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O papel da saúde privada em países com sistemas universais

Como atuam os planos privados em países em que a saúde é considerada dever do Estado?
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 21/09/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Em reportagem publicada na edição n° 17 da Revista Poli, falamos sobre a atuação dos planos privados de saúde e sua relação com o sistema público no Brasil. Ali você ficou sabendo um pouco mais sobre os mecanismos que permitiram a expansão desse setor que, segundo dados do site da Organização Mundial da Saúde (OMS), movimentou, em 2009, R$ 63,6 bilhões no Brasil. Isso quer dizer que 22,4% do gasto total com saúde naquele ano foi com planos e seguros privados, que cobrem em torno de 25% da população brasileira, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). São números expressivos em um país com um sistema público universal, como é o caso do Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas de que forma se dá essa dinâmica entre o público e o privado na saúde em países que, assim como o Brasil, possuem sistemas universais? Para responder a essa pergunta, esta matéria apresenta a situação de dois países onde a saúde é considerada dever do Estado: Reino Unido e Canadá.

Panorama

O National Health Service (NHS), como é chamado o sistema de saúde do Reino Unido, foi implementado em 1948 sob os princípios de universalidade, equidade e integralidade. Os serviços, financiados por impostos federais, são gratuitos, com exceção de alguns tratamentos dentários e oftalmológicos e da distribuição de medicamentos, para os quais estão previstas taxas, pagas pelos usuários. 

Os serviços são providos majoritariamente por servidores do Estado, em instalações públicas. O cuidado primário, no entanto, é feito por médicos generalistas autônomos que recebem do governo com base no número de pacientes atendidos. Cerca de 12% da população do país possui planos de saúde. Planos privados pagos por empresas a seus funcionários respondem por aproximadamente 75% desse mercado. Os dados estão no relatório Health Systems in Transition, ou HiT (Sistemas de Saúde em Transição), publicado em 2011 pelo Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde, ligado à OMS.

No Canadá, segundo o HiT de 2005, o sistema de saúde, chamado de Medicare, é baseado no financiamento público dos serviços, que são providos por instituições privadas sem fins lucrativos. Os médicos, tanto clínicos gerais quanto os especialistas, são autônomos e recebem de acordo com o número de pacientes que atendem. Consolidado em 1984, o sistema é descentralizado: cada uma das províncias e territórios do país tem autonomia para planejar, gerir e prover o atendimento à população. Todo cidadão canadense tem direito ao seguro-saúde oferecido pelo Estado, que é custeado por meio de impostos federais, provinciais e sobre a renda de pessoas físicas e jurídicas.

O seguro público não cobre alguns tratamentos oftalmológicos, dentários e nem com tratamentos considerados não-essenciais, como o psicológico. Além disso, pouco mais da metade dos medicamentos também estão fora da área de cobertura do seguro público.

Por conta disso, em 2004, de acordo com estimativa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 65% da população tinha algum tipo de seguro de saúde privado, usado para custear, parcial ou totalmente, os procedimentos não cobertos pelo Medicare. A maioria é paga por empresas, associações comerciais e sindicatos, e faz parte de um pacote de benefício considerado compulsório, ou seja, que os trabalhadores não podem recusar.

Consenso

“Cada país tem uma história diferente na construção de seus sistemas de saúde, mas o que eles têm em comum é uma compreensão consolidada por parte da população de que é melhor ter saúde universal do que deixar essa esfera para ser explorada pelo mercado”, afirma Ligia Bahia, doutora em saúde pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No caso da Inglaterra, afirma Lígia, essa ideia ganhou força a partir do final da 2ª Guerra Mundial. “Com o fim da guerra, a Inglaterra era um país devastado, e as elites tiveram que ficar nos mesmos abrigos anti-aéreos da população mais pobre. Então eles têm uma experiência de solidariedade diferente de um país como o nosso”, diz. O contexto da Guerra Fria, com a ameaça do comunismo sobre os países capitalistas, também foi importante nesse sentido, segundo a professora. “A Inglaterra construiu uma política nacional de seguridade social, com a articulação de direitos sociais amplos, também porque havia uma ideia de prevenção para que não houvesse grandes revoluções sociais”, ressalta. 

