Se em 1999, com o lançamento do Profae, o foco era a formação em massa na área da enfermagem, dez anos depois, a criação do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps) aponta para uma necessidade de ampliação. Tendo como aposta inicial a formação técnica em quatro áreas consideradas estratégicas pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) – Vigilância em Saúde, Radiologia, Citopatologia e Hemoterapia – o programa também prevê a formação de técnicos para as áreas de Manutenção de Equipamentos, Saúde Bucal, Prótese Dentária e Enfermagem; a qualificação em Saúde do Idoso para as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e para os profissionais de enfermagem que atuem em instituições de longa permanência; além da formação dos agentes comunitários de saúde.
Quem acompanha os caminhos da educação profissional em saúde reconhece que o Profae preparou terreno para a operacionalização de ações abrangentes como o Profaps, cuja meta de formação expressa no ‘Mas Saúde: Direito de Todos’ é de 260 mil trabalhadores até o fim deste ano. “O Profae serviu de inspiração para criação e implementação do Profaps por ter sido um programa bem-sucedido, que tem servido de modelo até para outros países. O fato de o Profae ter tido um papel relevante na estruturação da RET-SUS, aliado à necessidade de planejamento da formação da força de trabalho para o SUS, ajudou no planejamento do Profaps”, explica a diretora do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Deges/SGTES/MS), Ana Estela Haddad.
Início de tudo
As primeiras menções ao Profaps datam de 2006, por ocasião do ‘Seminário Internacional de Educação Profissional em Saúde’ promovido pelo Ministério da Saúde. No entanto, foi em 2008, com a publicação do ‘Mais Saúde: direito de todos’ – que tinha entre as suas diretrizes estratégicas “ampliar e qualificar a força de trabalho em saúde, caracterizada como um investimento essencial para a perspectiva da evolução do SUS” – que o Profaps começou a tomar forma.
Nesse meio tempo, ficou evidente a necessidade de formação de técnicos para áreas estratégicas, como explica a ex-coordenadora de Ações Técnicas do Deges, Ena Galvão: “Se o ministro da Saúde determinasse que todas as mulheres em idade fértil fizessem o papanicolau, que é um exame relativamente simples para a prevenção do câncer, ia haver um congestionamento no serviço porque não há citotécnico que faça isso”.
Ena lembra que outras áreas foram definidas em apoio a políticas do governo federal, como a ampliação da equipe da ESF, que ao incorporar a odontologia previu a figura do técnico em saúde bucal, e do Brasil Sorridente, que exigia o técnico em prótese dentária. “Pensamos em Radiologia e em Biodiagnóstico abrindo para três áreas: Patologia, Citologia e Hemoterapia. A Manutenção de Equipamentos a gente pensou em formar o técnico porque muita coisa ele dá conta de fazer, sem a necessidade de contratação de um engenheiro, por exemplo”, enumera. Ena conta que, no início, o Profaps foi pensado em duas etapas: a primeira com cinco anos e a segunda com três. Na primeira, havia a estimativa de formar 745 mil trabalhadores em todas as áreas, com base em dados da Organização Mundial da Saúde e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Segundo Ena Galvão, assim como no Profae, nos primórdios, o Profaps tinha dois componentes, que incluiriam a profissionalização do trabalhador (com dois subcomponentes: formação e especialização) e o fortalecimento das instâncias reguladoras e formadoras (que abrangeria quatro subcomponentes: formação docente, ETSUS, estudos e pesquisas e certificação profissional). “Gostaria de ver investimento em modernização e inovação tecnológica, para começar, junto com o Telessaúde, e pensar em educação à distância como um processo de educação permanente seja para técnicos, seja para docentes ou para tutores”, afirma a ex-coordenadora.
Profaps hoje
Divulgado em dezembro de 2009 pela Portaria nº 3.189, o Profaps determina que as ETSUS, as Escolas de Saúde Pública e os Centros Formadores vinculados às gestões estaduais e municipais de saúde tenham prioridade na formulação e execução técnica e pedagógica dos cursos. Secretário da SGTES na ocasião da formulação do Profaps, Francisco Campos destaca a importância do programa para as ETSUS: “O Profaps tem solicitado das escolas técnicas um maior desenvolvimento educacional e aportes de conhecimentos científicos específicos para a elaboração de mapas de competências, marcos de orientações curriculares, planos curriculares e execução dos cursos priorizados. Nesse sentido, o Profaps tem induzido o desenvolvimento da RET-SUS no que refere à gestão e organização escolar, planos de cursos, recursos educativos e à formulação de estratégias e processos políticos de execução dos cursos”.
Segundo Campos, para melhor compreender o papel do Profaps para o SUS, é preciso colocar em destaque a participação dos trabalhadores que possuem níveis de escolaridade fundamental e médio, que no conjunto perfazem em média 60% da força de trabalho do setor saúde. Segundo o ex-secretário, uma parcela expressiva desse contingente não tem formação profissional específica, embora atue diretamente com a população, usuários e pacientes dos serviços de atenção à saúde.
