Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

As pedras no caminho do Pronara

Lançamento do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos encerra uma espera de mais de uma década. Só que ainda há muitas incertezas quanto ao seu potencial de implementar ações concretas em um cenário desfavorável
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 17/09/2025 15h59 - Atualizado em 17/09/2025 16h03

Fabio Pozzebom / ABR

Após 11 anos desde sua concepção inicial, o governo federal enfim lançou o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o Pronara. No dia 30 de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto 12.538/2025, instituindo o programa que era aguardado desde 2014 por movimentos sociais, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas (entre elas a Fundação Oswaldo Cruz) articuladas e mobilizadas na luta contra os agrotóxicos no país.

Passado o alívio e o entusiasmo com o anúncio, ficam algumas incertezas. Tirar o plano do papel e fazer com que suas propostas sejam cumpridas não será tarefa fácil, em meio a algumas “pedras no caminho”: uma é a disputa entre setores a favor e contra o Pronara dentro do próprio governo; outra é a complicada relação entre Executivo e Legislativo, onde a bancada ruralista vem nos últimos anos promovendo uma agenda diametralmente oposta à da redução dos agrotóxicos.

Conquistas e contradições

Ambivalência é uma marca do discurso de vários dos representantes de setores organizados em torno do Pronara em relação aos avanços e limitações do programa no cenário atual. De um lado, há uma clareza sobre a importância de um plano que possa, em alguma medida, fazer frente aos problemas causados pelo uso abusivo dos agrotóxicos no país, uma demanda histórica. Do outro, há muitas dúvidas quanto às possibilidades de avanço em um cenário de hegemonia do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) – que sempre foi contrário à agenda – nos processos decisórios sobre os agrotóxicos.

Representante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Fátima Aparecida Moura considera importante o lançamento, que, segundo ela, só aconteceu pela pressão sobre o governo por parte das organizações e movimentos sociais organizados em espaços como o próprio Consea, entre outros. “Temos que ver isso como uma vitória nesse momento, depois de 11 anos, com todos os atrasos e adiamentos”, diz ela, ressaltando que o Pronara em vários momentos esteve ameaçado de não sair, mesmo no governo atual. A pressão foi decisiva para que ele fosse apresentado, destaca Moura. E pondera: “Mas, no mesmo dia em que foi lançado o Pronara, o Diário Oficial da União publicou a liberação de mais de cem novos princípios ativos de agrotóxicos”, ressalta, completando: “Se por um lado é politicamente importante [o lançamento do Pronara], do ponto de vista prático a gente sabe que vai levar tempo para colher resultados. Mas temos que apostar nisso”.

Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e integrante do Grupo de Trabalho Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz, defende que o Pronara tem um “grande mérito”: “apresentar uma alternativa aos sistemas alimentares que dominam o mundo com uma alimentação que não é saudável, seja pelo uso intensivo de agrotóxico, seja pelos ultraprocessados”, afirma. Ressaltando que o Pronara é um dos principais instrumentos para implementação do 3º Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o Planapo, lançado em outubro de 2024, Pessoa complementa: “O Pronara categoricamente apresenta a agroecologia como uma alternativa diante das mudanças climáticas e dos efeitos à saúde causados pelo uso dos agrotóxicos, bem como ao avanço do agronegócio, que se traduz em desmatamento em todos os biomas do Brasil”.

Uma longa espera

A ideia de um programa governamental com o objetivo de reduzir o uso de agrotóxicos no Brasil começou a ser gestada em 2011. Foi ali que a, então presidente, Dilma Rousseff assumiu um compromisso com a construção de uma política de fomento à agroecologia, durante a Marcha das Margaridas – manifestação anual de trabalhadoras rurais organizada pela Contag, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares. Desse compromisso nasceria em 2012 a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO); um ano depois foi lançado seu principal instrumento, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. 

