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Por dentro (e por trás) do ajuste fiscal

Entenda os mecanismos do processo que está cortando recursos das políticas sociais e retirando direitos dos trabalhadores
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 13/11/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

Imagine uma família que gasta mais do que tem. Ela se endivida, começa a ter dificuldades e, em algum momento, vai precisar cortar despesas... Bem, se fosse para começar desse jeito, com a mesma comparação repetida diariamente nos jornais e canais de TV para justificar – e naturalizar – as medidas do ajuste fiscal, esta reportagem nem precisaria ser feita. Então, simplesmente esqueça tudo isso: o Estado não é uma família e a economia doméstica, que você usa de vez em quando para equilibrar as contas da casa, não funciona do mesmo jeito que a macroeconomia. “O bordão da direita de que ‘o Estado deve, da mesma forma que uma família, só gastar o que arrecada’, é absolutamente ridículo. O Estado é uma instituição, por várias razões, de natureza completamente distinta da família e, mesmo assim, as próprias famílias também não gastam apenas o que ganham”, explica Luiz Filgueiras, professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Assim, adjetivos como ‘irresponsável’ e ‘perdulário’ não resolvem a complexidade que a análise das contas públicas requer. Para quem pensa com a cabeça da administração doméstica pode parecer estranho, mas o fato é que nem todas as correntes da economia consideram o déficit público um sinal de dificuldades. “Na teoria keynesiana, o déficit público não é necessariamente um problema, pois ele pode ser fruto de uma política fiscal e monetária anticíclica, de incentivo à produção e ao emprego, que permitirá, no momento seguinte, a cobertura desse déficit em razão do crescimento econômico e da maior arrecadação de impostos e, portanto, do aumento da receita do governo”, explica Filgueiras, distinguindo essa concepção daquela que sustenta a teoria econômica ortodoxa, que está conduzindo as medidas do ajuste no Brasil (sobre teorias econômicas, ver pág. 31). Neste exato momento, a disputa entre essas duas vertentes tem orientado o debate em torno do ajuste fiscal. Mas, de acordo com o professor da UFBA, o problema é que, nos dois casos, o ajuste é tratado como um “remédio” para o déficit que, por sua vez, é reconhecido como uma “doença” passageira. Ele contesta: “Na verdade, o ajuste fiscal se tornou uma política permanente do capital financeiro e da direita. A dívida pública passou a ser o instrumento fundamental de valorização do capital financeiro rentista, que vive da apropriação de uma parte crescente dos impostos cobrados da população em geral”.

Para começar: traduzindo o economês

Para entender esse processo e as divergências de análise sobre o ajuste, é preciso primeiro traduzir do economês algumas expressões que passaram a fazer parte do nosso cotidiano. Embora tenha consequências muito concretas para a vida da população – como o aumento do desemprego e o prejuízo de serviços de saúde e educação, que serão discutidos em outras reportagens desta série –, a principal razão apontada para a urgência de um ajuste fiscal é a necessidade de se garantir (e aumentar) algo que parece muito distante da vida das pessoas: o “superávit primário”. A explicação é simples: o orçamento federal fica superavitário quando, subtraindo-se o que o governo gastou do que o governo arrecadou, a conta fecha positiva. O ‘pulo do gato’ está no adjetivo: de acordo com Áquilas Mendes, economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ao classificar esse superávit como “primário”, define-se que o resultado deve ser apurado antes de entrar em cena o pagamento dos juros da dívida pública. Em outras palavras, tanto a receita quanto as despesas do Estado são separadas em dois blocos independentes. Do lado das receitas, são considerados a arrecadação de tributos, o dinheiro de privatizações e o lucro das estatais; como gastos, contabilizam-se apenas as despesas correntes, que envolvem principalmente a manutenção da estrutura estatal e as políticas sociais. Ficam de fora, portanto, exatamente as fontes e despesas financeiras: tanto os recursos que o Estado recebe, por exemplo, por meio de aplicações financeiras e juros das dívidas dos estados e municípios com a União, quanto o dinheiro que o governo gasta com o pagamento da sua própria dívida pública. A principal função dessa separação de receitas e gastos é fazer com que uma parte significativa do orçamento (a que não entra na conta do superávit) fique preservada exclusivamente para o pagamento da dívida pública. Assim, se a arrecadação do Estado cai (em função do próprio modelo de desenvolvimento ou do momento de crise) e falta dinheiro para serviços e políticas essenciais, como saúde, educação e previdência, considera-se que o país tem um déficit e simplesmente não se mexe nesse outro bolo de recursos, embora ele também componha a receita do Estado. No artigo ‘Superávit ou déficit primário: o debate rebaixado’, o economista Rodrigo D'Ávila, da Auditoria Cidadã da Dívida, exemplifica com os dados mais atuais: “Apesar de o ‘superávit primário’ do governo federal ter sido apenas R$ 6,6 bilhões de janeiro a maio de 2015, os gastos com a dívida pública federal, no mesmo período, foram de R$ 528 bilhões, o equivalente a nada menos que 53,44% de todas as despesas federais”. Esse montante de dinheiro, portanto, não passa nem perto da discussão sobre o financiamento das políticas sociais: vai direto para os cofres dos bancos, fundos de pensão, seguradoras e fundos de investimento, entre outros.

