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O legado da Fifa na saúde e educação

Programa da Fifa em parceria com três ministérios ensina hábitos saudáveis em escolas públicas. Especialistas consideram o conteúdo, a concepção de promoção à  saúde e de currículo um retrocesso.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 13/03/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Quando as manifestações nas ruas gritaram que, em vez de Copa, queriam mais saúde e educação, talvez não soubessem que a Federação Internacional de Futebol (Fifa) está atuando também nessas áreas. Continuando uma ação iniciada na África do Sul, em 2010, com o objetivo de deixar um “legado médico” para o país, a Fifa está promovendo no Brasil o programa ’11 pela saúde’, que visa “ajudar os jovens” do país a “viver uma vida saudável”. Legitimado por uma parceria dos ministérios da Saúde, Educação e Esportes, o programa apresenta conteúdos de saúde e abordagens educacionais que, segundo diversos especialistas, vão na contramão das políticas e das demandas da sociedade civil organizada no Brasil. “A parceria com a Fifa está dada no âmbito de todos os demais ministérios. Trabalhar na perspectiva de ter legados para a saúde e a promoção se colocar como um desses legados é importante para o ministério da saúde e para o governo brasileiro”, explica Débora Malta, coordenadora geral de vigilância de agravos e doenças não transmissíveis do Ministério da Saúde, responsável pela articulação com o programa.  Carlos Eduardo Batistella, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que estuda currículo, principalmente na área da saúde, discorda: “É de estranhar que os Ministérios da Saúde e da Educação não tenham obstado essa iniciativa, uma vez que a construção de políticas de saúde e educação no país já nos autoriza a considerar que não precisamos de auxílio iluminado para estabelecer um ‘programa de educação séria sobre saúde’, como anuncia a Fifa no material do programa”.

O “currículo” do programa é dividido em 11 sessões que associam um tema sobre futebol a uma mensagem sobre saúde, cada um trabalhado em 45 minutos, representando dois ‘tempos’ de uma partida de futebol. No Brasil, uma versão piloto do programa foi aplicada em Curitiba e agora esses professores estão treinando os outros. O material de referência é o Manual do Treinador , que orienta detalhadamente o professor sobre cada atividade que ele deve desenvolver com os alunos, determinando inclusive o número de minutos que cada etapa deve levar. “O grau de prescrição de comportamentos chega a níveis absurdos, onde se propõe a criação de ‘círculo de elogios’ e a ‘lista de controle’ determina cada passo da preparação das sessões, seus tempos e movimentos”, analisa Batistella.

O destino final dessas mensagens de saúde são alunos de 11 e 12 anos de escolas públicas das cidades-sede da Copa do Mundo do Brasil. “A simples denominação do material como ‘Manual do Treinador’ já nos remete a duas questões bastante críticas no campo da educação: de um lado, assume uma perspectiva de forte diretividade, já que o uso do termo ‘manual’ quer restringir a atividade docente à mera implementação de um currículo prescrito, negligenciando a ação pedagógica como possibilidade de reconstrução de conhecimentos e sentidos. De outro, transparece uma visão de educação como adestramento, numa perspectiva comportamentalista que, nos últimos anos, tem sido reanimada – com nova roupagem - pela pedagogia das competências”, critica Batistela.

