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Piso salarial da Enfermagem: os entraves na garantia de direitos para a categoria

Suspensão do pagamento do piso salarial da categoria reabre discussão sobre reconhecimento de profissionais em áreas estratégicas e retoma a necessidade de se discutir a realocação de recursos na saúde
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 09/09/2022 15h41 - Atualizado em 01/11/2022 10h39

A Enfermagem representa o maior contingente de trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. São 2.726.744 profissionais, segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que atuam, não apenas no reestabelecimento da saúde, nos hospitais, mas também na Atenção Primária em Saúde, recuperando, prevenindo e promovendo a saúde da população brasileira.  Depois de anos de luta, em 4 de agosto de 2022, foi sancionada pelo Executivo a Lei nº 14.434/2022, aprovada pelo Congresso Nacional, que regulamenta o piso salarial da Enfermagem. A nova regra prevê o pagamento de R$ 4.750 para enfermeiros; R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras. Um mês após ser publicada no Diário Oficial da União (DOU), em 4 de setembro, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a lei por 60 dias, até que sejam analisados dados dos estados, municípios, órgãos do governo federal, conselhos e entidades da área da saúde sobre o impacto diante da implementação do piso. Barroso é relator de uma ação de inconstitucionalidade impetrada pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos de Serviços (CNSaúde). Enquanto esta matéria era fechada, o Supremo havia começado a analisar, em plenário virtual que deve se estender até o dia 16 de setembro, se mantinha a lei sem efeitos, até a análise dos impactos da medida.

Atualmente, o Brasil conta com 670.852 enfermeiros, 1.608.131 técnicos e 447.407 auxiliares, além de 354 parteiras, segundo dados do Cofen. Desse total, são contabilizados pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) cerca de 1.221.734 profissionais empregados. Segundo a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Ialê Falleiros, apesar do alto número de profissionais, de suas atribuições e responsabilidades, a categoria da Enfermagem sempre foi tratada de forma pouco prestigiosa. “São as enfermeiras que coordenam o trabalho de equipe, em geral, as técnicas e auxiliares de enfermagem que acompanham os pacientes durante suas estadias nos serviços de saúde, com um olho no suporte físico e emocional e o outro na realização da rotina prescrita com todo cuidado para eficácia dos tratamentos”, afirma. Apesar da importância, o piso salarial se tornou uma luta histórica da categoria. É o que afirma Daniel Menezes, do Conselho Federal de Enfermagem. “Há mais de 50 anos que se busca esse direito. A profissão foi regulamentada pela primeira vez em 1955 e, desde então, buscamos alguns reconhecimentos, como o piso, e também a jornada máxima semanal. Não temos nenhum direito garantido em lei. O projeto agora vem fazer uma correção dessa dívida histórica que a sociedade tem com a enfermagem, porque estabelecer um piso é erradicar os miseráveis salários que existem ainda sendo praticados no nosso país”, argumenta Menezes. A opinião é reiterada pela presidente do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Município do Rio de Janeiro (SATEMRJ), Miriam Lopes. “A suspensão do piso nacional foi de grande consternação de nossa categoria. Foi uma decisão lamentável, que nós vamos reverter. Foi um ato de covardia com a nossa categoria”, diz.

Caso não tivesse sido suspensa, a nova lei garantiria, desde o dia 5 de setembro, o pagamento do piso salarial para a enfermagem em hospitais privados e filantrópicos. Já o SUS, tem até o ano que vem para ajustar o orçamento. A contestação da CNSaúde alegou que a mudança traria impactos nas contas de unidades de saúde particulares pelo país e nas contas públicas de estados e municípios. Já o ministro do STF argumentou que é necessária uma fonte de recursos para viabilizar o pagamento do piso. Para Falleiros, a reação não foi surpresa. “Desde que foi instituída, nos anos 1990, a Confederação tem impetrado ações de inconstitucionalidade contra adicional noturno, adicional de insalubridade, contra as trinta horas da enfermagem. Os argumentos são sempre os mesmos: repetem que os recursos são escassos e os ameaçam dizendo que o impacto econômico sobre o aumento ou a garantia de seus direitos ocasionará demissões, fechamento de serviços públicos prestados pelo setor privado, aumento dos custos dos serviços e o repasse para os usuários dos aumentos nos valores dos planos de saúde”, explica a professora-pesquisadora da EPSJV.