Começava a chamar atenção a explosão nas vendas de agrotóxicos no Brasil, a ponto de o país ter superado pela primeira vez os Estados Unidos como maior consumidor mundial per capita em 2008 (posição que ocupa até hoje, por sinal). Segundo o Ibama, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, entre 2000 e 2012 as vendas anuais de agrotóxicos no país quase triplicaram, passando de 162,5 mil toneladas para 477,8 mil toneladas. Como resposta aos problemas que despontavam em meio a esse quadro, o Planapo estipulou como meta o desenvolvimento de um Programa Nacional para Redução de Agrotóxicos.

Para isso foi formado um Grupo de Trabalho dentro da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO). Vinculada à Secretaria-Geral da Presidência da República, o órgão foi criado em 2013, formado por representantes do governo federal e de organizações da sociedade civil e ficou responsável pela formulação de propostas e monitoramento da implementação das ações do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.  Para elaborar o Pronara, o GT sistematizou propostas presentes em documentos e relatórios produzidos em conferências nacionais nas áreas de saúde, trabalho, segurança alimentar e nutricional e desenvolvimento rural, bem como de movimentos sociais e organizações da academia como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da sociedade civil, como a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. O documento foi aprovado em agosto de 2014 pela CNAPO. A próxima etapa seria a análise pelos diferentes ministérios envolvidos.

Mas no meio do caminho havia uma Katia Abreu... A então ministra da Agricultura do governo Dilma Rousseff fez carreira no Congresso integrando a bancada ruralista. De 2008 até o ano de 2011, quando assumiu a pasta, havia sido presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade patronal que defende os interesses do agronegócio. Amiga da presidente da República, Abreu teria sido decisiva para que o programa fosse engavetado, diz Jakeline Pivato, da coordenação da Campanha Nacional contra os Agrotóxicos e pela Vida. “A presença do lobby do agronegócio e a força institucional que ele tem impediram o avanço da proposta original”, lamenta.

O golpe de 2016 e a ascensão de governos avessos à essa agenda fizeram com que a discussão ficasse paralisada. Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 e a retomada de iniciativas públicas nesse campo, um novo GT foi formado para atualizar o texto do Pronara. Só que mais uma vez o Ministério da Agricultura dificultou que o programa saísse, ao se recusar a assinar a portaria instituindo o 3º Planapo contendo o Pronara como um de seus objetivos. Com isso o lançamento do Plano foi adiado por quatro vezes. A demora fez com que as organizações da sociedade civil enviassem uma carta ao presidente Lula cobrando o lançamento do Plano com o programa de redução de agrotóxicos, o que finalmente aconteceu em outubro do ano passado, no Dia Mundial da Alimentação (16). “A gente conseguiu dar um passo importante, que o Planapo fosse lançado dizendo que íamos ter um Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. O passo seguinte era lançar o programa, porque não adianta só dizer que vai ter um”, resgata Rogerio Dias, presidente do Instituto Brasil Orgânico (IBO).

Mais uma etapa, mais adiamentos. No movimento social e na sociedade civil havia a expectativa que ele fosse lançado em dezembro de 2024, no Dia Mundial de Luta contra os Agrotóxicos (3), o que não aconteceu. Após um novo adiamento em março deste ano, o decreto instituindo o Pronara foi finalmente divulgado no final de junho, junto com o Plano Safra da Agricultura Familiar. De novo a resistência do Mapa e da bancada ruralista no Congresso ao Programa foi vista como responsável pela demora. Nesse hiato entre sua concepção inicial e lançamento, um quadro que já era preocupante ganhou contornos ainda mais urgentes. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, em 2021 o Brasil foi de novo o país que mais consumiu agrotóxicos no mundo. E de longe. Foram 719,5 mil toneladas, mais do que Estados Unidos e China juntos.

Os limites do possível

Tomaz Silva / ABR

O texto do decreto que instituiu o Pronara é relativamente enxuto: traz seis diretrizes, entre elas o incentivo à redução e ao “uso racional de agrotóxicos”. E às práticas agropecuárias sustentáveis; E a promoção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, bem como da segurança alimentar e nutricional. A garantia do direito humano à saúde, à alimentação adequada e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado também são citados como diretrizes do Pronara, bem como o fortalecimento da vigilância em saúde “com participação e controle social”.

