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Novo Plano Nacional de Educação: como avançar nas vitórias e reverter as derrotas?

Especialistas promovem balanço das propostas do PNE atual e propõem o que a Conae deve mudar, retirar e acrescentar na nova lei
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 24/01/2024 13h19 - Atualizado em 24/01/2024 13h19

"Eu considero o PNE uma grande vitória”. A frase é de Marcelo Lima, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), mas afirmações semelhantes foram feitas por vários outros entrevistados desta reportagem. De fato, houve quem lamentasse a versão final da lei 13.005/2014, aprovada no Congresso naquele longínquo ano de 2014, mas a maioria das entidades e movimentos sociais da área considera que o texto do Plano Nacional de Educação que vence agora em 2024 tem mais pontos positivos do que negativos. Unânime, no entanto, é o reconhecimento de que essa vitória veio embalada em algumas derrotas, mais ou menos estruturais – que a Conferência Nacional de Educação (Conae) extraordinária que vai discutir o próximo PNE tem a tarefa de tentar corrigir.

A expectativa era que o PNE 2014-2024 tivesse sido uma bússola que orientasse os rumos da Educação brasileira. Mas, como quase todo mundo sabe, dez anos depois, das 20 metas e inúmeras estratégias que a lei contém, pouca coisa foi posta em prática. A começar pelo monitoramento feito pelo próprio Inep, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, ligado ao Ministério da Educação, foram muitos os estudos que denunciaram o descumprimento da maior parte do Plano – e é claro que a denúncia desse descompromisso e a repactuação de metas e indicadores é parte do que se espera da Conae 2024. Mas a contribuição que esta reportagem pretende dar ao maior evento de participação social do campo da Educação vai em outra direção: em vez de discutir a ausência dos resultados (que já se tornaram notícia velha), a ideia é ouvir dos especialistas uma análise crítica das próprias propostas que foram (ou não) formuladas naquele momento.

Passados dez anos, se a construção do PNE fosse hoje, e é, que propostas e concepções da lei atual o campo progressista da Educação escolheria manter, excluir ou modificar? Que novidades surgiram ao longo desta década que precisam ser contempladas na lei? Que áreas dentre as que ficaram de fora do Plano atual deveriam agora constar do novo texto? Nas brechas das derrotas que acolheu, que pontos do PNE fomentaram ou ajudaram a justificar políticas regressivas no campo da Educação, a exemplo da Reforma do Ensino Médio? Priorizando o debate sobre Educação Profissional, Educação de Jovens e Adultos, Educação Básica com foco no Ensino Médio, ensino superior, valorização dos profissionais e financiamento, essas são as principais perguntas que esta matéria vai tentar responder.

Um pouco de História: quem ganhou e quem perdeu

A História nos lembra que nem tudo depende do que será decidido na Conferência. Corria o ano de 2010 quando, tal como agora, a sociedade civil organizada se preparava para uma jornada de debates e proposições sobre os rumos das políticas educacionais do país – era a 1ª Conferência Nacional de Educação, que, entre outros pontos, discutiria as bases de um novo PNE. Na verdade, uma parte dessas formulações já vinha desde a Conferência Nacional de Educação Básica, que aconteceu em 2008. Naquele que era o último ano dos governos Lula, a 1ª Conae aconteceu em abril, mas o Executivo só entregou o Projeto de Lei que instituiria o novo PNE ao Congresso em novembro, depois de confirmada a eleição da futura presidente Dilma Rousseff. Foi um certo balde de água fria. “O texto não seguiu as recomendações da Conferência”, conta Daniel Cara, professor da Universidade de São Paulo (USP), que participou ativamente das negociações em torno do PNE atual, à época como coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. E foi aí que a ‘briga’ começou.

O espaço principal da disputa se deslocou para o Parlamento. Uma das estratégias, segundo Cara, foi distribuir o conteúdo da 1ª Conae em Emendas Parlamentares que iam sendo negociadas pelas diversas entidades no Congresso – ao todo, houve quase 3 mil emendas na Câmara e mais de 300 no Senado. Além do projeto original do governo, vários outros circularam nesse período. Os movimentos que reivindicavam a essência do que tinha sido proposto nas Conferências passaram a defender a versão  do PNE da Câmara contra a do governo. No final, o texto acabou sendo aprovado depois de modificações no Senado e uma segunda rodada de debates também na Câmara, num processo de tramitação que durou quase quatro anos. A essa altura, já terminava (enfraquecido) o primeiro governo Dilma.

O fim dessa história todo mundo conhece: a presidente se reelegeu por uma pequena margem de votos, iniciou um segundo mandato com turbulências à direita e à esquerda, e foi vítima de um processo de impeachment que abriu um novo ciclo político no país. “Os contextos macropolíticos de aprovação e implementação do PNE são muito distintos”, analisa Cara, que completa: “A gente venceu mas não levou”.

Para se ter mais clareza sobre o que vem pela frente, a partir da Conae 2024, é importante entender quem estava disputando o quê naquele momento. Daniel Cara não tem dúvida de que a maior oposição às concepções do Plano que expressavam os resultados das conferências vinha do próprio governo – que, capitaneado pelo então ministro da Educação Fernando Haddad, combatia, principalmente, a proposta de investimento de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) em Educação, que era o ponto mais importante de luta para os militantes da área. Mas, com influência maior ou menor, no Congresso ou no Executivo, corriam por fora interesses ligados principalmente às instituições privadas de Educação, incluindo o Sistema S, e às fundações empresariais. E todos eles, de alguma forma, deixaram sua marca no PNE atual.

