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Nova lei muda diretrizes para educação profissional

Pesquisador da ANPEd critica norma por “acomodação da Educação Profissional e Técnica à ‘reforma’ do Ensino Médio”
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 23/08/2023 16h29 - Atualizado em 23/08/2023 16h49

Em vigor desde o início de agosto, a Lei 14.645/23 altera as diretrizes da educação profissional e tecnológica. A nova legislação determina que União, estados e Distrito Federal devem formular e implementar uma Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica, em articulação com o Plano Nacional de Educação (PNE) em até dois anos.

A nova lei também alterou trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) por dispor sobre o cálculo da renda familiar per capita para efeitos da concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Em comunicado do Ministério da Educação (MEC), o secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, Getúlio Marques Ferreira, afirmou que as ações da Política observarão as necessidades do mundo do trabalho e que a pasta a construirá coletivamente, para ampliar o acesso, a permanência e a formação de qualidade na educação profissional e tecnológica brasileira. “Vamos envolver todas as redes ofertantes, o setor produtivo, os estudantes e as entidades representativas. A educação profissional pode e deve contribuir para o desenvolvimento sustentável e para a superação das desigualdades”, ressaltou Ferreira.

O texto legal, entretanto, é mais restrito ao indicar que a governança da política e de suas ações estarão a cargo de instância tripartite formada por gestores da educação, das instituições formadoras e do setor produtivo. A exclusão de demais atores recebeu críticas do professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador o Grupo de Pesquisa Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional, Lucas Pelissari, que afirma que a definição tripartite “restringe a participação das classes populares”. “Não está prevista a participação democrática dos estudantes no processo de administração escolar, da construção do currículo, do processo de ensino-aprendizagem que envolve a relação entre o ensino técnico, profissional e a educação geral, científica”, diz ele, que também é vice-coordenador do Grupo de Trabalho em Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

Faltam ‘concepções curriculares, epistemológicas, filosóficas’

A lei determina a integração curricular entre cursos e programas como forma de viabilizar itinerários formativos e trajetórias progressivas de formação profissional e tecnológica. Para a relatora da proposta na Câmara dos Deputados, Tábata Amaral (PSB-SP), esse seria o principal benefício da nova legislação para os estudantes: permitir a estruturação de uma trajetória de formação que integre os níveis médio e superior, sem cronogramas preestabelecidos e que permitam uma formação que seja adaptável às transformações aceleradas do mundo do trabalho e suas ocupações. “No mundo em que, daqui a dez anos, metade das profissões que existem hoje vão desaparecer e outras, que a gente sequer consegue imaginar, vão surgir, é muito importante que a educação básica, desde o início, até as formações que vêm após o ensino médio tenham prosseguimento. O que você aprende em um semestre no curso técnico, no curso profissionalizante, não é inferior, não é menos do que o que você aprende em uma faculdade, por exemplo”, afirmou Amaral à Rádio Câmara.

Os itinerários formativos dos estudantes serão baseados nos catálogos nacionais de Cursos Técnicos (CNCT) e de Cursos Superiores de Tecnologia (CNCST), ambos estabelecidos pelo MEC, embora a nova lei determine a participação ativa do setor produtivo na formação e na empregabilidade dos egressos da educação profissional e tecnológica.

Segundo Pelissari, o discurso da ‘empregabilidade’ e da responsabilização do indivíduo por problemas estruturais da economia, e por consequência, do mercado de trabalho brasileiros não é novo e provoca uma acomodação ainda maior da educação profissional e tecnológica à ‘reforma’ do Ensino Médio. Para o pesquisador, a adoção de itinerários formativos deveria considerar o acúmulo de conhecimento já produzido desde a década de 1970 pela Academia e movimentos de trabalhadores em Educação. Em sua avaliação, a redação da lei pecou ao prever o estímulo à realização contínua de estudos e de projetos inovadores que articulem a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica às necessidades do mundo do trabalho. “Não constam sequer concepções curriculares, epistemológicas, filosóficas que envolvem a formação do estudante, que precisa ser uma formação humana integral, que promova o desenvolvimento das plenas potencialidades do ser humano a partir da educação politécnica, não apenas voltada às necessidades do mundo do trabalho. Também não há previsão sobre uma investigação crítica sobre a realidade em que se inserem as escolas técnicas e de educação profissional”, observa Pelissari.

