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Manifestações nas ruas: de onde vieram e para onde vão?

EPSJV realiza mesa-redonda para discutir as origens e os rumos das manifestações que tomaram as ruas nas últimas semanas
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 12/07/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

De onde surgiram e quais rumos devem seguir as manifestações que tomaram as ruas de diversas capitais do país nas últimas semanas? Essas foram algumas das indagações que serviram de fio condutor da mesa-redonda ‘Eco das manifestações: que caminhos estamos trilhando?’, promovida pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e pelo Grêmio Politécnico no dia 9 de julho. Para falar sobre o tema, foram convidados o professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Associação de Docentes da mesma universidade, Mauro Iasi, o doutorando do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, Guilherme Marques, e o professor-pesquisador da EPSJV Geandro Pinheiro.

Mauro Iasi foi o primeiro a falar, e questionou a leitura que vem sendo feita por parte da mídia e do governo, que expressaram surpresa diante da rapidez com que as manifestações se difundiram pelo país e do tamanho que o movimento adquiriu. “Chamou a atenção a perplexidade de alguns políticos e jornalistas tentando acompanhar as manifestações, mas isso só foi surpreendente para quem acreditava no discurso de que tudo ia bem no Brasil. Na verdade, quem acompanhava os movimentos sociais sabia que nem tudo ia bem, germinavam por baixo desse verniz ideológico diversas demandas que acabaram ‘explodindo’ a partir da disputa sobre o preço da passagem de ônibus”, apontou. Ele lembrou que a historia recente do país está repleta de movimentos reivindicatórios, alguns com bandeiras históricas, como os movimentos pela reforma agrária, e outros com bandeiras que ganharam importância nos últimos anos, como os que denunciam as remoções de populações pobres em decorrência das obras da Copa do Mundo. “Mas por que essas manifestações não provocaram a eclosão que a luta pontual sobre o preço dos transportes provocou?”, perguntou Iasi, explicando em seguida: “As explosões sociais funcionam em momentos de fusão, em que diferentes reivindicações populares encontram num acontecimento sintético a maneira pela qual se fundem e explodem. Esse momento foi a luta contra o aumento da passagem, que acabou dando o caráter multifacetado dessas manifestações, que ao mesmo tempo em que protestam contra os gastos da Copa, pedem saúde, educação, transporte, etc, fruto das contradições acumuladas sob o discurso ideológico”, afirmou.

Despolitização e violência

O problema é que esse caráter multifacetado fez com que algumas bandeiras conservadoras acabassem ‘pegando carona’ nas manifestações populares, segundo Iasi. Para o professor da UFRJ, isso é fruto do processo de despolitização do movimento de massas sob os governos petistas. “Nos últimos dez anos os trabalhadores jamais foram chamados às ruas para expressar demandas e reverter a correlação de forças desfavorável que o PT enfrentou quando chegou ao poder. Pelo contrário, o governo atual optou por uma governabilidade por cima, um presidencialismo de coalizão em que perderam-se a identidade e o programa de governo e impuseram-se medidas antipopulares, como o superávit para pagar o capital financeiro, a prioridade ao agronegócio e a reforma da previdência”, criticou Iasi, para quem esse cenário gera um retrocesso na consciência de classes e uma inflexão conservadora no senso comum, com o crescimento do racismo, do fundamentalismo religioso, do desinteresse pela política e da individualização cultural. Para Iasi, a violência que aflorou em algumas manifestações é fruto desse processo, o que não significa que ela deva ser automaticamente condenada. “É natural que diante da opressão, numa explosão social, as pessoas mirem alvos que materializam uma ordem que as exclui, como prédios e instituições”, disse, criticando o discurso oficial que ataca a violência sob a justificativa de que é necessário manter a ordem. “É uma hipocrisia da consciência cívica de nossa época, que considera normal que o aparato policial entre em casas e execute pessoas. Isso é justificável e aceitável para manter a ordem. Mas quando a violência se dá contra postes, lixeiras, vitrines, isso é inaceitável?”, questionou. Mas o professor advertiu que a violência também vem sendo utilizada por movimentos de extrema direita como forma de esvaziar as manifestações, a exemplo da violência contra militantes de partidos de esquerda. “Esse é um recurso que a direita sempre usou quando necessário, o uso da violência para atacar movimentos de esquerda e criar situação de desordem. É uma violência dirigida e que de certa forma encontra respaldo no senso comum conservador que é contra os partidos políticos”, aponta. Esse antipartidarismo, para Iasi, nasce do desencanto com as organizações políticas tradicionais e com o sistema político. “É compreensível, mas é injustificável, porque bate nos partidos da ordem e também nos que defendem as demandas que emergem dos movimentos. Os partidos de esquerda não tinham que pedir licença para estar ali porque estiveram presentes em todas as manifestações populares”, opinou.

