Em frente à sede da Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro (SEA) e do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Aurora Lins (56) exibe uma toalha de rosto suja de sangue. De acordo com a moradora de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, ela passou a sofrer problemas respiratórios depois que a ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) começou a operar no bairro. Juntos a Aurora, cerca de 150 manifestantes denunciaram vários problemas que a companhia tem causado na região. Além do incômodo com a constante fuligem no local, os moradores afirmaram sofrer também com o aumento do calor, barulho, além dos danos causados à atividade que até então considerada a principal vocação produtiva da região - a pesca. Uma comissão formada por representantes da SEA e do Inea recebeu os manifestantes e se comprometeu a realizar uma nova audiência pública em Santa Cruz para responder as questões abordadas durante o protesto. Na ausência do secretário Carlos Minc e da presidente do Inea Marilene Ramos, os manifestantes foram recebidos pela superintendente e uma equipe de técnicos do Inea. De acordo com Denise, o secretário e a presidente estavam em viagem a outro estado, já que não sabiam da manifestação. "O secretário foi muito enfático e pediu que a gente transmitisse aos moradores que não é nosso papel e nem nosso interesse fazer a defesa do empreendimento, que nós temos que fazer a defesa dos critérios que nós utilizamos para a licença provisória. Esta empresa está em teste e se não passar no teste, não terá a licença definitiva", comprometeu-se.
Além dos moradores de Santa Cruz, participaram do protesto movimentos sociais, organizações de direitos humanos que atuam junto aos moradores e estudantes e trabalhadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). "Eu moro em Santa Cruz há 15 anos, nós morávamos no paraíso e lá agora virou um inferno de calor, de poeira", declarou, durante a manifestação, a moradora Sirlei Fernandes (55).
O grêmio da EPSJV mobilizou mais de 80 estudantes para participarem da manifestação. "A TCKSA exauriu completamente todos os direitos sociais locais. Primeiro, a saúde está o caos; segundo, violou o direito ao trabalho local, porque a atividade local é caracterizada pela pesca e, como teve a poluição nas águas e mortandade muito grande de peixes, a atividade pesqueira praticamente acabou, sem contar com os problemas respiratórios e tudo o mais que está atingindo os moradores", protestou o estudante do 3º ano de gerência em saúde da EPSJV Jorge Luis Silva.
O professor-pesquisador da EPSJV Alexandre Pessoa, falou, durante a manifestação, sobre os riscos que a TKCSA tem representado para a saúde da população de Santa Cruz e do Rio de Janeiro. "Os trabalhadores e estudantes da Fiocruz estão se solidarizando com os moradores neste ato, principalmente pelo comprometimento da saúde humana e ambiental decorrente da atuação da TKCSA o que se configura uma violação de direitos. Se por um lado, essa empresa transnacional implanta as suas instalações sem nenhum estudo consistente, por outro lado o Estado de direito, o Sistema Único de Saúde não consegue dar uma resposta no sentido do atendimento aos moradores que estão sofrendo com a poluição", afirmou. Alexandre explicou ainda o caráter da poluição atmosférica gerada pela siderúrgica. "A empresa fala que esses particulares emitidos são apenas grafite, e que, portanto, trata-se de um produto inerte, mas essa informação não corresponde à realidade: os moradores já fotografaram à noite substâncias de colorações amareladas que saem da fábrica e que são outros poluentes que produzem outros tipos de poluição atmosférica". O pesquisador ressaltou que só o fato da fuligem entrar nas casas das pessoas já é uma "situação inadmissível".
O deputado Marcelo Freixo (PSOL) mostrou o pó que os moradores recolheram das casas antes de chegar à manifestação. "O capital da TKCSA não conseguiu fazer esse investimento na própria Alemanha, nem em outros países da América Latina. Isso vem para o Rio de Janeiro, o que acho que já é suspeito e mereceria um acompanhamento. É uma concepção de desenvolvimento que se estabelece no Rio de Janeiro que não leva em conta questões ambientais e sociais seríssimas. A poluição é visível, os moradores têm a saúde diretamente atingida, temos o poder público completamente refém da capacidade econômica da empresa e não é isso que o Rio precisa", concluiu. Também participaram do protesto os vereadores Eliomar Coelho (PSOL-RJ) e Reimont (PT-RJ).
Em entrevista à EPSJV após a manifestação, a superintendente de relações institucionais da SEA, Denise Lobato, reconheceu que qualquer fuligem na casa dos moradores não pode ser considerada natural. "Este tipo de fuligem não pode acontecer, mesmo que se garanta que não é mortal, apesar de algumas pessoas acharem que sim e ter todo o direito, mas de qualquer maneira ela é indesejável, não é natural, mesmo que não cause grandes danos à saúde. Por isso está havendo uma auditoria técnica dentro da empresa para ver por que isso está acontecendo".
Sem licença definitiva
A TKCSA não tem ainda a licença definitiva para operação em Santa Cruz. A empresa passou por duas das três fases do processo de licenciamento e, de acordo com Denise, o secretário do meio ambiente do estado do Rio, Carlos Minc, se comprometeu a não emitir a licença definitiva enquanto todos os problemas da empresa não estiverem resolvidos. "O secretário nos orientou a dizer que essa licença definitiva não será dada enquanto os problemas persistirem, que todos os danos que comprovadamente forem provocados à saúde dos moradores terão que ser sanados pela empresa", afirmou, em entrevista à EPSJV após a manifestação.