O pesquisador também critica, na nova lei, a permissão de uso da carga horária de aprendizagem profissional para a integralização de carga horária no Ensino Médio. “Até então, tínhamos o itinerário técnico e profissional como uma possibilidade, e isso já era uma fragmentação da formação técnica e profissional em relação a formação geral .Agora, isso foi aprofundado com essa fragmentação, a possibilidade de troca de cursos robustos e com conhecimento científico por iniciativas empresariais de treinamento que, em alguns casos, são apenas momentos para as empresas veicularem seus conteúdos de defesa da redução do custo de trabalho e maximização dos lucros”, diz o professor, que defende a participação de profissionais especializados, que tenham vínculo orgânico com as escolas e poder de incidir na definição de critérios e parâmetros da carga horária da aprendizagem ou de obtenção de conhecimento fora do ambiente escolar para a contagem de horas e conteúdos que permitirão a integralização curricular dos alunos. “Esses critérios e parâmetros precisam ser ditados pela escola e não pelo mercado de trabalho. Essa necessidade ganha importância ainda maior devido ao fato de a nova lei ter alterado a LDB ao reforçar a ideia de itinerário formativo”, destaca Pelissari.

Aumento da oferta de vagas via setor público

A nova lei também prevê o fomento à expansão da oferta de educação profissional e tecnológica em instituições públicas e privadas, considerando as necessidades regionais. De acordo com a pesquisa “Educação Em Resumo”, realizada em 2021 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no Brasil, apenas 9% dos alunos do ensino médio fazem um curso técnico ou de qualificação. Na União Europeia, esse percentual é de 43%; no Chile, 29%; e na Colômbia, 24%.

O setor produtivo defende a expansão da educação profissional e tecnológica no Brasil. Pesquisa realizada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e pelo Serviço Social da Indústria (Sesi), em abril de 2023, com 1.001 executivos de pequenas, médias e grandes indústrias, e divulgada uma semana antes da Lei 14.645/23 ser promulgada revela, na visão dos entrevistados, que o “ingresso mais rápido no mercado de trabalho e formação alinhada às necessidades do setor produtivo estão entre as principais vantagens” do ensino técnico, que “deve receber mais atenção dos jovens e ser uma das prioridades do governo”.

Para o Senai, as matrículas na educação profissional “crescem em ritmo lento, distante da meta do Plano Nacional de Educação”. O setor produtivo, que oferta vagas através dos serviços nacionais de aprendizagem por setor (SENAI atende indústria; SENAC, o comércio; SENAR, a agricultura e pecuária; SENAT, transporte), tem especial interesse na educação profissional e tecnológica por considerar que a mesma “prepara melhor para o mercado de trabalho” (45% das respostas da pesquisa), possui “cursos mais focados” (28%), “mais práticos” (22%), com “boa aceitação no mercado de trabalho” (18%), promove “mais conhecimento/habilidades” (17%) e facilita o “começo na carreira profissional” (16%).

O pesquisador da ANPEd, por sua vez, defende que a expansão da oferta de vagas deve ocorrer através da rede pública. “A nova lei fala em ‘instituições públicas e privadas’ sem qualquer distinção. Precisamos privilegiar a oferta não apenas nos institutos federais, mas também nas escolas estaduais, tendo como referência essa formação humana integral para todo o Ensino Médio nacional”, defende.

Para Pelissari, um ponto positivo da nova lei é a indicação de atuação conjunta entre a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e as secretarias estaduais de educação ou os órgãos equivalentes responsáveis pela formação profissional e tecnológica. “Essa articulação é urgente para a construção do próximo Plano Nacional de Educação (PNE)”, aponta ele, que acrescenta: “O principal, se não único avanço dessa nova legislação é justamente a indicação da necessidade de formulação e implementação de uma política nacional de ensino profissional e técnico. É essa previsão legal que pode nos resguardar, no sentido de alguma autonomia, nós que fazemos parte das instituições e do próprio campo que defende uma concepção de ensino profissional e técnico centrado na educação politécnica, de uma formação humana integral. Disputar o processo de elaboração dessa política nacional, com todos os limites que a lei apresenta, demanda a necessidade de focar na construção do PNE”.

Pelissari considera ainda que a nova lei aprofunda o processo de descaracterização do ensino profisisonal e técnico. “O desafio que se coloca é aplicar a lei a partir do conjunto de orientações de uma política, a partir das necessidades de quem tem na educação profissional e tecnológica um instrumento de ampliação do seu direito à Educação, partindo de uma perspectiva democrática e voltada às necessidades das classes populares”, conclui o pesquisador.