Pactos

Mauro Iasi também criticou os cinco pactos propostos pela presidente Dilma Rousseff em resposta às ruas. “O primeiro pacto foi pela manutenção da responsabilidade fiscal, mas eu não vi ninguém nas ruas pedindo isso. Na verdade, a lei de responsabilidade fiscal está na raiz dessa explosão, porque para responder a ela temos um profundo processo de privatização de serviços públicos por meio de OS [Organizações Sociais] e Oscips [Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público]”, apontou.  A proposta de um plebiscito para encaminhar uma reforma política também foi alvo de críticas. “O plebiscito é uma consulta para escolher entre alternativas que já foram filtradas. Não se desce à raiz do problema, que é essa forma de representação política excludente”, ressaltou. A destinação de mais verbas para a saúde, educação e transporte também é vista com ressalvas. “Se fala em mais verbas sem falar se é para dar subsídios para empresas privadas”, ponderou. Para ele, os pactos propostos pelo governo podem sinalizar um esvaziamento da radicalidade de algumas bandeiras defendidas durante as manifestações. “Essas demandas devem ser canalizadas no sentido de ir além da mera denúncia e servir de base para profundas transformações, com um horizonte socialista”, concluiu.

Copa do mundo e contradições

Para Guilherme Marques, sociólogo e doutorando do Ippur/UFRJ, a aproximação da Copa do Mundo favoreceu a eclosão de manifestações de massa ao trazer à tona contradições que estavam latentes. “Há muito tempo se fala que em função da dívida publica não é possível melhorias na saúde, na educação, investimentos no transporte. Só que tem dinheiro para estádio que depois vai ser repassado para empresários. Essa contradição é fácil de entender. Isso é um tapa na cara da população”, afirmou Guilherme, que chamou atenção para a presença, nas manifestações do Rio de Janeiro,  de moradores de favelas que receberam Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). “As favelas que mais se mobilizaram foram as que tinham UPPs. Por um lado, a existência de UPPs favorece mobilizações, por outro isso indica que toda aquela felicidade propagandeada não parece ser tão real”, disse.

Guilherme também criticou a cobertura da grande mídia que, segundo ele, vem tentando impor suas próprias pautas e esvaziar as manifestações. “Se num primeiro momento a cobertura da mídia foi pela repressão dos atos, num segundo momento a classe dominante passou a disputar esse processo através da mídia para fazer suas próprias reivindicações junto ao governo e tentar conduzir os resultados das manifestações, dizendo que elas eram só contra o sistema político e a corrupção. Mas quando o povo pede escolas e hospitais padrão FIFA, não está só criticando a corrupção, está pedindo outro projeto de desenvolvimento”, destacou.

Geandro Pinheiro, professor-pesquisador da EPSJV, ressaltou a importância da participação dos jovens nas manifestações, lembrando a convocatória do Grito dos Excluídos deste ano: ‘Juventude que ousa lutar, constrói o projeto popular’. “Essa convocatória foi escrita em março, mas parece que foi escrita às vésperas das manifestações. A questão aqui é que ninguém estava dormindo, queríamos gente na rua, tivemos e continuamos tendo, agora precisamos disputar o sentido disso”, afirmou Geandro, criticando a leitura conservadora que entende que a resposta às reivindicações populares passa apenas pela reforma do sistema político. Ele também fez críticas ao governo, que segundo ele foi conivente com a violência policial durante os atos. Para ele, a ação da polícia foi um exemplo de criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, que ficou evidente pela maneira como a polícia reprimiu manifestações no centro do Rio de Janeiro e na periferia. Ele lembrou que a  a polícia foi muito violenta nas manifestações realizadas no centro do Rio, mas ressaltou que, nesses lugares, ela usou bala de borracha. “Quando a manifestação foi em Bonsucesso, , a polícia chegou atirando com balas de verdade”, criticou, fazendo referência ao evento que resultou em nova Chacina feita pela polícia no Complexo da Maré, zona norte do Rio, que acabou em dez mortos, sendo nove manifestantes e um policial. (Veja nota da Fiocruz em repúdio à violência policial na Maré)

Geandro também criticou as propostas do governo em resposta às manifestações. “O pacto pela mobilidade urbana fala da importância do transporte público como se esse governo não reiterasse o modelo de transporte individual através de isenções fiscais para a compra de automóveis; na educação o governo fala de mais creches, universidades e escolas de ensino técnico, mas isso vai ser feito pelo Prouni e pelo Pronatec. Isso não foi falado”, denunciou Geandro, que apresentou propostas de pactos alternativos à proposta do governo: a democratização das mídias; saúde e educação de qualidade, sob a lógica do direito; ocupação democrática do solo, pela reforma agrária e urbana; desmilitarização da polícia e descriminalização de qualquer forma de mobilização e, por fim, um pacto pela continuidade das manifestações mesmo após a realização do plebiscito sendo proposto pelo governo.