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Ligações perigosas

Pesquisa mostra o alto investimento das empresas de planos de saúde na campanha dos candidatos em 2014 . O retorno tem sido lucrativo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 26/03/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A Amil, maior operadora de planos de saúde do Brasil, foi vendida para a empresa norte-americana Unitedhealth em 2012, por R$ 6,5 bilhões, numa operação polêmica, considerada por muitos analistas como inconstitucional. Na época, a alegação era que, embora não impedisse a presença de empresas internacionais no mercado de saúde suplementar, a Constituição Federal proibia a participação de capital estrangeiro na administração de hospitais — e a Amil, apesar de se apresentar como plano de saúde, também tem uma rede hospitalar própria. Se fosse hoje, essa polêmica não teria chegado nem os poucos meses que durou já que, em janeiro deste ano, o Congresso Nacional aprovou e a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.079, que abre a porteira para a participação do capital estrangeiro na saúde.

Tudo isso é notícia velha. Mas o que talvez você não saiba é que, nas eleições do ano passado, essa mesma Amil, sozinha, doou mais de R$ 26 milhões para diversos candidatos e, desse montante, R$ 7 milhões foram destinados diretamente à campanha da presidente eleita Dilma Rousseff (PT). Para completar, dos R$ 14 milhões que reservou para financiar candidaturas em 2014, a Bradesco Saúde S.A. destinou R$ 105,6 mil para o deputado federal eleito Manoel Junior (PMDB/PB), autor da emenda que incluiu na Medida Provisória 656/1 a autorização para a entrada do capital estrangeiro na saúde. Gratidão, investimento futuro ou mera coincidência? “Não conseguimos comprovar causa e efeito nesse sentido, mas se considerarmos a presença constante de representantes dessas empresas em cargos diretivos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a aprovação, tanto pelo Congresso como pelo governo, de diversas medidas que beneficiam economicamente essas empresas, podemos dizer que tem sido um investimento lucrativo”, analisa Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e autor, junto com Ligia Bahia, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da pesquisa ‘Representação política e interesses particulares na saúde’. O estudo mapeou todas as doações oficiais feitas por empresas de saúde suplementar a candidatos do legislativo e do executivo, estadual e federal nas eleições de 2014. Scheffer concorda que a entrada do capital estrangeiro de forma irrestrita na saúde foi um indício importante do “poder de fogo” dessas empresas, que vão se beneficiar da medida com a ampliação da rede hospitalar e ambulatorial que estará a serviço dos planos. Mas ele alerta que esse é apenas um dos muitos exemplos atuais dessa influência.

Linha direta

De fato, os dados mostram que a rede de relações das empresas de plano de saúde entre os políticos eleitos é extensa e variada. Nela estão desde deputados de menor expressão, como o autor da emenda do capital estrangeiro, até parlamentares reconhecidos pela atuação mais direta na área da saúde. Nesse segundo grupo estão nomes como o do ex-ministro da Saúde José Saraiva Felipe (PMDB-MG) e Osmar Terra — que, entre outras atuações, foi secretário estadual de saúde do Rio Grande do Sul e presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) — que receberam, cada um, R$ 100 mil de doações de campanha da Amil. Consta também dessa lista o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), que há muito tempo ocupa o cargo de presidente da Frente Parlamentar da Saúde na Câmara e foi contemplado com R$ 300 mil, também doados pela Amil.

Uma polêmica recente que envolve acusações sobre a defesa de interesses privados se formou em torno do atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Beneficiado com uma doação de oficial de R$ 250 mil da Bradesco Saúde S.A. na campanha do ano passado, ele impediu a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre os planos de saúde requerida pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP) em março deste ano. A alegação era de que a CPI não tinha “foco”, mas o deputado garante que essa avaliação não procede. “Nós pedimos à assessoria legislativa da Câmara dos Deputados, que é muito competente, para dar um parecer completo. Eles nos forneceram esse parecer, que diz que nosso pedido de CPI atende a todos os requisitos”, diz, e denuncia: “O deputado Eduardo Cunha evidentemente não quis abrir a CPI por motivos políticos. Um desses motivos é que ele é um dos 30 e tantos parlamentares eleitos que foram financiados pelos planos de saúde”. No ano passado, Cunha se viu em meio a uma polêmica semelhante, quando foi relator da Medida Provisória 627 que, no meio de muitos outros temas, anistiava cerca de R$ 2 bilhões da dívida de empresas de planos de saúde com os cofres públicos. Como o tema gerou muita mobilização na sociedade civil e na imprensa, o deputado emitiu uma nota em que negava que se tratasse de anistia e dizia que só acolheu o texto porque a posição do governo federal era favorável ao artigo. Mas como a lista de interesses dessas empresas é extensa, já tramita no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 451/14) de autoria desse mesmo deputado que pretende incluir o acesso a planos de saúde para assistência médica no rol de direitos do trabalhador que constam da Constituição. Ao tratar a oferta privada de saúde como ”direito”, a PEC vai na contramão da ideia de saúde como dever do Estado que foi impressa na mesma Constituição que Cunha agora quer modificar. E, se aprovada, ela deve ampliar significativamente o mercado da saúde suplementar. “Estamos, a passos largos, diante da privatização do sistema de saúde”, lamenta Mario Scheffer.