Entre seus 11 objetivos, destacam-se a redução “gradual e contínua do uso de agrotóxicos, principalmente os altamente perigosos ao meio ambiente e extremamente tóxicos para a saúde”; o de propor medidas fiscais e financeiras para estimular a redução do uso de agrotóxicos, com prioridade, de novo, aos mais tóxicos e perigosos ao meio ambiente e à saúde humana. O texto fala ainda em “aprimorar o monitoramento de resíduos de agrotóxicos em matrizes ambientais, em alimentos e na água para consumo humano”, bem como em ampliar a produção, comercialização, o acesso e o uso de bionsumos, alternativas consideravelmente menos tóxicas que os agrotóxicos convencionais. “Qualificar profissionais do setor agropecuário, agentes de Assistência Técnica e Extensão Rural e produtores rurais para ampliar o conhecimento sobre técnicas capazes de promover a redução do uso de agrotóxicos” é outro objetivo do Pronara, meta que é frequentemente defendida por movimentos do campo como uma política pública importante no combate aos agrotóxicos.

O decreto, por fim, lista as atribuições de cada um dos cinco ministérios envolvidos no âmbito do Pronara, além da Secretaria-Geral da Presidência da República: Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Saúde, Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Meio Ambiente e Mudança do Clima, e Agricultura e Pecuária.

Segundo Jakeline Pivato, a queda de braço com o Mapa está refletida no decreto que instituiu o Pronara. Ela argumenta que o texto ficou aquém da proposta original de 2014. Aquela trazia propostas mais concretas, divididas em seis eixos de trabalho e mais de 170 ações. “O decreto nos mostra qual é a capacidade real da relação de forças internas que o governo tem para conseguir passar essa pauta. Essa dimensão de resistência se mostra muito nesse decreto resumido e bastante vago em alguns aspectos. O que vai exigir uma vigilância permanente nos próximos passos”, pontua.

Rogério Dias afirma que o documento “está longe do que a gente queria”. “O Ministério da Agricultura é o que tem menos iniciativas na sua competência. São cinco só, e coisas muito simplórias, longe do que era a proposta original”, critica. A primeira tarefa que compete ao Mapa, por exemplo, de “priorizar o registro de agrotóxicos de baixa toxicidade” expressa um pouco o alcance limitado das propostas. Isso porque em 2019, no governo Jair Bolsonaro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução com a reclassificação toxicológica dos agrotóxicos no país. À época, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Luiz Claudio Meirelles, que representou a Fiocruz nos GTs do Pronara na CNAPO, afirmou em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz que a mudança fez com que o número de agrotóxicos considerados extremamente ou altamente tóxicos pelas normas do país caísse de 702 para 43, uma redução de 93%. “A gente precisa rever a própria classificação [toxicológica]. Essa teria que ser uma iniciativa dentro do Pronara”, avalia Rogerio Dias.

Uma nota técnica sobre o decreto do Pronara produzida pela Fiocruz em parceria com a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida também cobra atenção em relação à essa questão, tendo em vista que o texto do decreto fala em priorizar a redução “gradual e contínua do uso de agrotóxicos” extremamente tóxicos para a saúde e altamente perigosos ao meio ambiente.  Segundo a nota, desde a reclassificação, a maioria dos agrotóxicos mais utilizados no país não se enquadra nas categorias mais restritivas em termos de toxicidade. “Priorizar a ação do Pronara apenas a essas classes pode comprometer sua abrangência e eficácia”, afirma o documento.