A derrota maior: público e privado no PNE atual

Contraditoriamente, a maior dessas derrotas está associada àquela que foi também a maior conquista do PNE 2014: a meta 20, que estabelece a ampliação do financiamento da Educação até 10% do PIB. “Pela primeira vez o Congresso Nacional brasileiro determinou que 10% das riquezas têm que ser investidas em Educação”, resume Daniel Cara, ressaltando a importância do feito. Mas na última hora veio um contra-ataque. Embora a meta aprovada diga explicitamente que a ampliação do investimento público deve ser em “educação pública”, o parágrafo 4º do artigo 5º da lei 13.005/2014 abre caminho para as parcerias público-privadas na Educação ao definir que “público”, nesse caso, engloba também “recursos aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no Brasil e no exterior, os subsídios concedidos em programas de financiamento estudantil e o financiamento de creches, pré-escolas e de educação especial”. “Na prática, isso significa autorizar FIES [Financiamento Estudantil], Prouni [Programa Universidade para Todos] e conveniamento de creche”, resume Daniel Cara. 

Esse foi um ponto de inflexão em relação à luta pelo PNE. Houve quem achasse que se tratava de um percalço no caminho das disputas daquele momento, mas houve também quem considerasse que essa mudança invalidou qualquer conquista. Um exemplo dessa postura menos otimista pode ser lida na introdução de uma publicação de “notas críticas” sobre o PNE lançada pelo Colemarx, o Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na análise, o resultado final do PNE é apontado como “uma aparente vitória que, entretanto, esconde o Cavalo de Troia da mercantilização generalizada da educação brasileira”, já que insere no texto da lei uma ressignificação do sentido do público que passa a incluir as parcerias com o setor privado. “Isso modificou todo o sentido do Plano Nacional de Educação”, opina Raquel Dias, 2ª vice-presidente do Andes-SN. E, argumentando que a avaliação de um instrumento como o PNE não deve ser feita meta a meta, simplesmente elencando “o que se salva ou não”, ela conclui: “Na disputa do fundo público, a iniciativa privada ganhou a batalha”.

A verdade é que os programas que apostaram numa ampliação do acesso à Educação por meio da iniciativa privada financiada com recursos públicos já eram não apenas uma realidade como uma marca dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Seria possível superar isso? Na avaliação de Nalu Farenzena, 1ª vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), há um meio de caminho possível entre a realização imediata das políticas e o projeto de longo prazo que um instrumento como o PNE deve expressar. Ela lembra que o Brasil ainda tem muitos recursos públicos financiando o setor privado em vários segmentos, inclusive com dinheiro do Fundeb, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação. Por isso, acredita que seja difícil “estancar imediatamente” esse processo. Mas ela também entende que os textos dos PNEs (o atual e o que virá) devem seguir o preceito estabelecido pela Constituição Federal, de garantir a exclusividade de recursos públicos para a Educação pública, comprometendo-se com a ampliação da oferta pública e tratando a participação do setor privado como “episódica”. “A minha posição é a que está já colocada no documento de referência [da Conae 2024], que é de diminuição do volume de recursos públicos aplicados no setor privado”, diz. E, referindo-se ao conteúdo do que hoje é a meta 20 do PNE atual, completa: “E se há essa perspectiva ou projeção de diminuição, a meta de gasto em Educação sobre o Produto Interno Bruto deveria ser de aplicação no ensino público e não de perpetuar a subvenção pública ao setor privado”.

Mas se a maior parte do PNE atual não foi cumprida – e isso inclui a ampliação do financiamento para 10% do PIB –, essa armadilha da lei em nome do setor privado teve consequências concretas? “Cada vez que essas políticas [de parceria público-privada] não são interditadas, elas aumentam assustadoramente”, avalia Raquel Dias, que completa: “Então, sim, as políticas privatistas se avolumaram, a relação com todas as fundações privadas se avolumou”.

Ao contrário da posição mais pessimista do Andes-SN, Marcelo Lima reconhece, elogiosamente, que “o PNE aponta numa direção que é sempre de ampliação da oferta pública”. Mas ele pondera que, de fato, o texto da lei atual “não diz que tem que se limitar a expansão privada”. E o problema, analisa, é que essa omissão pode alimentar a ilusão de que o setor privado não é um “obstáculo à expansão pública”. “Mas na prática é, porque o setor privado usa o recurso público para ocupar o espaço que o setor público não ocupa”, explica. O professor vai além, argumentando que, se a garantia de financiamento é estruturante para todas as políticas de Educação, o não cumprimento da meta 20 impede a execução de quase todas as outras. Logo, “toda vez que você trava o PNE, que está muito calcado na ampliação da oferta pública, você está ampliando espaço para o setor privado”.

As derrotas em bloco

Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e coordenador do Fórum Nacional de Educação (FNE), responsável pela organização da Conae, considera que, mesmo com prejuízos pontuais aqui e ali, 17 das 20 metas do PNE atual contemplam as principais “reivindicações históricas” dos movimentos sociais da Educação. “Perdemos as metas 4, 19 e 7”, lamenta, ressaltando que esta última é simplesmente “desastrosa”.

