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'Médicos pelo Brasil' e os rumos da atenção primária

Congresso instala comissão para analisar MP que cria o programa que vai substituir o Mais Médicos. Representantes do Movimento Sanitário e gestores acendem alerta para o risco de que iniciativa provoque desassistência e criticam proposta de criação de uma entidade privada para gerir serviços na atenção primária
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 23/08/2019 15h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

A comissão mista que vai analisar a medida provisória do Programa Médicos pelo Brasil foi instalada no Congresso Nacional na última quarta-feira (21). A comissão será presidida pelo deputado federal Ruy Carneiro (PSDB-PB) e relatada pelo senador Confúcio Moura (MDB-RO), e tem como atribuição propor alterações ao texto da MP 890/2019, apresentada pelo governo federal no dia 1º de agosto. Deputados e senadores apresentaram 366 emendas ao texto da MP, que a partir do dia 15 de setembro entra em regime de urgência, trancando a pauta do Congresso.  A medida perde validade no dia 30 de setembro.

O programa Médicos pelo Brasil visa substituir gradativamente o Mais Médicos (PMM), criado em 2013, no primeiro mandato Dilma Rousseff, logo após as manifestações de rua que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. O Ministério da Saúde espera com o novo programa ofertar, até o final de 2020, 18 mil vagas para médicos brasileiros registrados em conselhos regionais de medicina ou para profissionais formados no exterior que tenham realizado o exame de revalidação do diploma, o Revalida. Esta é uma das principais diferenças da nova iniciativa em relação ao Mais Médicos, que de 2013 a 2018 trouxe ao país em torno de 20 mil médicos cubanos através de um convênio firmado com o governo daquele país e intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Os cubanos foram dispensados da exigência do Revalida, o que provocou críticas de entidades representativas da corporação médica, como a Associação Médica Brasileira. Esse ponto foi contestado em ações apresentadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelas entidades médicas. No final de 2017, no entanto, o STF autorizou a dispensa de diploma revalidado de estrangeiros no caso do PMM.

No final de 2018, ainda no governo Michel Temer, no entanto, o governo cubano optou por romper unilateralmente o convênio firmado com o Brasil, dando como justificativa o teor de declarações do então presidente eleito. Durante sua campanha, Jair Bolsonaro alegou que expulsaria do país os médicos cubanos que não tivessem o Revalida. Por conta disso, deixaram o país cerca de 8,5 mil médicos cubanos que, na ocasião, estavam vinculados ao Mais Médicos – mais da metade da força de trabalho do programa. A interrupção provocou desassistência, principalmente em municípios de menor porte e em áreas de difícil acesso, como os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e comunidades ribeirinhas.

Também no governo Temer foram abertas novos editais para reposição das vagas com médicos brasileiros, em uma seleção que contou com grande número de inscritos: 36,4 mil. No entanto, na ocasião uma reportagem do jornal Valor Econômico informou que apenas 53% dos médicos aprovados haviam se apresentado para trabalhar nos municípios escolhidos. Até maio de 2019, foram registradas 1.325 desistências do programa, segundo o Miinstério da Saúde.

Dados compilados pelo professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alcides Miranda, com base no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) mostram que, de julho de 2018 a junho de 2019, houve um decréscimo de 72,5% no total de médicos cadastrados e atuantes no Mais Médicos, incluindo brasileiros e estrangeiros.

Foi em resposta a esse quadro  que o governo federal apresentou ao Congresso a medida provisória de criação do Médicos pelo Brasil. A expectativa é de que os profissionais selecionados atuem no que a MP 890/19 chama de “locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade”: municípios pequenos, com baixa densidade demográfica e distantes de centros urbanos, os DSEIs ou comunidades ribeirinhas, e também cidades com alta proporção de pessoas cadastradas nas equipes de Saúde da Família e que recebem Bolsa Família, benefício de prestação continuada ou benefício previdenciário no valor de até dois salários mínimos.

O texto propõe ainda a instituição de uma entidade de natureza jurídica privada para a execução do programa. A Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária, ou Adaps, deve se estruturar como um Serviço Social Autônomo (SSA), modalidade geralmente associada ao chamado ‘Sistema S’, conjunto de entidades privadas paraestatais vinculadas à confederações patronais que recebem recursos públicos para prestação de serviços sociais e de formação profissional. Caso, por exemplo, do Senai, ou Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, e do Sesc, o Serviço Social do Comércio. No caso da saúde, essa modalidade é mais rara, mas existe, por exemplo, no caso da Rede Hospitalar Sarah Kubitschek.