Segundos dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), para o cumprimento dos pisos será necessário um incremento orçamentário anual de R$ 4,4 bilhões para os municípios, R$ 1,3 bilhão  para os estados e R$ 53 milhões para a União. A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) argumentou ser necessário um aporte de R$ 6,3 bilhões ao ano, enquanto para as empresas privadas, haveria um aumento de 12,81% com os novos pisos. Entre as possibilidades de financiamento do piso estão a correção dos valores da tabela do SUS, a desoneração da folha de pagamento do setor da saúde e a compensação das dívidas dos estados com a União. Para o conselheiro do Cofen, o discurso de que setores privados não conseguiriam sustentar o reajuste é antigo. “Esse discurso dos setores privados, especialmente dos setores filantrópicos, da aplicação do valor mínimo, é antigo.

Historicamente, essas instituições dizem que precisam de mais financiamento. O principal ponto de embate é que o setor filantrópico, as Santas Casas, e o próprio serviço público, estados e municípios, precisam ter mais financiamento na saúde. Nós concordamos enquanto cidadãos e enquanto profissão. Historicamente, nesses últimos anos, a saúde vem sendo desfinanciada, então a gente defende esse financiamento até para melhorar a qualidade do serviço, não só para custear o piso da enfermagem. É para a qualidade do atendimento, para a prestação do serviço, para a compra de materiais, o uso de tecnologias. Nesse sentido, o financiamento é defendido por todos e isso precisa ser visto, mas essa tarefa é do Congresso Nacional e do Executivo”, afirma Menezes. Quanto ao setor privado, o conselheiro é enfático. “O [setor] privado, com fins lucrativos, é o segmento que mais tem lucrado nos últimos anos. Só na pandemia, no ano de 2020, os convênios de saúde, os planos privados aumentaram em mais de 20% seu faturamento. Nesse sentido, estamos bastante consternados com essa suspensão, porque entendemos que toda essa análise não se sustenta”.

Dados de 2018 do Observatório dos Técnicos em Saúde, da EPSJV, demonstram que há cerca de seis vezes mais profissionais de enfermagem atendendo no SUS, do que fora dele. Para Ialê Falleiros, os dados são importantes pois revelam como deve se dar a relação entre trabalhadores e organizações. “Quem deve pautaressa relação é o poder público, tendo o interesse público na melhoria dos serviços e nas condições de vida daqueles que se dedicam aos cuidados de saúde da maioria da população como foco central. As contas públicas devem se adequar a isso, e não o contrário, como advogam os empresários do setor e os seus representantes instalados na máquina pública. O piso regulamentado é o mínimo que se espera, principalmente, após os últimos três anos de pandemia de Covid-19”.

Para Isabella Koster, diretora Científica da Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (Abefaco), durante a pandemia, a enfermagem reforçou ainda mais seu profissionalismo atuando na linha de frente. “[Esses profissionais] se expuseram à contaminação, trabalharam em condições precárias, inseguras e insalubres, se afastaram das suas famílias, mas mantiveram o cuidado, mesmo que dentro dessas condições, com a melhor qualidade possível. Na Atenção Primária, atuaram junto às comunidades, acolhendo as pessoas com sintomas, organizando os fluxos e os novos processos de trabalho, orientando os cuidados com a doença e para o isolamento social e domiciliar, fizeram a vacinação acontecer de forma ampla e rápida em todo o território nacional, concomitantemente à manutenção do calendário vacinal e outras campanhas. Buscaram manter a todo custo os serviços funcionando para realizar as linhas de cuidado, envolvendo as doenças crônicas e transmissíveis, a saúde da mulher, da criança, entre outras. E hoje, estão buscando restabelecimento e reestruturação dos processos de trabalho junto com outros profissionais, considerando os aspectos endêmicos da Covid-19, assim como os seus efeitos prolongados na saúde da população, junto com a piora das condições de saúde gerais que vem buscando acesso e tentando recuperar a sua saúde”, ressaltou.