O fomento a parcerias público-privadas na Educação Especial está fortemente presente nas três últimas estratégias da meta 4, que falam em “promover parcerias com instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, conveniadas com o poder público” para “apoio ao atendimento integral”, oferta de formação e material didático e atuação junto às famílias. Isso sem contar a primeira estratégia, que contabiliza as matrículas dessas entidades para o cálculo de recursos a serem recebidos pelo Fundeb. “O Estado delega para as ONGs [Organizações Não-Governamentais] fazer Educação Especial”, critica Heleno Araújo.

Já a meta 19 traz questões relativas à gestão democrática na Educação. A principal crítica é que o texto associa a gestão democrática – que é uma reivindicação histórica dos movimentos da área – a “critérios técnicos de mérito e desempenho”. Se isso não fosse o bastante, a primeira estratégia dá consequência a essa concepção quando estabelece que a União deve priorizar no repasse de recursos de transferências voluntárias os estados e municípios que criem legislação específica para seguir essa orientação. E essa mesma redação fala em “nomeação de diretores”, na contramão da (também histórica) luta por eleições diretas nas escolas públicas.

Por fim, a meta 7 fala de “fomentar a qualidade da educação básica”, estabelecendo a nota do Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, como parâmetro. Internamente, nas estratégias, há também uma referência da média que o país deveria atingir no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). “Nós não aceitamos que o Ideb avalie a Educação Básica. Uma prova de português e uma prova de matemática não avaliam nada”, critica Araújo, acrescentando ainda, de forma nada elogiosa, que o Pisa foi concebido por um “organismo da Economia” [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE] e não da Educação.

Em relação à meta 7, o presidente da CNTE lembra que o que já era ruim no projeto original ficou pior durante a tramitação no Congresso com a inclusão da última estratégia (7.36), que tenta vincular o salário dos professores ao desempenho dos estudantes no Ideb. O destaque se justifica porque, segundo ele, essa concepção vem sendo implementada na prática, por meio de políticas que atrelam incentivos como, por exemplo, o 14º salário, à nota do Ideb. E, de acordo com o dirigente, além das próprias limitações do indicador, esse tipo de medida gera outros desvios, como a manipulação dos dados de avaliação dos alunos. “Essa não é a sociedade que a gente quer”, diz.

E a que interesses essa proposta atende? Segundo Heleno Araújo, nesse tema a disputa (perdida) era com as fundações empresariais com atuação na área. Embora concorde que a concepção que prevaleceu na meta 7 seja, de fato, a que é defendida por essas entidades, Daniel Cara sustenta que elas são expressão de um “pensamento neoliberal na Educação” que, na época da disputa do PNE atual no Congresso, era vocalizada e apoiada pelo então ministro [da Educação] Fernando Haddad. “O embate foi entre nós e uma ala do MEC”, conta. Não por acaso, essa é a meta com o maior número de estratégias – 36, ao todo –, que refletem uma disputa mais acirrada no corpo do texto. O resultado é que, ao lado de estratégias inteiramente ancoradas em concepções de avaliação e mérito que pesquisadores, entidades e movimento sociais da Educação criticam há muito tempo, encontram-se propostas defendidas por esses mesmos movimentos, como garantir atenção à saúde física e mental dos profissionais de Educação, fortalecer o controle social na área e valorizar as características culturais próprias nos currículos das escolas do campo, de comunidades indígenas e quilombolas. “A gente colocou contradições à própria meta”, ressalta Daniel Cara.

Tem Reforma neoliberal da Educação no PNE?

Embora isso diga respeito a uma dimensão da luta política que ultrapassa os limites de uma Conferência de Educação, nesse momento de redesenhar a bússola que deve orientar as prioridades nessa área pela próxima década talvez seja importante estar atentos aos usos que se pode fazer das proposições defendidas num instrumento como o PNE. Daniel Cara conta, por exemplo, que no debate parlamentar inicial, a Reforma do Ensino Médio foi justificada como uma tentativa do governo de responder às primeiras estratégias da meta 3 do Plano Nacional de Educação atual. O mesmo argumento consta do relatório do deputado Mendonça Filho ao PL 5.230/2023, que modifica a Reforma. Trata-se da meta que determina a universalização do “atendimento escolar” para jovens, ampliando a taxa de matrículas no Ensino Médio. E, de fato, a primeira estratégia dessa meta fala num “programa nacional de renovação do ensino médio”, incentivando “práticas pedagógicas com abordagens interdisciplinares” e currículos que organizem “conteúdos obrigatórios e eletivos”, “de maneira flexível”. “Mas [essas estratégias] não dizem nada sobre uma reforma neoliberal do Ensino Médio”, contesta o ex-coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, reconhecendo, no entanto, que o texto contém termos que podem ser usados para essa lógica de reforma educacional. Mas ele argumenta que, embora essas contradições, que são inerentes a qualquer lei, sirvam como argumento para políticas regressivas, elas não são a razão de retrocessos como a Reforma do Ensino Médio (leia mais na pág. 12). “A Reforma do Ensino Médio é uma estratégia para fazer a política educacional que cabe abaixo do teto dos gastos públicos federais e que afirma uma função social para a escola e para a Educação, que é formar o indivíduo neoliberal. Agora, com ou sem PNE isso ocorreria. É ingenuidade achar que o PNE reforça ou contradiz [essa intenção]”, defende.