A Adaps terá como uma atribuição a contratação, em regime CLT, dos médicos e dos tutores selecionados para atuar no programa. Os médicos com especialização em Medicina de Família e Comunidade contratados pela Adaps para atuar no programa terão remuneração que varia entre R$ 12,6 mil e R$ 31 mil. Já os que não tiverem a especialização exigida deverão fazer um curso de especialização de dois anos, concomitantemente ao desempenho de suas funções, e receberão neste período uma bolsa-formação entre R$ 12 mil e R$ 18 mil. Aos tutores médicos – que inclusive não precisam ser especialistas em Medicina de Família e Comunidade, já que a MP aceita a especialização em clínica médica como critério de seleção – caberá a supervisão do curso de especialização realizado à distância por “instituição de ensino parceira”.

Especialistas em Saúde Coletiva e representantes do Movimento Sanitário reagiram com preocupação ao texto apresentado pelo governo federal. Eles alertam que os critérios estabelecidos na MP para a adesão dos municípios ao programa deixam de fora os grandes centros urbanos, cujas áreas periféricas, em grande medida, sofrem com piores condições de saúde devidas, em parte, à dificuldade de fixação de profissionais médicos nas unidades básicas. Seus críticos também apontam para as brechas abertas pela MP para a privatização da atenção primária à saúde a partir da instituição da Adaps, entidade cujo Conselho Deliberativo terá um representante do setor privado de assistência à saúde e que, além da gestão do Médicos pelo Brasil, terá como atribuições o desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa, a prestação de serviços de atenção primária e a articulação com entidades públicas e privadas, podendo inclusive captar receitas por meio de acordos e convênios firmados com entidades privadas.


Focalização

“Essa proposta vai priorizar municípios de pequeno porte, dos grotões, os grandes vazios populacionais e que tem os piores indicadores de saúde. Entretanto, a falta de fixação de mão de obra e de trabalho profissional em saúde, notadamente de trabalho médico, acontece em regiões metropolitanas, em especial na periferia de cidades de grande porte populacional”, alerta Alcides Miranda, em entrevista ao Portal EPSJV. Ele argumenta que da maneira como foi pensado, utilizando como base apenas os municípios como parâmetro de alocação, o Médicos pelo Brasil vai deixar de fora a maior parte da população brasileira. Números do IBGE que apontam que enquanto os municípios de até dez mil habitantes correspondem a 44% das cidades do país, eles abrigam somente 6% da população; por outro lado, é nas cidades com mais de 1 milhão de habitantes que residem aproximadamente 22% dos brasileiros, embora elas correspondam a apenas 0,3% dos municípios do país.

“Eu acho que focalização é um termo bem apropriado para essa política. Focalizar com base só numa questão de porte populacional, de distância geográfica, é desconsiderar a complexidade dessa problemática. É uma saída rápida para substituir outro programa que tinha ainda limitações, mas que estava se consolidando e inclusive sendo modificado em função da dinâmica da necessidade social em saúde, e não do mercado de trabalho médico”, critica Alcides.

No artigo ‘Médicos pelo Brasil: simulacro reciclado e agenciamento empresarial’, o pesquisador da UFRGS traz mais elementos para subsidiar seu argumento. Nele, Alcides apresenta um mapa com a distribuição dos municípios brasileiros em quatro estratos distintos, definidos a partir do cruzamento de três indicadores: o IDH, ou Índice de Desenvolvimento Humano; o R1040, que mede a razão entre a renda dos 10% de habitantes mais ricos e os 40% mais pobres; e o IVS, ou Índice de Vulnerabilidade Social, calculado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O mapa aponta uma concentração nas regiões Norte e Nordeste dos municípios com piores indicadores.