O ex-secretário alerta que os desafios da gestão do trabalho em saúde são de ordem internacional: “O Relatório Mundial da Saúde de 2006 aponta um déficit de 4,3 milhões de trabalhadores de saúde em todo o mundo. Entretanto, o Brasil – por reconhecer o papel central dos profissionais de saúde para os serviços e sistemas de saúde –, nos últimos dez anos, estabeleceu e está cumprindo uma agenda prioritária e estratégica para o enfrentamento de problemas que atingem a força de trabalho em saúde, tanto no plano da formação e qualificação profissional como da regulação do trabalho”.
Em 2010, o repasse de R$ 60 milhões aos estados, por meio da Portaria nº 1.626 do Ministério da Saúde, possibilitou o início efetivo da implementação do Profaps. “A transferência foi realizada na modalidade fundo a fundo, para a execução dos cursos pactuados nas Comissões Intergestores Bipartite (CIB) conforme projetos apresentados pelas ETSUS, proporcionando 21.344 vagas para trabalhadores do SUS”, explica a coordenadora-geral de Ações Técnicas em Educação na Saúde, Clarice Ferraz. Para ela, a avaliação do programa é muito positiva por ter condução coletiva.
Educação permanente e Profaps
Francisco Campos analisa que a importância da ordenação de recursos humanos está na possibilidade se estabelecer políticas de educação na saúde em consonância com os princípios doutrinários e organizativos do SUS e com as diretrizes da educação definidas pelo Ministério da Educação (MEC). “Nos últimos anos tomamos como referência o Pacto pela Saúde, em especial, os Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e o de Gestão, para a construção de políticas de educação que qualifiquem os processos de atenção e de gestão de serviços de saúde”, afirma.
Para ele, a Política de Educação Permanente em Saúde (Pneps) e o Profaps priorizam a qualificação e a formação de trabalhadores inseridos no SUS. “Os pressupostos de orientação das ações educativas desses programas fundamentam-se na integração ensino-serviço, no trabalho em equipe em formato multiprofissional e cooperativo, no conhecimento interdisciplinar e de abrangência sociocultural, articulando as bases epistemológicas da saúde, da educação e do trabalho, a fim de superar os paradigmas tecnicistas da formação e das práticas profissionais”.
Representante da Opas na Comissão Geral de Coordenação da RET-SUS, Cláudia Marques, observa que “ao ampliar a oferta de educação profissional para outras categorias da saúde na perspectiva política e ideológica da educação permanente, o Profaps também amplia os espaços de reflexão crítica no interior dos serviços de saúde articulando novos atores aos processos de mudança institucional, ao tempo em que fortalece a própria Pneps”.
Para Gilson Cantarino, representante do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) na RET-SUS, a demanda pela educação em saúde não pode vir da academia para o serviço. “Depois do Profae, houve um reconhecimento de que outras áreas precisavam de investimento na qualificação dos profissionais. No grupo de trabalho de Recursos Humanos da CIT chegamos a esse ponto de convergência”, afirma. Ele lembra que no Seminário para Construção de Consensos, com o tema ‘Recursos Humanos: um desafio do tamanho do SUS’, realizado pelo Conass em 2004, os gestores já haviam discutido e formulado posições consensuais em relação à gestão, à formação e ao desenvolvimento dos profissionais da área de saúde. “Definimos prioridades a serem pactuadas com o Ministério da Saúde e o Conasems. A partir disso, iniciou-se a discussão sobre o que, mais tarde, veio a ser o Profaps”.
Para iniciar a formatação dos cursos, o Ministério da Saúde convidou quatro instituições para coordenarem o ‘Projeto de Apoio ao Desenvolvimento do Profaps’. A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) coordena a área de Vigilância em Saúde. Já Citologia é coordenada pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca). Hemoterapia tem a coordenação da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais e Radiologia ficou a cargo da Escola de Saúde Pública do Ceará.
Em um trabalho conjunto de diferentes atores dos sistemas de saúde e educação representados por ETSUS, instituições formadoras, de associações de classes e dos próprios serviços, foram discutidos os mapas de competências profissionais e os marcos de orientações curriculares para os quatro cursos prioritários. Como resultado, foram elaborados manuais com diretrizes para a formação dos técnicos nessas áreas. O objetivo dos encontros foi fundamentar a construção de um projeto de ensino em sintonia com os modelos de atenção à saúde, privilegiando ao mesmo tempo o desenvolvimento da capacidade de intervenção crítica e criativa das ETSUS. “As escolas estão sendo preparadas para implementar novos cursos, trabalhando em rede. No ano passado realizamos uma série de reuniões para definirmos os mapas de competências de cada curso. Isso foi definido junto com a rede e outros atores. Agora, os projetos pedagógicos dos cursos estão sendo elaborados, com base nestes mapas de competências”, detalha Ana Estela.