Processo semelhante se deu em relação à Educação Profissional, cuja meta principal no PNE vigente (nº 11) determina que o país deve triplicar as matrículas de cursos técnicos, sendo pelo menos metade dessa oferta na rede pública. Como várias outras, dez anos depois não se está nem próximo de cumprir a proposta. Mas essa dívida histórica também serviu de argumento para justificar a mesma Reforma do Ensino Médio, especificamente no que diz respeito ao itinerário formativo 5, de formação profissional. O relatório do último balanço anual do PNE desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, de 2022, é preciso ao denunciar a fragilidade dessa resposta: “A reforma do ensino médio trouxe, com a inclusão da formação técnica e profissional entre os possíveis ‘itinerários formativos’ para a etapa, a possibilidade de uma expansão acelerada de matrículas que se aproxime do objetivo estabelecido na meta 11. No entanto, essa expansão vem acompanhada de sérias dúvidas em relação à manutenção da qualidade prevista na mesma meta, uma vez que a reforma trouxe, além do formato questionável dos itinerários, a possibilidade de profissionais sem formação docente lecionarem disciplinas do itinerário profissionalizante e a possibilidade de oferecimento de até 30% do ensino médio no formato de educação a distância (EaD). Esta última, para além de questões relacionadas à qualidade, mostrou enormes limitações relacionadas ao próprio acesso – e, especialmente, à equidade de acesso – durante a pandemia causada pelo novo coronavírus que emergiu em 2019”.

O que se deu, de acordo com Marcelo Lima, foi uma tentativa de atalho: “Itinerário não é Ensino Médio Integrado”, contesta. Por isso, ele defende que o que os “congressistas da Conae e os legisladores” têm que garantir em relação ao novo PNE é “que se mantenha o conceito de Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada ao Ensino Médio” que está presente no texto atual, sem espaço para palavras como “itinerário” ou “percurso” [de aprendizagem]. “A Reforma do Ensino Médio é contrária à meta que diz que você tem que ampliar o Ensino Médio integrado ao Ensino Técnico. Ela só não diz assim: ‘revoga-se a meta tal do PNE’ porque não pode fazer isso”, denuncia.

A questão agora é se a Conferência Nacional de Educação vai dizer ‘revoga-se a Reforma do Ensino Médio’. O documento-base que orientou as discussões nas etapas estaduais e municipais não traz essa proposta explicitamente, embora sugira um conjunto de medidas que vão na contramão do Novo Ensino Médio. Não por acaso, num documento de contribuições ao texto de referência da Conae que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação produziu, uma das propostas de mudança inseridas em vários trechos é exatamente a redação clara sobre a necessidade de se revogar a Lei 13.415/2017, “conforme pautado pelo Fórum Nacional de Educação”.

Outros usos e abusos do texto do PNE

Outra contradição prática justificada pelo PNE atual diz respeito à “desastrosa” meta 7. Vários estudos têm identificado um processo de fechamento de escolas noturnas e do campo em algumas redes estaduais – São Paulo talvez seja o exemplo mais mencionado. Muitas vezes, isso se dá a partir de um processo de nucleação, sob o argumento da economicidade que se gera ao juntar mais estudantes no mesmo espaço. Independentemente das razões anunciadas, no entanto, o resultado tem sido o abandono da escola por uma parcela desses estudantes. “Quando diminui a capilaridade da rede escolar, você coloca o aluno mais longe fisicamente da escola e a tendência dele é abandonar”, explica Lima. A relação de tudo isso com a meta 7 é que, segundo a interpretação de vários desses pesquisadores, uma das razões desse movimento é a tentativa de ‘se livrar’ dos estudantes mais ‘frágeis’ visando melhorar a nota da rede no Ideb. “Muitos governos conseguiram aumentar o seu Ideb sem melhorar o salário dos professores, sem melhorar a formação dos professores... Sabe como eles fizeram? Fecharam turmas”, diz Lima, apontando como, nesse caso, a existência de uma meta que define a qualidade da Educação a partir desse indicador, e ainda mais vinculando essa avaliação à oferta de “assistência técnica financeira” às redes de ensino, acaba entrando em contradição com as outras metas do PNE que incentivam a ampliação de matrículas.

A pesquisadora Maria Clara di Pierro, da USP, lembra ainda outra iniciativa que tem sido responsável pelo fechamento de turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e que acaba entrando em contradição com outras metas do PNE atual. A meta 6 estabelece que pelo menos 50% das escolas públicas e 25% dos alunos da Educação Básica deveriam ser contemplados com oferta de Educação em Tempo Integral. Mas na vida real, fora do texto da lei, isso muitas vezes tem sido feito às custas dos estudantes de EJA. De acordo com di Pierro, um  exemplo é que, embora esteja sendo flexibilizado neste momento, o primeiro modelo dessa política no estado de São Paulo levou as escolas em Tempo Integral a fecharem à noite, reduzindo matrículas. “Em tese, você pode ter uma escola de tempo integral que acolha a EJA, diurna ou noturna. Não seriam incompatíveis. O que é incompatível é essa visão preconceituosa que não incorporou a Educação de Jovens e Adultos como um direito a que o sistema público de ensino tem que responder”, opina.

