo publicado em 2011 pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São Paulo referente ao exercício de 2010 mostra que hospitais geridos por Organizações Sociais gastam mais do que aqueles que são administrados diretamente pelo poder público. A análise apontou que os hospitais geridos por OSs custam R$ 60 milhões a mais do que nas gestões diretas. Além disso, o custo de leito por ano é 17% maior na administração indireta, além dos gastos superiores com pessoal, mesmo com o número de funcionários menor do que o oferecido pela administração direta. "A questão da terceirização abre margem para diversas discussões. Além do problema da relação trabalhista dos profissionais, houve ainda o aumento dos gastos públicos. Além disso, no sentido contrário ao que a LRF prega, a OS não tem um controle público. Elas são monitoradas por um Conselho de Administração, sem caráter deliberativo e com composição não paritária", questiona Kiyoishi Harada, da Fadusp. Segundo ele, o governante que contrata servidores por meio de concurso público não pode ser prejudicado enquanto outros terceirizam o serviço.

Economia para onde?

Kiyoishi Harada explica que quando a lei fixou o limite de endividamento e de despesa com pessoal, ela veio para poupar os recursos para investimento em diferentes áreas. "Os limites não foram estabelecidos para incentivar um gasto maior do que o que já havia, e sim para controlar aqueles que tinham gastos exagerados. Mas, isso depende muito da sabedoria daquele que está no comando. O objetivo da lei era ao cumprir as metas estabelecidas, o gestor pouparia os recursos mal gastos e assim poder investir em educação, saúde ou outras áreas. A ideia era sempre otimizar os recursos que existem. ", argumentou.

No entanto, o estudo dos Índices Fiscais e Sociais do relatório da CNM mostra que a relação não é totalmente direta. No quesito fiscal, o município Presidente Kennedy, do Espírito Santo, aparece em primeiro lugar, seguido do São José do Hortêncio e Itatiba do Sul (RS) Já na área social, a liderança é do município de Oliveira Fortes (MG), seguido de Pinhalzinho e Jeriquara, ambos de São Paulo.

Para Eliana, a LRF serve para alimentar uma ciranda financeira nas quais as economias realizadas são revertidas em ações da bolsa de valores, títulos da dívida pública, entre outras. "Não é à toa que esta lei é comemorada todo ano. Os investimentos que poderiam ser bons para milhões de brasileiros e brasileiras são depositados nas contas dos banqueiros, das famílias que vivem de renda. Para se ter uma ideia, 30% a 40% do orçamento daquilo que é arrecadado da população é usado para manter esse sistema", explica.