O artigo traz também um mapa menor, da cidade de São Paulo, com a distribuição dos valores de IDH de cada distrito urbano, que revela que as áreas periféricas da cidade têm indicadores bem piores do que as áreas centrais. “Os municípios mais populosos possuem de dezenas a centenas de ‘âmbitos locais’, além de uma multiplicidade também extremamente desigual de determinantes e condicionantes para riscos, vulnerabilidades e desgastes (ambientais, sociais, familiares, individuais)”, escreve Alcides, concluindo em seguida: “Tal constatação desaconselha a definição de políticas públicas e estratégias institucionais, notadamente aquelas de caráter assistencial, ambientadas ou delimitadas estritamente em ‘municípios’[...] No caso do PMB, tal delimitação é mais problemática porque prioriza somente municípios de pequeno tamanho populacional e baixa densidade demográfica”.


Risco de desassistência

Maria Dalva dos Santos, secretária municipal de saúde de Embu Guaçu, na região metropolitana de São Paulo, afirma que está apreensiva com a perspectiva de desassistência na cidade a partir do fim dos contratos com os profissionais contratados pelo Mais Médicos. A cidade fica a 45 quilômetros da capital paulista, tem hoje cerca de 70 mil habitantes, e não se enquadra nos critérios definidos para adesão ao Médicos pelo Brasil. Dezesseis das 19 equipes de Saúde da Família da cidade era formadas com médicos cubanos contratados através do Mais Médicos, e outras duas tinham médicos brasileiros formados no exterior que fizeram o Revalida. Com a saída dos cubanos, em dezembro, foram contratados seis médicos brasileiros através do novo edital do Mais Médicos. “O município está sofrendo muito. Chegaram seis médicos para repor 16; e esses seis também só vão ficar por três anos e aí acabam seus contratos”, lamenta Maria Dalva. Atualmente, diz ela, oito equipes continuam funcionando, só que sem médicos. “Elas existem, com enfermeiros, técnico de enfermagem, agente comunitário, etc., mas eu já não recebo mais repasse de recurso do Ministério porque elas estão incompletas. A gente tem feito um esforço de fazer com que os médicos disponíveis façam uma cobertura uma vez por semana em cada uma das unidades sem médicos, para atender os casos prioritários”, explica.

Maria Dalva conta que, assim como muitas cidades do interior,Embu Guaçu sempre teve dificuldades para atrair médicos para trabalhar nos serviços públicos de saúde. “A gente nunca teve oportunidade de ter médico 40 horas nas unidades, por conta da dificuldade de contratação. O município fez concurso recentemente, depois da saída dos cubanos, só que ninguém se inscreveu”, lamenta. E completa: “Com o Mais Médicos havia médicos em todas as equipes, estruturamos a atenção básica como a porta de entrada no sistema de saúde. E com isso vínhamos diminuindo a mortalidade materna, as internações hospitalares por causas evitáveis. A nossa briga agora é para uma nova política de atenção básica, que inclua provimento de médicos para os municípios com o nosso perfil”.


Mais setor privado, menos controle social

A criação da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária, a Adaps, é outro foco de preocupação. Em nota divulgada poucos dias após a apresentação da MP 890/19, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP) argumentou que a análise do texto, associado ao contexto político em que a proposta emerge, sugere que a Adaps dará sustentação legal a um projeto articulado pelo governo em associação com as operadoras privadas de planos de saúde. Segundo a Rede, a contratação direta dos planos e operadoras para prestação de serviços de atenção primária poderia acontecer mediante contrato de gestão com o poder público; neste caso, com a Agência.

A nota chama atenção ainda para o fato de que o Conselho Deliberativo da Agência, de acordo com a MP, é formado por sete representantes, sendo quatro do Ministério da Saúde, um do Conselho Nacional de Secretários Saúde (Conass), um do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e um representante do setor privado, sem nenhum membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS). “Esse tipo de dissociação é fundamental para uma agenda de terceirização de responsabilidades do Estado pela assistência, entregando a prestação direta de serviços de atenção primária para planos de saúde, que vêm acumulando expertise no campo de APS nos últimos anos a partir da vinda de muitos médicos de família para o âmbito destas organizações. Para nós, é muito sintomático trocar um representante do controle social do SUS por um representante do mercado para entender para onde rumará a Política de Atenção Primária Brasileira”, alerta a nota.

Para Wladimir Pinheiro, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e integrante da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, a proposta de instituir a Adaps como um serviço social autônomo, e não sob outros modelos de gestão privada dos serviços públicos cada vez mais comuns na saúde, como as Organizações Sociais e as empresas públicas de direito privado, como a EBSERH, é um indício de que o governo pretende terceirizar ao setor privado mais do que a gestão dos serviços prestados pelo SUS.