Educação Profissional no PNE

A redação da meta 11, que trata mais especificamente de Educação Profissional, é um dos exemplos do que Marcelo Lima destaca como uma prioridade do PNE atual em fomentar a oferta pública. Ao propor triplicar as matrículas de cursos técnicos, o texto estabelece também que metade delas deve se dar na rede pública. Quando se olham as estratégias, no entanto, aparecem as contradições, resultado das disputas em torno da lei. “A meta não estabeleceu, mas as estratégias permitem as chamadas parcerias [público-privadas]”, reconhece Marcelo Lima.

Lá estão presentes as orientações de fortalecimento da Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) e de expansão da oferta dessa modalidade de ensino nas redes estaduais, mas elas são acompanhadas, logo na sequência, por uma série de propostas que vão na contramão do que os movimentos sociais da Educação vêm defendendo. Uma delas é o incentivo à Educação Profissional à distância. “O setor privado opera muito em EaD”, diz Lima, explicando que essa é uma forma de baratear a formação. E critica: “Educação Profissional à distância é uma contradição, porque o que mais caracteriza a Educação Profissional é o processo concreto de realização de trabalho”. Outra estratégia fala em “ampliação da oferta de matrículas” gratuitas por “entidades sem fins lucrativos de atendimento à pessoa com deficiência” e entidades privadas “vinculadas ao sistema sindical” – que atendem principalmente às demandas do Sistema S. Completa esse quadro de interesses privatistas presentes na meta 11 a proposta de “expandir a oferta de financiamento estudantil à educação profissional técnica de nível médio oferecida em instituições privadas de educação superior”. “A estratégia que a gente deve ter é fortalecer e ampliar a participação pública na oferta de todos os níveis, modalidades e etapas, indistintamente”, defende Lima.

Além dessa prioridade, o professor acredita que, em relação à Educação Profissional, o mais importante é que as proposições da Conae 2024 estabeleçam caminhos de fortalecer o Ensino Médio integrado à Educação Profissional nas redes estaduais. “A Rede Federal deve continuar se expandindo, mas tem um teto. As redes estaduais precisam qualificar o espaço escolar de modo tal que a Educação Profissional, os laboratórios e as oficinas se tornem espaços naturalmente ocupados. A nossa escola média tem sala de aula, quadra, biblioteca, banheiro, cozinha, refeitório. Isso é natural numa escola razoavelmente estruturada. Mas a gente não acha necessariamente laboratório de física, química, biologia, oficinas de usinagem, mecânica, elétrica”, ilustra, defendendo que isso é fundamental, inclusive, para tornar o Ensino Médio mais atraente. Mas ele faz questão de ressaltar que essa análise em nada se aproxima da concepção da proposta da Reforma do Ensino Médio. “Eu não estou falando que o ensino técnico vai salvar o Ensino Médio. Estou falando que o ensino técnico é um ingrediente necessário à formação do jovem que está passando pelo Ensino Médio. Mas não é mais importante do que aprender língua portuguesa, história... É esse conjunto que dá à vida escolar a riqueza que ela deve ter para que o aluno ali permaneça”, argumenta, defendendo que o PNE precisa pautar a Educação Profissional articulada com a formação propedêutica.

O foco da EJA no PNE

A Educação Profissional está presente diretamente também na meta 10 do PNE atual, que propõe que pelo menos 25% da EJA no Brasil passe a ser oferecida de forma integrada, tanto com cursos técnicos, no caso do Ensino Médio, quanto à Formação Inicial e Continuada (FIC) no caso do Ensino Fundamental. “Essa foi um fracasso grande porque, a meu ver, estava mal desenhada”, opina Maria Clara di Pierro, argumentando que, diante do cenário concreto daquele momento – apenas 2% das matrículas se davam nessa modalidade – e do alto custo dessa mudança, mais do que ambiciosa, essa proposta foi “irrealista”. E a pesquisadora defende ainda que é preciso relativizar essa “expectativa de que as pessoas querem fazer Educação Profissional”. “Existe um mito de que a Educação de Jovens e Adultos se tornará mais atrativa se conseguir articular a formação geral e a formação profissional. Porque o suposto é de que é um público que já está inserido no mercado de trabalho, que tem no trabalho a centralidade da sua vida e que, portanto, se você oferecer uma possibilidade de qualificação que seria um passo para a melhoria da empregabilidade e da renda, isso tornaria a EJA mais atrativa. As pesquisas e as práticas não confirmam totalmente isso”, explica, argumentando que muitas vezes é difícil para adultos conciliarem a vida com uma jornada escolar mais extensa. “Sem bolsa de estudos é praticamente impossível”, alerta.

Embora considere a EJA integrada à Educação Profissional necessária e defenda que ela deve vir sempre acompanhada de medidas que garantam a permanência dos estudantes, di Pierro sustenta que, como política pública, essa não pode ser a única alternativa. “Você tem subgrupos que têm outras expectativas, que querem fazer nível superior, que querem simplesmente aprofundar seus conhecimentos, que querem um certificado para poder fazer concurso, para ler a Bíblia... Você tem outras demandas. A elevação de escolaridade é um direito garantido na Constituição e tem que haver investimento nessa formação geral também”, diz.