É assim que se consegue, por um lado, garantir que quase metade do orçamento (45,11% em 2014) seja direcionada para o pagamento de juros e amortização da dívida e, por outro, pressionar para que se reduza o ‘custo da máquina pública’, diminuindo cada vez mais apenas os gastos com políticas sociais. “Ao longo dos últimos 18 anos, não houve excesso de gastos, porque por superávit primário nós tivemos excesso de receita. Então o problema não foi o gasto público”, resume Áquilas Mendes.

Entender esse cálculo deixa claro que os gastos sociais não geram déficit, ao contrário: no contexto brasileiro atual, mesmo depois de cumpridos todos os compromissos do governo com essas políticas, sobra dinheiro. O problema é que, para os economistas que defendem o corte de gastos do Estado, essa sobra não pode diminuir – em economês, não pode ficar abaixo da “meta” estabelecida (por eles) porque, além de regular o gasto com o social, ele gera ainda mais dinheiro – além daquele montante que ‘corre por fora’ – para o pagamento da dívida e, principalmente, serve como um indicador de confiança para os investidores estrangeiros. “O foco da esquerda deve ser o ataque à dívida pública, o questionamento de sua legitimidade e mesmo de sua utilidade para os países”, resume Filgueiras.

Na verdade, essa conta esconde a conclusão simples de que as políticas sociais – que beneficiam a maioria da população – não são o único lugar em que se pode cortar num momento de crise. E os números mostram que isso não é um mero detalhe: no ano passado, enquanto a dívida abocanhou quase metade do orçamento, entre os chamados gastos sociais o dispêndio foi bem menor: a saúde ficou com 3,9%, a educação com 3,73% e o trabalho com 3,21%. De todos, só a previdência social teve um investimento um pouco mais significativo, de 21,7%. “As despesas do Estado são compostas por gastos correntes (não financeiros) e por despesas financeiras. Dessa forma, o déficit público que porventura se estabeleça se define pelo excesso de gastos (financeiros e não financeiros) em relação às receitas. (...) a pergunta é óbvia: por que a variável de ajuste são as despesas não-financeiras? Por que o ajuste fiscal não pode ser feito nas despesas financeiras, isto é, nos gastos públicos com juros e amortizações da dívida pública?”, pergunta Marcelo Carcanholo, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), no artigo ‘Neoliberalismo, ortodoxia e ajuste econômico: crítica da economia política brasileira’.

“Que dívida é essa?”

Aqui entra outra metáfora recorrente em tempos de crise como a que estamos vivendo. A ideia generalizada é de que, se a dívida pública é tão alta é porque, em algum momento, os governos gastaram demais e fizeram grandes empréstimos. Pode ser um problema mas, afinal, quem pede emprestado, de fato, tem que pagar. Certo? Errado. Mais uma vez, a comparação das transações do Estado com as dos devedores individuais não dá conta da realidade. “A primeira pergunta que todo mundo deveria fazer é: que dívida é essa?”, alerta Maria Lucia Fatorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida. E responde: “É uma dívida que nunca foi auditada, que já foi objeto de uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] na Câmara dos Deputados que demonstrou uma série de ilegalidades e ilegitimidades. Grande parcela dessa dívida pode ser simplesmente anulada”.

Não se trata, portanto, de calote, mas de conferência das contas. Fatorelli, que também participou da auditoria da dívida da Grécia recentemente, foi uma das responsáveis pela auditoria que, por meio de um estudo rigoroso, reuniu um conjunto de documentos que comprovavam a irregularidade e improcedência de uma parte significativa das cobranças feitas pelos bancos e grandes grupos financeiros. Com o resultado do monitoramento em mãos – que comprovava que o Estado equatoriano estava pagando muito mais do que o que devia –, o presidente Rafael Corrêa fez uma oferta aos credores: resgatar os títulos, pagando apenas 30% do valor. Com isso, 70% da dívida do país foi anulada. No Brasil, o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 estabelece que deve ser feito um “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”, mas os sucessivos governos simplesmente não tocam nesse assunto. “Ninguém enfrenta isso, é assustador. O senso comum é de que essa dívida é algo sagrado e de que os detentores desses títulos mandam no país”, lamenta.