“Acho que ela deixa clara a possibilidade de contratação de serviços privados para assistência à população, ou de planos de saúde, o que não é possível por meio das OSs, por exemplo. Eu acredito que essa seja a questão mais delicada do programa”, pontua Wladimir, para quem a escolha também reflete um desejo de se afastar do modelo das OSs por conta de sua associação com denúncias de corrupção, desvio de recursos públicos e má qualidade do atendimento. “O Serviço Social Autônomo aparece aí como uma ‘novidade’, por não ter sido muito utilizada na saúde. Mas é mais do mesmo”, opina.

Alcides Miranda também vê problemas na proposta de criação da Adaps, que para ele reforça uma tendência que já vinha acontecendo há anos, de transferência das políticas públicas do escopo do direito público para o direito privado. “Não é só uma questão de direito administrativo. Nós estamos trocando uma política pública que está pautada no direito social para uma pautada pelo direito do consumidor, com um fomento para a provisão, a produção e o consumo cada vez maior de procedimentos biomédicos”, argumenta ele, completando que não há evidências em nenhum lugar do mundo de que essa mudança tenha produzido mais eficiência no gasto social e melhoria da equidade no acesso aos serviços de saúde. “Isso só se justifica com base nos interesses de mercado na saúde. No caso brasileiro, os recursos que são repassados para essas modalidades novas são até maiores do que o Estado gastava quando tinha a responsabilidade direta, e os resultados não são melhores. Mas evidências dessa natureza não interessam”, critica. 

Para Wladimir Pinheiro, a proposta é perigosa justamente porque, em tese, atende a uma reivindicação antiga da categoria médica, que é a criação de uma carreira de Estado para os médicos no SUS. “É lógico que isso vem ao encontro da reivindicação desta categoria que é importante do ponto de vista do apoio a esse governo. Mas não dá para analisar uma política adotada por esse governo sem ver o contexto geral, que vai no sentido de restringir ao máximo os direitos trabalhistas. Não sei até que ponto propor que os médicos sejam contratados via CLT vai reverter em ganho real para os trabalhadores, uma vez que a CLT que esse governo defende é a da proposta da carteira verde-amarela, que não tem direito nenhum”, diz o professor da UFPB, que lembra ainda que a MP contempla apenas os médicos, e não os demais trabalhadores da atenção básica, que também têm reivindicado a implantação de carreiras de Estado no SUS. “E o que está sendo proposta nem é uma carreira de Estado, com estabilidade, critérios de progressão, ganho salarial. Do jeito que está pode-se mandar o trabalhador embora quando ele puder ter seu salário aumentado por tempo de serviço, por exemplo. Então é mais ‘para inglês ver’, não garante direitos para esses trabalhadores”.


Prejuízo para a formação?

Este foi um dos pontos abordados por uma proposta de emenda substitutiva elaborada pela Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares ao texto da MP 890/19. E que segundo a entidade foi em grande medida contemplada pelas emendas apresentadas por parlamentares de oposição para serem analisadas na comissão mista do Congresso.

Entre as principais alterações propostas está a criação de uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, de natureza jurídica pública, para fazer a gestão do programa, através da qual se daria a contratação de trabalhadores via Regime Jurídico Único, por concurso público. O substitutivo também traz propostas sobre um ponto que, segundo a Rede, foi totalmente deixado de lado na MP do Médicos pelo Brasil – e que de alguma forma estava presente na lei do Mais Médicos – que é a questão do apoio à residência em Medicina de Família e Comunidade. Este também era um aspecto do Mais Médicos alvo de críticas por parte das entidades representativas da categoria médica, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira. Por sinal, os únicos dois artigos da lei do Mais Médicos revogados pela MP 890/19 tratavam justamente do apoio à ampliação das vagas de residência em Medicina de Família e Comunidade.

Na nota sobre a MP 890, a Rede afirma que a ampliação das vagas de residência em Medicina de Família e Comunidade era um “eixo fundamental” do Mais Médicos. “A nova proposta não trata em nenhum momento do compromisso com a residência”, critica a entidade, que no substitutivo à MP 890 defende que, assim como em outros países com sistemas universais, o Brasil destine 40% das vagas em residência médica à especialização em Medicina de Família e Comunidade, dando como prazo para essa expansão o ano de 2029.