Embora avalie como positiva a proposta do Programa de adotar medidas fiscais e financeiras para estimular a redução do uso de agrotóxicos, o texto faz ressalvas ao trecho do decreto que vem logo em seguida: “principalmente os altamente perigosos ao meio ambiente e extremamente tóxicos para a saúde”. “É importante que [as medidas fiscais e financeiras] não se limitem somente às classes de maior toxicidade aguda. É fundamental avançar na tributação sobre todos esses produtos, o que é uma reivindicação histórica no nosso país e alvo de ação no STF (ADI 5553)”, destaca o texto. O documento faz referência à ação que contesta normas brasileiras que concedem aos agrotóxicos redução de 60% do ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, bem como isenção total do IPI, o Imposto sobre Produtos Industrializados.

Para Alexandre Pessoa, da EPSJV/Fiocruz, a questão tributária e fiscal é indissociável do debate do Pronara e suas ações. “Os agrotóxicos fazem mal à saúde da mesma forma que o tabaco faz. O dinheiro que seria arrecadado [com o fim das isenções fiscais] poderia ser direcionado para ações que compõem o Pronara”, defende o integrante do GT Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz, que foi um de sete GTs da Abrasco envolvidos no “Dossiê Danos dos Agrotóxicos à Saúde Reprodutiva” divulgado em janeiro desse ano. “Estamos falando não só do comprometimento das populações atuais como do das gerações futuras”, alerta Pessoa. E complementa: “Tirar as isenções e sobretaxar este setor do agronegócio é imprescindível para o fortalecimento da agricultura familiar - que inclusive é quem mais emprega no campo -, da saúde pública e do próprio SUS, que gasta bilhões por ano com as inúmeras doenças provocadas pelos agrotóxicos”.

A comparação entre as atribuições do Mapa com as de outros ministérios no texto do decreto do Pronara chama atenção por uma omissão que, para Luiz Claudio Meirelles, merece atenção. Enquanto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar cabe a tarefa de “promover a redução do uso de agrotóxicos nos sistemas agroalimentares da agricultura familiar, nos territórios rurais e urbanos e na agricultura urbana e periurbana”, no trecho dedicado às competências do Ministério da Agricultura não há uma menção clara ao papel do órgão na redução do uso de agrotóxicos nas grandes propriedades do agronegócio. “Isso também fica como um ponto a esclarecer. Eu espero que a gente possa, no desdobramento, na regulamentação, no desenvolvimento das ações, sanar isso. Porque não é só para pegar agricultura familiar. A ideia é trabalhar a questão da redução de agrotóxico no geral”, ressaltou Meirelles, à e´poca, ao Portal EPSJV.

Mudanças recentes na legislação complicam o cenário

A entrada em vigor da Lei nº 14.785, aprovada em 2023, é outro grande obstáculo no caminho do Pronara. Apelidada de “PL do Veneno” durante sua longa tramitação no Congresso, ela substituiu a chamada Lei dos Agrotóxicos, de 1989. Entre outras medidas, a nova lei deu centralidade ao Ministério da Agricultura no processo decisório sobre o registro de agrotóxicos, e acabou com o poder de veto que a Anvisa e o Ibama tinham até então. Incidentalmente (ou não), o Brasil bateu o recorde de liberação de agrotóxicos em 2024: foram 663 ingredientes ativos aprovados para uso no país, 19% a mais que em 2023. 

A mudança na legislação produziu incoerências no conteúdo do decreto do Pronara. Nele cabe ao Ministério da Saúde – a quem a Anvisa está subordinada – “elaborar, em conjunto com os demais órgãos e entidades competentes, a agenda regulatória de avaliação e reanálise toxicológica” dos agrotóxicos. Pouco à frente, no entanto, entre as atribuições do Ministério da Agricultura, está a de “coordenar as reanálises dos riscos dos agrotóxicos, consideradas as evidências científicas”. “É por isso que a gente tem uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade, nº 7701], que não foi votada ainda no Supremo Tribunal Federal, contra essa nova lei”, explicou Meirelles ao Portal EPSJV em julho deste ano. “Essa nova lei tirou da Saúde uma atribuição que é especificamente dela [...] o controle de substâncias que causam danos à saúde humana. Essa é uma briga em paralelo”.