A mensagem mais polêmica – embora não seja a única – é a que, junto com o uso de camisinha, indica a abstinência sexual e a fidelidade como formas de prevenção ao HIV/Aids. O Ministério da Saúde garante que, na revisão que fez do material utilizado na África, retirou essas orientações. Débora reitera que a política brasileira investe apenas na prevenção por meio de preservativos. Mas o fato é que elas permaneceram na versão final do ‘Manual do Treinador’, utilizado para treinar os professores que, por sua vez, reproduzirão com os alunos o conteúdo e a dinâmica didática que aprenderam . Perguntada sobre o que uma instituição que tem essa concepção de promoção e prevenção à saúde tem a ensinar às crianças brasileiras, a coordenadora do Ministério da Saúde afirmou que “toda parceria é bem-vinda” e legitimou o conhecimento técnico da Fifa nessa área. “O mote da Fifa realmente é o futebol mas ela se valeu de especialistas. Ela tem discutido isso com a OMS [Organização Mundial de Saúde] há anos. O desenho está de acordo com os eixos da OMS na priorização das doenças crônicas não-transmissíveis”, diz. Para Batistella, a interferência da Fifa em ações de educação e saúde tem objetivos bastante específicos: “Numa época em que todo mundo educa, a Fifa aparece como a nova candidata ao posto de instituição educadora aos países subdesenvolvidos. Por trás da aparente benevolência dos países centrais, repete-se o velho mecanismo de colonização que já acompanhou a Europa na invenção do oriente: o recurso ao estereótipo, a padronização de condutas servis, a disseminação de valores desejados para a manutenção do sistema”.

Mudança de comportamento

Especificamente em relação ao conteúdo de saúde do programa, a primeira crítica mais geral diz respeito à própria concepção de promoção da saúde que o sustenta, focada numa estratégia de informação para mudança do comportamento individual. De acordo com Paulette Cavalcanti, pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CpqAM/Fiocruz Pernambuco), tem-se lutado, no Brasil, por uma prática de promoção que seja coerente com o conceito ampliado de saúde. “Não é possível produzir carros sem se pensar na promoção da saúde, tocar uma fábrica de alimentos sem pensar na quantidade de sal e outras substâncias que vão ser utilizadas”, exemplifica, lembrando que a diminuição do sal dos alimentos é uma ação muito mais estrutural para o controle da hipertensão do que a administração de medicamentos àqueles que já se tornaram hipertensos. Paulette explica que a grande referência mundial é a Carta de Ottawa , de 1986, que apresenta cinco eixos principais para essa concepção de promoção à saúde. “Apenas um eixo fala da mudança de comportamento. Mas o Brasil está elegendo exatamente esse para ser o principal”, diz. Todos os outros – criação de ambientes saudáveis, reforço da ação comunitária, reorientação dos serviços de saúde e um olhar para o futuro – dizem respeito à participação do Estado e da sociedade.

Na cartilha da Fifa, esse problema aparece, por exemplo, no tema do saneamento, presente na sessão ‘Beba água tratada’ que, segundo Alexandre Pessoa, engenheiro sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), não só dá destaque como incentiva, em uma das “mensagens-chave”, o uso de água engarrafada. “Essa abordagem trata os recursos hídricos como mercadoria, desconsiderando todo o debate sobre a universalização do direito à água. Ao se naturalizar o uso de água engarrafada como referência de água tratada, está-se ignorando que é obrigação do Estado fornecer água em quantidade e qualidade necessárias para o consumo humano”, diz. Alexandre considera também injustificável que, com toda a importância que a questão ambiental tem nos dias de hoje, um programa de promoção à saúde não aborde em nenhum momento a importância do uso racional da água.

Ana Lucia Pontes, médica e também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, faz o mesmo debate em relação à sessão ‘Controle seu peso’. Segundo ela, a cartilha ignora que o que as comunidades de baixa renda, muito presentes nas escolas públicas em que esse programa está sendo aplicado, têm a sua disposição são alimentos de baixa qualidade nutricional. “Não é um questão de escolha, como o programa faz parecer”, diz. Ela destaca um trecho da cartilha que afirma que não se precisa ser rico para seguir uma dieta equilibrada, já que frutas, legumes e carboidratos seriam mais baratos do que os alimentos ricos em gordura e açúcar. “Essa é a grande ironia do momento atual. Os alimentos orgânicos, que são livres de agrotóxicos, por exemplo, são os mais caros. As pessoas não podem plantar seus próprios alimentos e, em função da vida atribulada, desaprenderam a preparar alimentos que antes eram feitos em casa e a solução são os produtos industrializados. Na prática, nas condições urbanas de vida no Brasil, para se alimentar bem, tem que ser rico sim”, discorda.