Um dos argumentos para a defesa da manutenção do superávit primário é não deixar a dívida crescer. Para não se endividar mais, o país precisaria fazer sacrifícios e garantir o pagamento dos juros.  É aqui que entra a afirmação do professor Luiz Filgueiras no início desta matéria sobre o problema de tratar o déficit público como uma doença e o ajuste como um remédio. “A razão fundamental da fragilidade financeira do Estado é a chamada dívida pública, que só faz crescer, porque já há muito tempo se descolou e não depende, principalmente, das contas primárias do governo. Ela ganhou autonomia, tem um movimento próprio, que amplia o seu montante permanentemente e que está associado à abertura financeira, à entrada de capitais estrangeiros especulativos no país”, explica. E resume: “O ajuste fiscal não tem capacidade de resolver o problema, simplesmente porque a dívida é recriada permanentemente na relação do governo com os mercados financeiros”.

Economistas críticos ao caminho que vem sendo seguido para o ajuste fiscal apontam ainda que o crescimento da dívida é, na verdade, um efeito esperado do modelo de desenvolvimento adotado, com pequenas variações, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, baseado no chamado “tripé macroeconômico” que, além do superávit primário, inclui também metas de inflação com manutenção de alta taxa de juros e o câmbio flutuante. Esses dois últimos elementos do tripé dizem respeito à política monetária que tem se caracterizado no Brasil como restritiva. “Eu subo a taxa de juros, o que é bom para quem vem de fora. Aqui dentro a taxa está tão alta que o empresário não pega empréstimo, o que ajuda a segurar a inflação também. E o governo reduz a emissão de moeda, também para não movimentar muito a economia”, resume Áquilas Mendes. Para reduzir a circulação de dinheiro, explica Carcanholo, o governo precisa comprar moeda no mercado monetário e ele faz isso trocando por títulos da dívida pública federal. Segundo o economista da UFF, esse mecanismo está na base da “real causa” do aumento da dívida brasileira, que subiu de R$ 1,01 trilhão em 2004 para R$ 2,5 trilhões em meados deste ano. “As taxas de juros não são altas porque a dívida é elevada, mas exatamente o contrário”, conclui o artigo.

Procurado pela Poli para falar sobre o ajuste e rebater as críticas, o Ministério da Fazenda não respondeu às perguntas enviadas nem retornou sobre o pedido de entrevista.

O ajuste na vida real

Mas como todo esse mecanismo afeta a vida das pessoas concretas? Começou-se a falar mais fortemente do ajuste fiscal quando foram anunciados os cortes no orçamento federal de 2015, o que aconteceu em dois momentos complementares. Mais recentemente, em setembro, o governo apresentou um novo pacote de medidas que confirmam a opção pela redução dos gastos públicos como caminho do ajuste, gerando uma nova tesourada no total de R$ 26 bilhões.

Mesmo antes desse pacote, no entanto, iniciativas como as Medidas Provisórias 664 e 665 (ver pág. 14), que atingem principalmente desempregados, trabalhadores afastados por doença e pensionistas, já sinalizavam um ataque aos direitos sociais em nome do ajuste fiscal.  E tudo indica que ainda não acabou: sob o argumento de que é preciso fazer “mudanças estruturais”, cresce a cada dia, por exemplo, a grita de ‘analistas’ econômicos e políticos por uma reforma da previdência, justificada sempre por um déficit que simplesmente não existe, como você verá em outra matéria desta série. Além de uma mudança que dificulte ainda mais a aposentadoria, Filgueiras alerta que, na esteira do ajuste, outras potenciais contrarreformas podem estar prestes a ser implementadas: uma reforma trabalhista, que generalize a terceirização e marque o predomínio do “negociado sobre o legislado”, como já propõe o Programa de Proteção ao Emprego, que acaba de ser aprovado no Congresso; uma reforma tributária que piore ainda mais o caráter recessivo dos impostos no país; e a legalização do pagamento de mensalidade nas universidades públicas que, para alguns cursos, já foi inclusive aprovada em primeira instância na Câmara dos Deputados. “O ajuste tem, claramente, um caráter de classe: é uma escolha a favor do capital, em especial do capital financeiro, e dos mais ricos; e contra os trabalhadores, em especial seus segmentos mais fragilizados”, conclui.