Essa maior coesão social em torno da saúde pública tem reflexos nas políticas sociais e na regulamentação do setor privado de saúde nesses países. “Na Inglaterra não existem planos privados para funcionários públicos e nem subsídios do governo para o setor privado. Os planos de saúde são usados principalmente para fazer cirurgias estéticas não-reparadoras ou por pessoas que viajam muito e precisam ser atendidas fora do país. É diferente do que acontece no Brasil, onde o próprio governo financia o setor privado comprando planos de saúde para os funcionários públicos, deduz o imposto de renda de quem compra os planos, e onde, portanto, não há uma base de apoio para a universalização da saúde”, afirma. O NHS, diz Ligia, possui uma ampla base de apoio, já que é o maior empregador da Europa, com cerca de 1,7 milhão de funcionários.

Já no Canadá, assim como no Brasil, existem deduções no imposto de renda de quem adquire planos de saúde, de acordo com o relatório HiT. No entanto, como lembra Ligia, naquele país os planos de saúde não podem oferecer os serviços disponíveis no sistema público. Não existe, portanto, competição entre o público e o privado no provimento dos serviços de saúde. As províncias adotam mecanismos diferentes para impedir que os planos privados ofereçam serviços cobertos pelo Medicare, como explica o HiT: das dez províncias, seis proíbem a prática e as outras quatro adotam estratégias como a proibição de que o setor privado cobre mais do que o preço tabelado pelo governo. Além disso, os médicos são proibidos de trabalhar ao mesmo tempo no setor público e no privado.

Composição dos gastos

Dados do site da OMS mostram que, em 2009, o Reino Unido gastou 9,36% do seu Produto Interno Bruto (PIB) com a saúde, um gasto per capita de US$ 3.399. O governo arcou com 83,6% desse valor, com o gasto privado perfazendo 16,4% do total. Aí estão incluídos os gastos da população com remédios e serviços para os quais o NHS exige o pagamento de taxas, além dos gastos com planos privados, que representaram apenas 1,1% da parcela do PIB gasta com a saúde no Reino Unido naquele ano. 

O Canadá, por sua vez, destinou quase 11% de seu PIB para a saúde, ou US$ 4.195 por habitante. Os gastos públicos responderam por 68,7% desse valor. Nos 31,3% restantes, estão incluídas as despesas dos canadenses com os tratamentos que não são cobertos pelo Medicare e com remédios. Em relação ao PIB, o gasto com planos privados representou 13,5% do total destinado à saúde.

Já o Brasil gastou 9% de seu PIB com saúde em 2009, ou US$ 943 per capita, sendo que 45,7% desse valor foi proveniente do governo. Nessa conta estão incluídos tanto o dinheiro investido nos empreendimentos diretamente administrados pelos governos federal, estadual ou municipal quanto naqueles que prestam serviços ao SUS, mas que são administrados pela iniciativa privada, como as Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), por exemplo. 

A professora Maria Rita Bertolozzi, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), explica que a análise da composição dos gastos com saúde é importante para avaliar o desempenho do sistema de saúde de cada país. “Nem sempre gastar mais reflete uma boa saúde, haja vista o caso de Cuba, que não é um país desenvolvido e tem um sistema universal com bons indicadores”, opina. Para ilustrar seu argumento, ela cita os EUA, onde o atendimento à saúde é altamente privatizado. Em 2009, segundo a OCDE, os gastos com saúde nos EUA representaram 17,4% do PIB, ou quase US$ 8 mil por habitante. No entanto, apenas 47,7% desse valor foi desembolsado pelo governo, que financia a compra de seguros privados para os habitantes acima de 65 anos e para pessoas de baixa renda. No entanto, apesar dos gastos maiores, os EUA apresentaram indicadores de saúde piores do que o Canadá e o Reino Unido. Com menos da metade do gasto per capita dos EUA, o Reino Unido teve, em 2009, uma expectativa de vida de 80,4 anos e uma taxa de mortalidade infantil de 4,6 óbitos a cada 1000 nascimentos. Nos EUA, a expectativa de vida ao nascer naquele ano foi de 78,2 anos e a taxa de mortalidade infantil foi de 6,2º/oo. “O que os sistemas financiados pelo governo têm em comum é uma ênfase maior na promoção da saúde e na prevenção das doenças, sem tornar o hospital e a medicalização como eixo central. Com isso eles conseguem indicadores melhores com menos recursos, que são utilizados apropriadamente”, aponta Maria Rita.