Esses exemplos da trajetória recente do presidente da Câmara, tal como o papel desempenhado pelo autor da emenda do capital estrangeiro, indicam relações muito diretas entre o setor empresarial que financia a campanha e a atuação parlamentar. Mas nem sempre essa linha é tão reta assim. No caso dos deputados mais diretamente ligados à saúde, por exemplo, a análise da atuação parlamentar mostra posturas dúbias, com posicionamentos em defesa do SUS e de apoio aos planos de saúde — naturalizados, em geral, como necessários para suprir aquilo de que o sistema público não dá conta. Para Mario Scheffer, a análise precisa enxergar o todo: “O lobbie cria muito mais um ambiente propício aos seus interesses do que de fato um toma lá dá cá imediato. Mas acho que nós temos indícios que permitem associar essa relação do financiamento com o parlamentar ou governante eleito”, diz.

Triângulo amoroso

No caso da anistia da dívida dos planos, de fato, depois da pressão, a presidente Dilma acabou vetando o artigo polêmico. Mas a verdade é que o posicionamento do governo federal em relação aos interesses das empresas de saúde privada também não pode ser considerado acima de qualquer suspeita. Além dos R$ 7 milhões da Amil, a candidata Dilma recebeu R$ 4 milhões da Qualicorp, o equivalente a 65% do total de financiamento eleitoral feito pela empresa em 2014. Os outros R$ 2 milhões foram doados ao Comitê Financeiro Nacional do PSDB mas, segundo o estudo, não é possível identificar se sua destinação final foi a campanha do candidato Aécio Neves. “A Qualicorp e a Amil têm uma história recente de decisões que foram favoráveis aos seus negócios”, afirma Mario Scheffer. E, segundo ele, no meio dessa relação entre o Executivo Federal e as empresas de planos de saúde quem desempenha um papel fundamental é a ANS.

Em relação à Amil, Scheffer destaca principalmente a rapidez com que a compra da empresa pela Unitedhealth foi aprovada pela Agência e pelos outros órgãos de governo, embora ressalte que, como maior operadora de planos do país, ela tem também interesses mais gerais, como a expansão desse mercado. E isso passa por uma agenda que, segundo o pesquisador, é comum a todas essas empresas que investiram nas campanhas eleitorais: a flexibilização da regulação da saúde suplementar, desonerações e isenções fiscais.

Já a Qualicorp, que atua no segmento dos chamados planos coletivos por adesão, teve um crescimento vertiginoso depois que entraram em vigor duas Resoluções Normativas (nº 195 e 196) da ANS que contribuíram para a ampliação significativa da sua fatia de mercado. Em pouco tempo, ela se tornou a maior administradora de benefícios do país. Em quatro anos, aumentou significativamente também o investimento da empresa em campanhas políticas: foram R$ 1,9 milhão em 2010 — R$ 1 milhão para a candidatura de Dilma, R$ 500 mil para José Serra e R$ 400 mil para Geraldo Alckmin, que concorria ao governo de São Paulo — contra R$ 6 milhões no ano passado. Chama atenção dos analistas críticos — inclusive os autores da pesquisa sobre financiamento de campanha — o grau de proximidade dessa empresa com as esferas reguladoras e governamentais. Um exemplo é o mecanismo que tem sido chamado de “porta giratória” na indicação de nomes para a diretoria da ANS. Um exemplo? O atual diretor presidente da Qualicorp é Maurício Ceschin, executivo que já tinha presidido essa mesma empresa de novembro de 2008 a fevereiro de 2009. No intervalo entre essa primeira passagem pela Qualicorp e a atual, ele ocupou nada mais nada menos do que os cargos de diretor de desenvolvimento setorial e diretor presidente da ANS. “Pessoas vêm da iniciativa privada para a ANS fiscalizar o lugar de onde vieram. É a raposa tomando conta do galinheiro”, diz Ivan Valente. No caso da Qualicorp, vale registrar ainda que a proximidade com o mundo político no Brasil parece poder se medida também pelas relações pessoais. As colunas sociais de jornais e revistas noticiaram, no ano passado, que a festa de casamento do fundador e um dos donos atuais da empresa, José Seripieri Junior, contou com a presença de grandes nomes da política nacional, como Geraldo Alckmin, José Serra e o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. “A qualicorp é um fenômeno, não só de crescimento mas de proximidade do poder, opina Scheffer.