A professora avalia que, no texto do PNE atual, a meta mais importante para a Educação de Jovens e Adultos é a 8, que determina elevar para no mínimo 12 anos a escolaridade média da população de 18 a 29 anos de idade. “Essa eu acho que é a grande meta de equidade que impactaria a Educação de Jovens e Adultos, particularmente os subgrupos mais jovens, que são os que mais frequentam a EJA”, opina, destacando o fato de o texto realçar as populações do campo e das regiões mais pobres do país, além de estabelecer que se iguale a escolaridade de negros e brancos.

Diferente de outros temas e segmentos contemplados no PNE atual, a professora não identifica ambiguidades nem armadilhas nas estratégias que compõem a meta 9, que trata mais diretamente da erradicação do analfabetismo absoluto e redução do analfabetismo funcional. Mas ela denuncia ausências. Uma “debilidade” do texto da lei que deveria ser corrigida é, na sua avaliação, o fato de não haver proposta de expansão das matrículas de EJA, tal como existe em relação à Educação Básica em geral, Educação Profissional e Ensino Superior. Isso num cenário de redução significativa das matrículas nesse segmento. “Seria desejável ter metas de ampliação das vagas. Mas não pode ficar só no discurso. Que venham metas cabíveis para as quais se [garantam] recursos compatíveis”, sugere.

Em relação ao PNE em vigor, di Pierro também lamenta a falta de propostas que fortalecessem o financiamento da EJA. A professora lembra que, quando o Plano foi aprovado, em 2014, o Fundeb ainda usava um fator de ponderação “negativo” (0,8) para a Educação de Jovens e Adultos, o que, como ela explica, significava que o gestor que optasse por investir nesse segmento teria os mesmos custos com uma retribuição – em relação aos recursos do Fundo – menor. “Era, na verdade, um desincentivo”, diz. Com a aprovação da lei do Novo Fundeb, em 2020, essa distorção foi parcialmente resolvida: o fator de ponderação subiu, mas sem diferenciar recursos para os ensinos Fundamental e Médio na modalidade de Jovens e Adultos, como acontece no ensino ‘regular’. Esse ajuste, portanto, é uma das expectativas em relação ao próximo PNE. Na verdade, para di Pierro, a garantia de incentivos financeiros para melhorar a oferta de EJA deve ser uma consequência – ou uma estratégia, nos moldes do PNE atual – de uma meta que proponha ampliar as matrículas desse segmento.

Outra ausência que a professora identifica é a uma referência específica à formação de professores para a Educação de Jovens e Adultos. Ela diz não ter certeza se o primeiro e principal instrumento para dar conta desse problema é o PNE, mas o fato é que é preciso criar estratégias para pautar essa especificidade. O argumento da pesquisadora é simples: praticamente todos os avanços que a Educação viveu, como a expansão da Educação Infantil, a inclusão de pessoas com deficiência e mesmo a inserção de conteúdos de história e cultura afrobrasileiras no currículo, promoveram mudanças nas diretrizes de formação docente. Todos, menos a garantia do direito dos adultos à Educação. “Os balanços mostram que nem todos os cursos de formação de professores, seja na Pedagogia e menos ainda nas licenciaturas, abordam essa temática”, lamenta. Entre os “esquecimentos” que ela identifica no texto do PNE atual em relação à EJA, estão ainda referências às pessoas privadas de liberdade e à Educação de idosos.

Ensino superior no PNE

As metas que tratam mais diretamente sobre Ensino Superior (12 e 13) mantêm a orientação de expansão de matrículas na rede pública – pelo menos 40% –, mas, como todo o Plano, contêm várias estratégias que reforçam as políticas de oferta de vagas na rede privada com recursos governamentais que já estavam em curso, como Fies e Prouni. “Eu acho que além de repactuar a meta, tem que ter estratégias de enfrentamento à privatização no setor da Educação Superior”, diz Raquel Dias, do Andes-SN. Mas ela defende que, para que essa meta avance no sentido de reforço do público que o PNE quer dar, é preciso desenhar no novo Plano estratégias de investimento, valorização e recomposição do orçamento das universidades públicas. “Nenhuma universidade pública foi criada no governo Bolsonaro”, ilustra.

Outra prioridade que mobiliza esse segmento e que Dias defende que conste do novo PNE como forma de fortalecer a democracia nas instituições de Ensino Superior é o fim do mecanismo da listra tríplice, que delega ao MEC o poder de escolher os reitores entre três nomes enviados pelas universidades, sem a obrigatoriedade de respeitar o resultado da eleição direta. Embora seja pautada há muito tempo, essa discussão ganhou corpo no último governo, do ex-presidente Jair Bolsonaro, quando multiplicaram-se as indicações que não respeitavam a escolha da comunidade universitária.

A vice-presidente do Andes chama atenção ainda para a importância de tornar mais precisa a meta 13, que trata da ampliação do número de mestres e doutores entre os professores universitários. Isso porque o texto estabelece um percentual de mestres e doutores que se deve atingir entre os docentes no “conjunto do sistema de educação superior”, sem diferenciar as instituições públicas e privadas. Segundo Dias, a alta quantidade de mestres e doutores nas universidades públicas puxa os indicadores da meta toda para cima, invisibilizando o fato de que muitas instituições privadas continuam não tendo professores com essa qualificação em número suficiente.