Mas o ponto mais criticado pelos representantes da sociedade civil no decreto é o emprego da expressão “uso racional de agrotóxicos” como uma diretriz do Pronara. “Isso não se encaixa nesse debate. Abre brechas significativas, principalmente tendo em vista as mudanças na classificação toxicológica dos agrotóxicos pela Anvisa e as mudanças da nova lei de agrotóxicos. É claramente uma concessão ao Mapa”, lamenta Pivato. E conclui: “Sempre nos opusemos a esse termo. Mas o que a gente sempre recebeu de retorno é isso: ‘é o que deu’”.

Luiz Cláudio Meirelles também afirmou “não ter gostado do que leu”. “Não precisava estar lá”, ressaltou. Por outro lado, ele argumentou que há espaço no programa para um incentivo à substituição de produtos mais perigosos à saúde humana por outros de baixa toxicidade, como os microbiológicos, que também são considerados agrotóxicos pela classificação da Anvisa. “Então, o uso racional seria isso”, disse Meirelles. 

Já a nota técnica da Campanha e da Fiocruz ressalta que é fundamental que a substituição dos agrotóxicos pelos chamados bioinsumos (que incluem os microbiológicos) ocorra em paralelo a um rompimento da dependência de insumos controlados por grandes corporações. Para isso seria necessário “delimitar a influência” do setor privado sobre a sua fabricação e comercialização. Mas para Rogerio Dias, a recém aprovada Lei de Bioinsumos (Lei nº 15.070/2024) deixa brechas para que as mesmas corporações que hoje dominam o mercado de agrotóxicos passem a controlar o de bioinsumos. “E isso já está acontecendo: boa parte das empresas brasileiras que eram pequenas empresas de produtos biológicos já foi comprada por multinacionais. E o que pode acontecer? Elas só colocarem no mercado aquilo que não vai concorrer com os agrotóxicos que elas querem continuar vendendo”, alerta.

Para além das preocupações e da clareza de que não será fácil tirar o Pronara do papel, o texto do Decreto nº 12.538/25 traz também pontos positivos que devem ser celebrados, para Alexandre Pessoa. Segundo ele, entre as atribuições do Ministério da Saúde no texto estão potenciais vetores de mudanças concretas. Um exemplo segundo ele é a tarefa de “promover a Vigilância em Saúde das Populações Expostas à Agrotóxicos”. “A valorização da vigilância é um caminho muito importante, principalmente uma que tenha participação e controle social. Nós, da Fiocruz, inclusive avançamos num debate de vigilância popular em saúde que vem em confluência com o que está sendo apresentado”, ressalta o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz.

Ele também elogia a utilização do “Guia Alimentar para a População Brasileira” (elaborado pelo Ministério da Saúde em 2014 e considerado referência científica no Brasil e no mundo) como baliza para a construção de ações “que fortaleçam os sistemas alimentares social e ambientalmente sustentáveis”. “O Guia é um divisor de águas no debate da alimentação saudável, e fundamental para que o Brasil fortaleça uma alimentação que promova saúde e não doenças, saindo da lógica das commodities”, afirma Pessoa. Por fim, ele vê como positiva a atribuição do Pronara ao Ministério da Saúde de “contribuir para a estruturação das redes de laboratórios públicos que atendam às necessidades analíticas relacionadas à contaminação ou à intoxicação por agrotóxicos”. “Essa questão se traduz concretamente na necessidade imperativa que nós [da área da Saúde] temos, de responder se o que bebemos e consumimos tem ou não agrotóxico. É a pergunta que mais é feita a nós. Isso é sintomático, no sentido de refletir que a vigilância da qualidade da água para o consumo humano não só precisa responder a uma demanda reprimida como, precisa publicizar as informações para dar essa resposta”, avalia o pesquisador.