A ANS está no centro também de outra pauta que Scheffer considera “de grande interesse” para essas empresas: o não ressarcimento ao SUS dos procedimentos que clientes de planos fazem no sistema público. “O próprio Tribunal de Contas da União aponta que o calote ao SUS é imenso: do que foi cobrado, nem 40% chegou aos cofres públicos, mas o pior é aquilo que nem se cobrou. A ANS nunca cobrou, por exemplo, por nenhum atendimento ambulatorial”, exemplifica. Na tentativa de influenciar a orientação da Agência, os agrados distribuídos pelas empresas de saúde suplementar na forma de financiamento de campanha podem se dirigir ao governo federal, já que a presidência da república é a responsável pela indicação dos nomes para a diretoria, mas também ao Senado, já que são esses parlamentares que sabatinam e aprovam as pessoas indicadas. Em 2014, quatro candidatos ao Senado receberam doações de planos de saúde. Desses, Lasier Costa Martins (PDT-RS) ficou com apenas R$ 1 mil doados pela Unimed/RS. e Rogério Carvalho (PT-SE), que construiu sua trajetória política na área da saúde, não se elegeu, mas recebeu R$ 290 mil da Amil. A Bradesco Saúde doou R$ 300 mil a Fernando Collor de Mello (PTB-AL) e a Unimed do Brasil destinou R$ 100 mil ao senador Ronaldo Caiado (DEM-GO).

Mas em relação ao governo federal, existem também ações diretas que têm beneficiado esses setores. Gerou uma grande mobilização por parte do movimento sanitário e de outros setores, em 2013, a informação de que a presidente Dilma teria recebido um grupo de empresários da saúde suplementar que reivindicavam incentivos para a massificação de planos de saúde ‘populares’, de baixo custo. Medidas específicas de fomento a essa modalidade, de fato, ainda não foram postas em prática, mas não faltaram outros agrados. “A PEC 358, do orçamento impositivo, que cristalizou o subfinanciamento da saúde, foi inteiramente articulada e apoiada pelo governo federal. A aprovação da entrada do capital estrangeiro veio no dia seguinte e o governo defendeu, dizendo que não tinha problema, que isso já acontecia antes”, enumera Scheffer, acrescentando ainda a Medida Provisória 619 que, em 2013, mesmo antes desse aporte de recursos para financiar as campanhas, permitiu uma mudança da base de cálculo que reduziu em 80% o pagamento de PIS e Cofins pelas empresas de planos de saúde. “Há uma série de decisões políticas e sinalizações de que o próprio governo federal, o Ministério da Saúde, o poder executivo está bastante alinhado com esses interesses”, resume.

Investimento futuro

De acordo com a pesquisa de Ligia Bahia e Mario Scheffer, apenas quatro empresas foram responsáveis por 95% do financiamento de campanha que veio da saúde suplementar. A Amil lidera a lista, com doações que ultrapassam os R$ 26 milhões. Em seguida, vêm Bradesco Saúde, com R$ 14 milhões, Qualicorp, com R$ 6 milhões e Unimed, com R$ 5,48 milhões.

Tem-se especulado na imprensa que a pauta mais atual do setor de saúde suplementar — a flexibilização da regulação dos planos individuais, que hoje têm o reajuste controlado pela ANS, ao contrário dos planos coletivos e por adesão — tem forçado um lobbie em que essas gigantes do setor se colocariam em lados opostos. Tudo indica que, nos bastidores, o governo tem pressionado para que se volte a oferecer planos individuais, uma modalidade que foi abandonada pelas empresas que querem exatamente fugir da regulação. Foi nesse hiato, inclusive, que a Qualicorp cresceu, investindo nos planos por adesão. A resposta dessas empresas teria sido uma contrapressão, pelo fim da regulação, o que significa vender planos individuais com regras semelhantes às que regem hoje os planos coletivos. E os comentaristas do mercado na imprensa afirmam que a simples notícia desse lobbie por parte principalmente da Bradesco Saúde mexeu alterou as ações da Qualicorp que, com essa mudança, enfrentaria mais concorrência. O desfecho dessa aparente queda de braços ainda é desconhecido, mas, por garantia, os investimentos foram altos já em 2014.

Apesar de eventuais interesses específicos e até opostos, Mario Shceffer garante que essas empresas têm muito mais interesses comuns e, hoje, formam uma verdadeira coalizão das pautas privadas junto com os hospitais particulares e a indústria farmacêutica. “Essa é a mesma coalizão de forças que dissemina que o SUS está falido, que a saúde universal é inviável”, conclui.