Impactos financeiros

Enquanto o ministro Barroso afirma que a nova decisão dependerá de documento detalhado sobre os impactos orçamentários do piso, além da adoção de medidas que resolvam a questão, visto que entidades do setor de saúde afirmam que o aumento de despesa pode acarretar redução de quadro de pessoal e eliminação de leitos hospitalares. O Cofen e outros órgãos afirmam que o estudo já foi apresentado ao Congresso, antes da aprovação do projeto de lei. “Nós acabamos de fazer uma consulta para o Painel de Informações do Fundo Nacional de Saúde, disponível no site do Ministério da Saúde e, hoje, há R$ 35 bilhões disponíveis para os projetos dos estados. Esse saldo não está alocado em nenhuma despesa, ou seja, está disponível para os cofres públicos estaduais, que poderia ser uma fonte, nesse primeiro momento, para custear esse financiamento. Em relação ao impacto dos R$ 16 bilhões, é bom lembrar que muitos profissionais de enfermagem já ganham salários acima do piso, o piso corrige, na verdade, os salários miseráveis, aqueles que ganham menos. Nesse sentido, no grupo de trabalho da Câmara, a gente já pôde comprovar e está no relatório técnico, que o salário da enfermagem reflete 2,7% do PIB da Saúde. A aplicação do piso representaria 4% do orçamento do SUS. Isso representa 2% de acréscimo na massa salarial dos contratantes. Em relação aos planos de saúde, para esses, a aplicação do piso representa apenas 4,8% do seu faturamento (com dados de 2020).  São esses os dados que fazem o contraponto, o dinheiro existe sim, ele só precisa ser melhor distribuído”, conclui Menezes.

O impacto se mostra realmente significante quando se avalia a atuação dos profissionais nos diversos níveis do sistema de saúde e as condições desse trabalho. “Estamos falando de um contingente de cerca de dois milhões de trabalhadoras, onde 85% são mulheres. A maior parte da equipe é composta por técnicas e auxiliares de enfermagem, demonstrando a força da profissionalização técnica da categoria profissional. No entanto, há problemas no quantitativo em relação à população e na distribuição de profissionais pelo país de forma não-equitativa. Toda a enfermagem se forma e se especializa essencialmente por instituições privadas, ou seja, elas autofinanciam a sua própria formação e especialização, e a profissão ainda é atravessada pelas questões interseccionais, envolvendo marcadores sociais e raciais, de classe, raça e gênero. Estamos falando aqui de mulheres, negras, mães-solo, em situações socioeconômicas vulneráveis, que se deparam com condições de trabalho, emprego e renda no mercado árido mergulhado na égide do patriarcado”, explica a diretora Científica da Abefaco.

Para o Cofen, o SATEMRJ, a Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade e dezenas de outras entidades da categoria, permanece a luta pela defesa da constitucionalidade do piso salarial. Acolhendo um pedido da categoria, o ministro Barroso autorizou a entrada de cinco entidades da enfermagem e cinco entidades representativas dos hospitais como Amicus Curiae* (instituição que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador).  As entidades também têm mostrado ser mais viável a proposta de reajuste de valores da tabela de procedimentos do SUS e a desoneração da folha de pagamento na área de saúde para financiar o piso salarial da categoria. “Durante a pandemia, nossos técnicos e auxiliares de enfermagem estiveram na porta dos leitos, cuidando dos pacientes com ética e profissionalismo. As pessoas foram para a varanda, os jornalistas [nos] chamaram de guerreiros, mas nós queremos o reconhecimento financeiro. É o financeiro que sustenta nossa família, é o financeiro que dá alimento para nossos filhos e netos e que nos ajuda a pagar as contas”, afirmou a presidente do SATEMRJ.