Foram 12 anos de tramitação até o dia 8 de julho, quando o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei nº 11/2016 – nascido na Câmara dos Deputados com o nº 1385/2007 –, que criaria e regulamentaria as profissões de cuidador de pessoa idosa, cuidador de pessoa com deficiência, cuidador infantil e cuidador de pessoa com doenças raras. Na justificativa, o presidente informa que o Ministério da Economia foi contra a sanção do PL argumentando que, ao criar condicionantes para a profissão de cuidador, a lei restringiria o livre exercício profissional garantido pela Constituição. E, portanto, seria inconstitucional. O veto , entretanto, ainda poderá ser derrubado nos próximos 30 dias por deputados e senadores em sessão conjunta.
Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Daniel Groisman, que coordena o curso de cuidador de idoso na instituição, chamar de inconstitucional a criação de uma profissão é uma grande contradição. “É totalmente equivocado. Se fosse inconstitucional criar profissões, nenhuma profissão existiria”, aponta, afirmando que o veto impacta imediatamente não só centenas de milhares de trabalhadores que tinham a expectativa dessa profissionalização, mas também as pessoas que necessitam desses cuidados.
Texto lacônico
De acordo com o projeto, os cuidadores deveriam ter o ensino fundamental completo e curso de qualificação na área, além de idade mínima de 18 anos, bons antecedentes criminais, e atestados de aptidão física e mental. A atuação do cuidador poderia se dar em residências, comunidades ou instituições. A importância da aprovação do texto, segundo Groisman, se justifica pela necessidade de fortalecer a qualidade dos cuidados e dar visibilidade aos cuidadores na sociedade.
Para ele, o debate sobre a necessidade de regulamentar a profissão já devia ter sido superado após mais de uma década de tramitação no Congresso. O PL passou por diversas comissões, receber pareceres e, por fim, ser apreciado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania tanto da Câmara quanto do Senado. “Foi uma justificativa pouco cuidadosa, um texto lacônico”, lamenta.
Ana Gilda Soares dos Santos, presidente da Associação dos Cuidadores da Pessoa Idosa, da Saúde Mental e com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (Acierj), considera o veto um total desconhecimento da realidade e das necessidades da sociedade, “em especial da população idosa, das pessoas com transtorno mental que viveram anos trancados nos manicômios, das pessoas com doenças raras e das pessoas com deficiência”. “O veto tira a oportunidade de qualificação e de uma educação continuada, pois o cuidado não é um trabalho banal. Nós estamos nas residências particulares, nos Centros de Atenção Psicossocial, em abrigos para crianças e adultos e em tantos outros lugares e não temos nosso trabalho reconhecido e respeitado, muitas das vezes”, lamenta.
Luta antiga
Reivindicação antiga da categoria, a regulamentação é considerada por Groisman uma forma de valorização ao delimitar as atribuições e buscar a melhoria da escolarização e qualificação profissional desses trabalhadores, em sua maioria mulheres dos segmentos mais pobres da população. “Fala-se na necessidade de profissionalizar os cuidadores no Brasil desde o final do século 20. Nos últimos anos, sobretudo em função do enorme aumento do número de pessoas idosas, essa necessidade se fez mais presente”, aponta Groisman.
O crescimento de cuidadores pode ser verificado a partir dos dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) divulgados pelo extinto Ministério do Trabalho no final de 2018. De acordo com o levantamento, houve um boom de pessoas que declararam ter essa ocupação nos últimos dez anos, com um aumento de 547% no período.
O fenômeno está relacionado às mudanças demográficas no Brasil. Segundo dados do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), divulgados em outubro de 2018 pelo Ministério da Saúde, atualmente, os idosos (pessoas acima de 60 anos) correspondem a 14,3% da população – o equivalente a 29,3 milhões de habitantes. Em 2030, esse número deve ultrapassar o de crianças e adolescentes (de zero a 14 anos), com 43,2 milhões de idosos para 42,3 milhões do outro grupo.
E agora?
Após o veto, Groisman afirma que associações ligadas a cuidadores e entidades de defesa dos direitos dos grupos que seriam atendidos pelo projeto de lei estão se articulando para reagir. “O veto será examinado em sessão conjunta no Congresso e existe uma articulação para sensibilização dos parlamentares para que seja derrubado e a lei promulgada”, explica.
O desafio de superar vetos não é novidade na área dos cuidados à pessoa idosa. Groisman lembra da lei 7332, de 2016, que estabelece normas para o exercício da atividade profissional de cuidador no âmbito do estado do Rio de Janeiro. “Ela foi vetada pelo governador à época, mas o veto foi derrubado pela assembleia legislativa e, desde então, está em vigor”, observa.
Na direção errada?
Com esse veto, o Brasil vai na contramão de diversos países do mundo que estão avançando na criação e desenvolvimento de políticas públicas voltadas para os idosos. No último dia 5, o parlamento português aprovou por unanimidade o projeto de lei que estabelece o Estatuto do Cuidador Informal. No país, a estimativa é que existam mais de 200 mil pessoas com a única atribuição de cuidar de parentes, em sua maioria idosos total ou parcialmente dependentes. Se sancionado pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa, o estatuto fará com que os cuidadores informais tenham direito a um subsídio governamental em moldes e valores que ainda serão definidos. O benefício vai alcançar apenas os cuidadores principais – cônjuges ou familiares até quarto grau que se dedicam permanentemente a isso – e apenas para quem tiver rendimentos baixos.