O foco do papel do indivíduo na promoção à saúde fica evidente também, segundo a pesquisadora, na ausência de qualquer referência à propaganda de alimentos – já que as crianças, que são o público do programa, são uma das mais afetada pela publicidade que incentiva o consumo de refrigerantes, biscoitos, comidas de fast food e tantos outros alimentos nada saudáveis. Para Ana Lucia, a abordagem desse tema com crianças seria também uma ótima oportunidade para ensiná-las a ler a tabela nutricional, o que, mais do que prescrever comportamentos, permitiria que elas participassem da escolha e da decisão sobre os alimentos mais saudáveis. Mas a cartilha não faz qualquer referência a isso. Bastistela conclui: “O que o currículo da Fifa ensina é o conformismo, a obediência e o individualismo, valores e atitudes esperadas ao papel de subordinação que se destina às crianças pobres nestes países”.

Destacando o mesmo tom comportamental da perspectiva de promoção à saúde do programa da Fifa, Alexandre Pessoa aponta, por exemplo, a ausência de qualquer discussão ou mesmo informação sobre o “caminho das águas” no conteúdo sobre saneamento. “Não se apresenta esse bem em todas as suas etapas, o que implicaria falar sobre a proteção dos mananciais, o combate à perda de água no transporte, o cuidado com a caixa d’água para daí chegar à filtração, entendendo que a fervura é o último recurso”, diz. E completa: “O programa tem uma abordagem comportamentalista normativa e, consequentemente, culpabilizadora. Ao fim e ao cabo, se algo não deu certo, a culpa é do indivíduo”.

Abordagem moralista

Na sessão sobre HIV/Aids, o programa ensina as formas de transmissão, destacando que ninguém se contamina no toque ou no olhar, por exemplo. Na ficha de informação que vem ao final da sessão, explicando o que é o HIV e como ele afeta o corpo, as duas formas de prevenção apresentadas são o uso de preservativos femininos e masculinos para todos os tipos de relações sexuais e o não compartilhamento de agulhas e seringas. Mas na descrição do “cartão de atividades” e no resumo das mensagens-chave, a cartilha repete o conteúdo que foi aplicado na África do Sul, quatro anos atrás: “Você pode proteger-se do HIV abstendo-se de sexo tanto quanto possível, ser fiel a um (a) parceiro (a) não infectado (a), ou usar um preservativo corretamente todas as vezes que tiver relações sexuais”. “Isso é um retrocesso na política de prevenção à Aids”, diz o assessor de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Juan Carlos Raxach. Ele explica que a fidelidade teria que ser mútua, por isso, ser fiel não é suficiente porque requer a confiança na fidelidade do outro também. Já sobre a abstinência, ele questiona as consequências, inclusive psicológicas, que a falta de sexo pode trazer para a saúde. Por isso, diz, conseguiu-se imprimir na política brasileira o uso de preservativo como o método de proteção no que diz respeito à transmissão por via sexual.

Segundo Juan Carlos, essa abordagem, que carrega uma perspectiva religiosa sobre a doença, foi levada para países da África e da América Latina, inclusive o Brasil, na década de 1990, pela Usaid (U.S. Agency for International Development). “Nós lutamos muito e conseguimos banir isso de todos os documentos brasileiros. O que a Fifa defende contraria tudo o que nós entendemos como direito humano”, diz. No continente africano, onde esse programa foi aplicado pela primeira vez, no entanto, a presença e a influência da Usaid ainda são muito fortes.