Luiz Claudio Meirelles, também integrante do GT Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz, vê o Pronara como uma oportunidade de fortalecer programas do Ministério da Saúde na área da vigilância em saúde e articulá-los com estados e municípios. “Acho que o Ministério da Saúde pode tentar exercer uma liderança política nesse processo. Tem competência para isso, no amplo sentido: não só a competência do ponto de vista constitucional, como do ponto de vista técnico, porque tem muita gente que atua nesse campo trabalhando no Ministério, na Fiocruz, no Inca [Instituto Nacional do Câncer] e na Anvisa. Tem tudo para que essa coisa funcione e dê certo, agora vai depender de como se vai desdobrar em termos de programas e ações”, pontuou Meirelles ao Portal EPSJV/Fiocruz no início de julho.

Segundo Fatima Moura, do Consea, o Pronara deve agora ser uma prioridade nas discussões sobre a implementação do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com vigência até 2027. “Está na pauta das nossas próximas plenárias um debate sobre o Pronara e o nosso papel enquanto Consea na sua implementação”, explica. O decreto lista como uma das atribuições da Secretaria-Geral da Presidência da República – a qual o Consea está vinculado – a de “promover a participação social na implementação, na gestão e no monitoramento do Programa”.  “Não dá para discutir políticas públicas para segurança alimentar e nutricional, enfrentamento da fome, sem considerar o uso dos agrotóxicos no Brasil”, avalia a conselheira.

Próximos passos

São muitas as questões que permanecem em aberto quando o assunto é Pronara. As instituições, organizações e movimentos sociais interessados em fazer com que o programa saia do papel aguardam agora a publicação de uma portaria da Secretaria-Geral da Presidência da República nomeando os integrantes de um Comitê Gestor Interministerial que ficará responsável pela governança do Pronara, como previsto no Decreto nº 12.538. Até o fechamento dessa edição a portaria não havia sido publicada.

É esse comitê que deverá elencar o conjunto de iniciativas, metas e prazos do Pronara, conferindo ao programa o detalhamento que a proposta original, de 2014 possuía, e que acabou faltando no decreto atual. Segundo Rogério Dias, o GT responsável pela revisão do Pronara no âmbito da CNAPO analisou e atualizou as propostas de 2014 e apresentou ao governo um documento com ações concretas, bem como metas, prazos e responsabilidades de cada ministério envolvido. “Essa planilha já está pronta há um tempão. Está circulando dentro do governo. Mas não sabemos ao certo o que virá”, ressalta.

Meirelles também expressou preocupação em relação à regulamentação do Pronara, uma vez que não há clareza sobre os ministérios e setores do governo envolvidos nesse processo.   “Eu não sei nem se alguém do [Ministério] da Saúde está participando. Por exemplo, nós, como Fiocruz, apesar de termos um GT sobre isso, nunca fomos chamados [...] Quem está regulamentando? Eu, por ora, desconheço”, alerta o pesquisador da Ensp/Fiocruz, complementando em seguida: “Quem está preocupado com a questão dos agrotóxicos não está inserido nesse processo de regulamentação. E isso, claro, afeta qualquer ação relacionada ao Pronara. Dependendo de como a regulamentação venha, ela poderá implicar avanços ou retrocessos”.

O decreto também é vago em relação ao orçamento que o novo programa terá e de onde esses recursos virão. O texto diz apenas que o Pronara será executado “com recursos do Orçamento da União, conforme disponibilidade orçamentária e financeira para esse fim, ou de outros órgãos e entidades, públicas ou privadas, e de parcerias com organismos internacionais”. “Hoje, no cenário de disputa orçamentária em que a gente vive, essa é uma coisa que também nos preocupa, e deveria ter aparecido no decreto de forma mais específica”, alerta Jakeline Pivato. Ela avalia que “é um momento bastante importante” para disputar o Pronara, cujo texto “é o que foi possível”. Mas ressalta: “Uma coisa que está clara para aqueles que estão comprometidos com essa pauta e que entendem a radicalidade que a gente precisa dar enquanto política pública para diminuir a contaminação e degradação causadas por esses produtos químicos, é que só o ‘possível’ não tem sido suficiente. A gente precisa e espera um impossível. E vai ter que trabalhar para isso”.