Para Carlos Octávio Ocké-Reis, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o baixo desempenho dos EUA na comparação com países com sistemas universais é consequência do modelo privado de atendimento à saúde. “O modelo baseado no lucro tem efeitos perversos na qualidade do atendimento, por conta dos custos crescentes, que pressionam os lucros. Se por um lado as empresas privadas investem em tecnologias para atrair clientes, de outro elas adotam técnicas gerenciais para restringir o acesso a esses serviços”, aponta.

Ataques

Segundo pesquisa realizada pelo Departamento de Saúde britânico, em 2004, 98% dos pacientes do NHS conseguiam atendimento primário em 24 horas e 92,7% recebiam atendimento de urgência e emergência em, no máximo, quatro horas. Além disso, o prazo para agendamento de exames e de consultas era de 17 semanas. O prazo para agendamento de cirurgias era de, no máximo, nove meses. No Canadá, por sua vez, pesquisa de uma agência de estatísticas mostrou, em 2003, que 86,8% da população considerava o sistema público bom ou excelente.

Entretanto, os bons resultados não impedem que os sistemas sejam questionados. Segundo Maria Rita Bertolozzi, o sistema de saúde britânico sofre ataques desde a década de 1970. “Com as crises do petróleo, a direita passou a criticar o Estado de Bem-Estar Social, que era responsabilizado pelos altos impostos. Na década de 1980, com a ascensão do Partido Conservador, começou um processo de erosão do NHS, com a ideia de introduzir o mercado privado, que supostamente traria um aumento na qualidade e rapidez no atendimento”, afirma. Segundo ela, essas ideias ganharam corpo com a crise econômica de 2008, e hoje o país discute novamente a implementação de medidas privatizantes. “É uma fantasia pensar que o setor privado provê melhor e com mais qualidade do que sistemas públicos”, critica Maria Rita.

No Canadá, como aponta o relatório HiT, setores da sociedade também pressionam o governo para suspender os entraves aos planos privados no sistema de saúde do país e à cobrança de taxas extras, sob a justificativa de que isso iria diminuir o tempo de espera para alguns procedimentos. Em 2005, a Suprema Corte do Canadá decidiu que a província de Quebec teria que diminuir o tempo de espera por serviços cobertos pelo Medicare ou então permitir que eles fossem feitos no setor privado. Essa demanda acabou se espalhando por outras províncias. Em um artigo de 2008 publicado no site do Canadian Medical Association Journal (Revista da Associação Médica Canadense), Marcia Angell, professora da Universidade de Medicina de Harvard, defende a continuidade do sistema. “Privatizar o sistema de saúde canadense, mesmo que só um pouco, vai inevitavelmente causar um aumento dos custos e uma queda no acesso. A escolha mais sábia para o Canadá é expandir e reforçar seu sistema público, e não reduzi-lo”, conclui.

O relatório Private Health Insurance In OECD Countries (Seguros de saúde privados nos países da OCDE), de 2004, que analisa a atuação do setor privado nos países-membros, desmonta alguns argumentos usados para atacar os sistemas públicos. Segundo o relatório, a ideia de que o setor privado contribui para diminuir os custos do sistema público não se sustenta. “Pessoas com planos privados muitas vezes tendem a continuar a utilizar os serviços financiados pelo governo, uma vez que os hospitais privados focam seu atendimento em um espectro limitado de serviços eletivos, legando a responsabilidade pelos serviços mais caros aos programas públicos”, aponta. Além disso, o relatório também conclui que os planos privados não aumentaram a eficiência do atendimento à saúde nos países da OCDE, uma vez que é mais atraente para as seguradoras empregar mecanismos para selecionar pacientes com menores riscos de saúde e remanejar custos do que investir na melhoria da relação custo-benefício do atendimento.

Crise e perspectivas

Para Ligia Bahia, o setor privado de saúde tende a se expandir por conta da crise econômica que afeta muitos países da Europa e os EUA. “Os sistemas universais são caros, eles gastam muitos recursos do PIB. Nesse momento de crise há uma pressão maior, tanto que Portugal e Espanha já reduziram seus gastos com saúde. Ao mesmo tempo, os setores privados de pressionam nesses momentos de crise para reentrar nos sistemas”, diz. Já Carlos Octávio identifica dois caminhos possíveis: “Com a crise, o diagnóstico pode ser o de reduzir os gastos sociais para refrear o gasto público, ou então pode ser que haja a retomada de um ideário que busque frear essas políticas neoliberais e a globalização, que estão na origem da crise”, avalia.

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