Não apenas no Ensino Superior, mas talvez com impacto maior nesse segmento, o novo PNE precisa também dar conta da recente atualização da Lei de Cotas, que tornou essa política mais inclusiva, ampliando o acesso. “Acho que no Plano Nacional de Educação tem que ter um avanço para uma política de ações afirmativas mais ativa. Porque hoje ela garante vaga, mas não garante a permanência do aluno”, opina Daniel Cara.

Valorização dos profissionais

Como a maior parte do PNE atual, as metas que dizem respeito à valorização dos profissionais da Educação (16 a 18) também não foram cumpridas, ainda que alguns poucos indicadores apontem pequenos avanços. Mas, de acordo com o presidente da CNTE, Heleno Araújo, os elementos mais centrais devem e precisam se repetir na próxima proposta de Plano a ser elaborada pela Conae porque eles apenas reforçam o que já está estabelecido pela Constituição e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) mas nunca foi obedecido. Um dos principais exemplos é o Plano de Carreira, Cargos e Salários para os profissionais da Educação – que vai além do magistério – tendo como base o piso salarial. “Temos que avançar nessa política. O Plano tem que cumprir esse papel”, diz.

Essa é uma luta histórica dos movimentos sociais e sindicais da Educação. Mas outras propostas relativas à valorização profissional com menor potencial de mobilização também merecem atenção no momento de se formular um novo PNE. Um exemplo são as metas 15 e 16, que tratam da formação desses profissionais. Nem a formação inicial para os profissionais em geral nem a formação continuada para os professores foram alcançadas, ambas propostas no PNE atual, foram cumpridas, mas o importante aqui é chamar atenção para a forma como se perseguiu a meta, já que, segundo o presidente da CNTE e o próprio texto do documento-base que orientou as conferências estaduais e municipais antes da Conae 2024, o pouco crescimento que houve nas licenciaturas como parte da formação dos professores, por exemplo, se deu por EaD e “de forma precária”.

Sustentando tudo, o financiamento

A garantia de investimento de 10% do PIB na Educação foi a grande batalha travada na tramitação do PNE 2014-2024. Independentemente da avaliação sobre se a redação final foi uma vitória ou uma derrota – por autorizar que parte desses recursos vá para a iniciativa privada –, o fato é que a meta 20 simplesmente não foi cumprida. E é unânime entre os entrevistados a compreensão de que, sem aumentar o financiamento, não há bússola que dê conta de guiar os rumos da Educação brasileira no sentido da ampliação do acesso e da qualidade do sistema público. “Grande parte das metas do PNE dizem respeito à expansão de etapas, de modalidades, de níveis da Educação ou à melhoraria das condições de qualidade. Como fazer isso sem uma estimativa de recursos compatíveis?”, indaga Nalu Farenzena, da Fineduca, justificando a energia depositada pelos movimentos sociais na defesa da meta 20 do Plano atual e que deve ser repetida na elaboração do próximo.

Se continua sendo indispensável garantir os 10% do PIB para a Educação – e, apesar das dificuldades, lutar para que o texto da lei especifique que o destino deve ser exclusivamente o sistema público –, ela defende que é preciso avançar no sentido de apontar, já no PNE, possíveis fontes desses recursos. E, segundo a pesquisadora, isso passa pelo reconhecimento de que o ente federado que mais tem condições de reforçar esse aporte orçamentário é a União. “Não faz sentido pensar numa política de financiamento que garanta Custo Aluno-Qualidade sem a complementação compatível da União”, diz.

Não por acaso, essa foi a concepção que orientou uma das mudanças mais relevantes nas políticas de Educação que aconteceram entre o PNE 2014 e o que vai ser construído agora – e que precisará ser levado em conta na discussão do texto do futuro Plano: a aprovação do Novo Fundeb. Entre outras mudanças, a lei 14.113/2020 estabeleceu um aumento da complementação do governo federal de modo a alcançar 23% do Fundeb em 2026. Mas isso, de acordo com a pesquisadora, não é suficiente para dar conta das propostas necessárias para um novo PNE, mesmo que se olhe apenas aquelas relacionadas à Educação Básica. E um dos motivos é que, apesar de ampliado, o percentual de participação da União continua tendo como referência o total de recursos dos outros entes federados – os 23% são do total de dinheiro que estados e municípios depositam no Fundo. De acordo com Farenzena, os cálculos mostram que o total de recursos do Fundeb hoje representa cerca de 2,5% do PIB do país – logo, mesmo considerando-se que esse volume é voltado só para a Educação Básica, ainda faltaria um bocado para atingir os 10% que o PNE deve estabelecer como mínimo para a Educação (pública) como um todo.