Entretanto, os manifestantes denunciaram vários problemas no processo de licenciamento da siderúrgica, desde o estudo de impacto ambiental. "O estudo tem uma série de problemas, omissão de informações, dados equivocados, problemas na tecnologia da dragagem, no enterramento de metais pesados no fundo da Baía de Sepetiba. E o licenciamento jamais poderia ter sido feito pelo órgão estadual, mas sim pelo órgão federal, porque está incluído na lei de zoneamento costeiro. Além disso, as audiências públicas foram muito tensas, a empresa trouxe pessoas de outros municípios para afrontar os ecologistas e os pescadores, houve muito conflito e empurra-empurra. Depois disso, a empresa conseguiu uma licença irregular e ilegal", definiu o ambientalista Sergio Ricardo, do Fórum de Meio Ambiente da Baía de Sepetiba.
Movimentos questionam auditoria
A TKCSA já foi multada duas vezes pelos órgãos ambientais estaduais devido a emissão de partículas no meio ambiente. Mas, no final de 2010, a SEA autorizou o funcionamento do segundo alto forno da siderúrgica antes que uma auditoria acordada pelo Inea e pelo Ministério Público do Rio de Janeiro fosse concluída na empresa. O acordo condicionava a liberação do segundo alto forno ao resultado da auditoria, que deveria estudar todo o processo produtivo da empresa para averiguar onde há falhas. Os manifestantes questionaram essa postura da Secretaria e também a escolha da empresa Usiminas para investigar o processo de produção da TKCSA. "Os movimentos sociais estão exigindo que essa auditoria seja interrompida porque as organizações entendem que essa empresa não tem a devida idoneidade para realizar, num prazo exíguo de menos de 60 dias, um estudo de alta complexidade que deve indicar uma série de erros desde a instalação da siderúrgica, com relação a planos de contingência e à própria operação dessa empresa. Os movimentos reivindicam a necessidade de uma auditoria idônea, que seja realizada por instituições públicas de pesquisa, que não sejam permeadas por interesses políticos e econômicos", sintetizou Alexandre Pessoa.
Os manifestantes denunciaram ainda que a Usiminas não estaria apta a realizar a auditoria também porque há interesse da empresa em resguardar a TKCSA. De acordo com eles, o fato de a companhia Vale ter feito parte do capital acionário da Usiminas e hoje fazer parte da TKCSA seria um fator a ser considerado pela SEA para não entregar à Usiminas o processo de auditoria. Denise Lobato, da SEA, afirmou não saber dessas denuncias. "Eu fiquei sabendo disso hoje. A princípio me parece um raciocínio um pouco tortuoso, não são empresas sócias, nem associadas, não sei que interesses a Usiminas teria de proteger uma concorrente dela, mas enfim, estamos dispostos a analisar os argumentos", afirmou.
Em entrevista à EPSJV para a reportagem Licença para impactar: os conflitos na saúde ambiental a pesquisadora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) Karina Kato falou sobre os indícios da relação entre Usiminas e TKCSA. "Nós não temos nenhuma informação sobre como foi feita essa escolha. E a Usiminas é totalmente ligada à Vale, que é uma das controladoras da CSA. A Vale até 2008 já teve ações diretas na Usiminas, depois vendeu. Atualmente o Previ, que é o fundo de pensão dos trabalhadores do Banco do Brasil, tem participação na Vale e na Usiminas. E agora, na sucessão do Agnelli [Roger Agnelli, presidente da companhia Vale], um dos nomes cotados para ser presidente da Vale é do atual presidente da Usiminas. Então, não há uma independência nessa auditoria, por mais que eles falem que é independente. O que há, na verdade, é um grande acordo para que essa auditoria saia favorável à empresa e para que a licença de operação que está condicionada a essa auditoria seja concedida agora no final de fevereiro".
Questionada sobre como a Usiminas foi escolhida para realizar a auditoria, Denise respondeu que não tem a informação. "A única coisa que eu sei é que a Usiminas é do mesmo ramo de produção da CSA. Então, ela é capaz e tem expertise para examinar o processo produtivo", afirmou. Entretanto, a superintendente garantiu que foi uma escolha da Secretaria. "Foi uma escolha da própria secretaria e do Inea. não saberia te dizer os critérios que orientaram isso porque eu não sou dessa área, mas é obvio que não foi a empresa que escolheu. A empresa paga, mas ela não escolhe. Na verdade, é uma concorrente", declarou.
De acordo com Denise, esses questionamentos e outras denúncias protocoladas pelos manifestantes junto à SEA serão respondidos na audiência pública que foi acordada junto aos manifestantes e será realizada em Santa Cruz ainda sem data marcada. "Nós teremos que ler o que está sendo questionado para ver qual o prazo que precisamos para ter resposta para tudo. Porque também não vamos à audiência para dizer que não temos ainda todas as respostas. Mas isso será o mais rápido possível porque o nosso interesse em disseminar as informações corretas que nos competem é muito maior até do que o interesse de quem esteve aqui hoje, porque sabemos que, num ambiente em que faltam informações, as fantasmagorias campeiam", observou