Abordagem semelhante aparece na sessão que fala sobre drogas, álcool e tabaco. Na tarefa de casa, por exemplo, os alunos devem “desenhar um mapa da sua comunidade”, marcando os lugares em que essas substâncias são usadas e os lugares “seguros”, onde eles “não seriam pressionados para usar drogas, álcool ou tabaco”. Os exemplos de respostas possíveis apresentados pela cartilha são “igreja, casa, escola, campo de futebol”. “Isso separa o mundo entre bom e mau e dá a entender que se você evitar o mau, como determinadas pessoas de má influência, vai resolver o problema”, analisa Francisco Inácio Bastos, pesquisador do Instituto de Informação Científica e Tecnológica (Icict) da Fiocruz, que coordenou recentemente a pesquisa ‘Perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil’.

Erros e inadequações

Nessa mesma sessão sobre álcool, drogas e tabaco, o texto apresenta os medicamentos como “drogas benéficas” e opõe a eles as drogas “ilegais”, que seriam “nocivas”. Assim, o programa simplesmente desconsidera os dados mais atuais sobre o uso e dependência de drogas no país. Segundo o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, de 2005, por exemplo, os benzodiazepínicos, família de medicamentos que incluem os tranquilizantes e ansiolíticos, e que são lícitos, são a sexta droga mais usada no país, à frente da cocaína, do crack e do oxi, que ganharam destaque na cartilha. O mesmo levantamento mostra que os benzodiazepínicos estão em terceiro lugar entre as drogas que mais causam dependência, perdendo apenas para o álcool e o tabaco, todas drogas lícitas.

De acordo com esses mesmos dados, a cartilha ainda erra ao informar que “a maconha é provavelmente a droga mais usada, além do álcool e tabaco”. Usando a mesma forma genérica, o texto afirma que “o uso da maconha leva muitas vezes à utilização de drogas mais fortes”, o que, segundo Francisco Inácio, não é verdade. “O mercado da maconha, que está regulado agora no colorado [estado norte-americano], está se mostrando bastante distinto do mercado das outras drogas. A grande maioria são usuários antigos, que não usam cocaína e outras drogas. Obviamente tem um grupo que começa com maconha e usa outras coisas, mas na verdade, no mundo inteiro, a grande porta de entrada para o conjunto de substâncias não é a maconha, é o álcool. Porque é lícito, usado em todos os lugares, e é extremamente frequente em universidades e no ensino médio”, diz.

Batistella chama atenção ainda para a incoerência entre o discurso e a prática da Fifa em relação às drogas. “É curioso que a preocupação da Fifa com a adoção de hábitos saudáveis não tenha impedido que a própria entidade incluísse, na lista de exigência para a aprovação da Lei da Copa no Brasil, a liberação do consumo de bebidas alcoólicas nos estádios, contrariando as leis locais – estas sim, construídas com base na análise estatística e epidemiológica que associa a violência nos estádios com o consumo excessivo de álcool”, lembra.

Ele chama atenção ainda para a impropriedade do conteúdo e da dinâmica trabalhada na sessão relativa aos medicamentos. “É uma abordagem biomédica de incentivo à medicalização, mobilizando os estudantes a monitorarem a frequência de uso de medicamentos na família, sem ater-se à compreensão do processo de produção social de saúde e doença, culminando em uma atividade na qual as crianças são incitadas a repetir umas para as outras: ‘tome remédio’! Como analisar tal recomendação diante de uma preocupação crescente com a automedicação no país?”, questiona.

Próximos passos

De acordo com Deborah Malta, a expectativa é que, após a aplicação nas cidades-sede, se faça uma avaliação do programa e, dependendo do resultado, ele seja ampliado, tornando-se, inclusive, uma ferramenta do Programa Saúde na Escola, uma parceria dos ministérios da Saúde e Educação que já existe desde 2007 e conta com um eixo de promoção da saúde. A intenção é fazer uma nova adaptação dos conteúdos, incluindo outras mensagens, mas mantendo a metodologia, que seria cedida pela Fifa.

Na versão atual, de acordo com o Ministério da Saúde, todos os custos do programa são de responsabilidade da Fifa.