E essa não é uma contradição. Por um lado, o que esse cálculo mostra é que é necessário ter mais recursos também para o Ensino Superior – que não é Educação Básica – e as áreas e iniciativas que concretamente precisam desse investimento talvez devam estar lembradas de alguma forma no novo PNE. A garantia e ampliação da assistência estudantil e a manutenção da infraestrutura das universidades públicas são apenas dois exemplos mencionados por Farenzena. Por outro, no que diz respeito à Educação Básica – tanto nas suas etapas obrigatórias, de ensinos Fundamental e Médio, quanto nas formas de Educação Profissional e EJA –, ela propõe um diálogo entre diferentes momentos da lei do Novo Fundeb. Isso porque, ao mesmo tempo em que parou em 23% a obrigatoriedade de complementação da União para o Fundeb, a lei do Novo Fundeb incluiu no texto constitucional a determinação de que, “para exercer sua função redistributiva e supletiva”, como explica Farenzena, o governo federal agora deve ter como referência a garantia de Custo Aluno-Qualidade, ou seja, o CAQ . Logo, se os 23% não são suficientes para isso, é preciso ter mais dinheiro. E ela acredita que o próximo PNE deve ser instrumento de pressão nessa direção.

Sobre isso, ela lembra que entidades como a Fineduca e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação têm defendido – e devem levar para a Conae – que esse dinheiro a mais seja garantido por dentro do próprio Fundeb, aproveitando o trecho da lei que trata da complementação da União especificamente em relação ao Valor Aluno-Ano. O texto estabelece que esse recurso federal deve ser de, no mínimo, 10,5% do total dos fundos estaduais e distrital e a proposta que a pesquisadora também defende é que o governo vá além desse mínimo para garantir os padrões de qualidade que integram o CAQ. “Acho que deveria constar no novo PNE a manutenção de estratégias referentes à garantia de Custo Aluno-Qualidade Inicial [.CAQi.] e de Custo Aluno-Qualidade, e que essa garantia seja feita por meio da complementação da União ao Fundeb”, defende, lembrando ainda a importância de a nova lei “reafirmar a atuação dos órgãos de controle tanto estatal quanto social, para fiscalizar e acompanhar tanto os recursos do Fundeb quanto os demais recursos que são vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino”.

A conjuntura dez anos depois

A batalha por um PNE progressista, que garanta o direito à Educação pública com qualidade em todos os segmentos, começa na Conae 2024, mas não termina nela. Se a lei atual demorou quatro anos para tramitar, não são propriamente otimistas as expectativas de aprovação da próxima. No que diz respeito ao Executivo, o país tem outro governo e outra gestão no Ministério da Educação mas, na avaliação de Daniel Cara, a concepção neoliberal de Educação que embasou a meta 7 e outras brechas que atravessaram o PNE atual não apenas permanecem como se tornaram mais fortes, com uma presença ampliada de representantes das fundações empresariais na estrutura da Pasta. “O PNE é fruto de um tensionamento. Tem os grupos empresariais incidindo sobre o texto, não via conferência, em 2010, mas via articulações por cima, que é o que eles fazem e farão de novo”, alerta Fernando Cássio, professor da USP.

Também no Congresso o cenário se complexificou. No período entre 2010 e 2014, na avaliação de Cara, os movimentos sociais progressistas da Educação tinham mais força e capacidade de articulação nas Casas legislativas – ele exemplifica com a constatação de que, embora tenham disputado o texto, naquele momento as fundações empresariais tinham maior penetração no Executivo, por meio do próprio MEC, do que no Parlamento. Hoje, o crescimento da extrema-direita, não apenas como influência na sociedade mas também como representação parlamentar, é uma novidade que pode tornar o trabalho no legislativo ainda mais difícil. “Nesse PNE vão ter embates que não tiveram no passado”, alerta Cara.

E esse exercício começa agora. “A própria Conae já não vai ser um passeio. Todos os campos vão estar presentes na Conferência: as fundações empresariais, MEC com influência neoliberal e a extrema-direita”, alerta Cara. De fato, vários entrevistados desta reportagem que participaram de etapas estaduais das conferências ou estão acompanhando de perto a organização da própria Conae apontam que, embora minoritários, os grupos de ultradireita estão também disputando esse espaço. Com isso, além da batalha pelo fortalecimento do segmento público em oposição aos interesses privados que esses grupos também representam, podem entrar na pauta temas alheios ao direito à Educação que dominaram o debate político nos últimos quatro anos, como militarização das escolas, ensino domiciliar e doutrinação. “Vai ser uma guerra absoluta”, resume Cara. A reportagem entrou em contato com o MEC, via assessoria de imprensa, mas não obteve retorno sobre o pedido de entrevista nem resposta às perguntas enviadas.

 

“O CAQi é um indicador que mostra quanto deve ser investido ao ano por aluno de cada etapa e modalidade da educação básica. (...) Para realizar este cálculo, o CAQi considera condições como tamanho das turmas, formação, salários e carreira compatíveis com a responsabilidade dos profissionais da educação, instalações, equipamentos e infraestrutura adequados, e insumos como laboratórios, bibliotecas, quadras poliesportivas cobertas, materiais didáticos, entre outros, tudo para cumprir o marco legal brasileiro. Assim, o CAQi contempla as condições e os insumos materiais e humanos mínimos necessários para que os professores consigam ensinar e para que os alunos possam aprender. (..) Já o CAQ avança em relação ao padrão mínimo [buscando] o padrão de qualidade que se aproxima dos custos dos países mais desenvolvidos em termos educacionais”.

Fonte: site da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação

 

Leia a íntegra da edição 93 da Poli