Para a representante do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) na Comissão da RET-SUS, Elizabeth Vieira Matheus da Silva, o Profaps é importante porque atua em larga escala. “No médio prazo teremos profissionais qualificados em todas as regiões. Além disso, reforça a importância do processo de pactuação dos gestores com o SUS, através das CGRs e da CIT”.
Elizabeth considera ainda que as escolas têm papel importante nas regiões porque podem contribuir com os gestores, dando subsídios para a elaboração de políticas públicas que contemplem a educação profissional em saúde. “Elas colaboram para que a política de educação para o SUS seja baseada nas necessidades locorregionais. Mas é importante que escolas e secretarias se ouçam, para que possam entender melhor o funcionamento uma da outra. Já houve avanços, mas a relação tem que ser mais estreita”, completa.
Sobre os cursos prioritários do Profaps, Elizabeth afirma que ao se garantir a formação de qualidade, quem ganha é o SUS, que oferecerá melhor atendimento à população. “Oferecer o curso de Vigilância em Saúde assegura um salto de qualidade por se tratar de uma visão mais ampla da vigilância, que engloba muitos fatores e resulta em atendimento mais completo”, diz. Ela afirma, ainda, que, seja na implementação do Profaps ou de outras políticas públicas de educação em saúde, “as secretarias municipais podem contribuir para a regionalização do serviço e também ao apontar problemas que acontecem na ponta, resultando na reação do Ministério e das escolas com novas políticas educacionais”.
Participação das ETSUS
Em 2010, a SGTES promoveu três rodadas de oficinas em que representantes das escolas discutiram as estratégias de operacionalização dos cursos, assim como seus projetos. A primeira oficina foi realizada em Brasília e abordou as bases e referenciais de funcionamento das ETSUS e debateu um projeto de monitoramento e acompanhamento do programa de trabalho da RET-SUS. Os encontros seguintes foram regionais. As discussões foram mais específicas, levando em conta as peculiaridades de cada área.
A diretora do Deges destaca como ponto positivo do Profaps a maior aproximação com o MEC e os Conselhos Estaduais de Educação. “As oficinas contaram com a participação dos Conselhos, o que foi importante para sensibilizá-los sobre as especificidades da educação profissional em saúde. Estamos analisando para levar ao MEC algumas questões que talvez impliquem na necessidade de adequação das normativas da educação profissional geral, para a área da saúde”, conta.
Uma das dificuldades para a implementação dos cursos apontada pelos diretores das ETSUS é a liberação do profissional do serviço pelos gestores. O representante do Conass contorna a questão: “O gestor tem grande interesse em liberar o profissional do serviço para as aulas. É ele que apresenta as demandas às escolas e é ele que sofre as consequências se o serviço prestado não for de boa qualidade”. Gilson afirma ainda que diante de tantas dificuldades enfrentadas pelos gestores, a educação acaba ficando em outro plano. “As ETSUS deveriam ser mais valorizadas porque são muito importantes para o SUS. Infelizmente, ainda não é o que acontece”, pondera.
Outro obstáculo à implantação do Profaps apontado em algumas regiões durante as oficinas foi a identificação da demanda pelos profissionais. Há estados em que determinados serviços – como hemoterapia e citopatologia – são prestados por instituições privadas, o que dificultaria a realização de dispersões, estágios e até mesmo a inserção do trabalhador e o aproveitamento pleno do técnico pelo SUS. “O Conass acompanha o desenvolvimento do Profaps através de nossa câmara técnica, que faz reuniões e se comunica sempre. Temos como norte o Pacto de Gestão da Saúde e a consciência de que cada região, cada estado, vai nos dizer que profissional precisa qualificar”, conta Gilson. Para ele, a educação em saúde cresceu e se fortaleceu. “Mas os resultados só serão sentidos a longo prazo”.
Para Clarice Ferraz, o Profaps contribui para o fortalecimento das ETSUS. “Sob a perspectiva da gestão escolar na medida que as escolas avançam e ampliam a oferta para diferentes cursos técnicos de nível médio, a qualificação da estrutura organizativa da escola e da coordenação pedagógica vem a reboque”, explica. Ela considera que o trabalho conjunto e articulado com áreas técnicas do Ministério da Saúde, universidades, Conass e Conasems na construção dos mapas de competências e orientações curriculares deu à RET-SUS visibilidade política e técnica, agregando em conhecimento e parcerias.
Claudia Marques endossa a importância do Profaps para as ETSUS: “Como programa estruturante da política de educação na saúde da SGTES, acredito que o Profaps permitirá um avanço significativo para a educação profissional porque, dentre suas propostas de implementação, estão estratégias para promover o fortalecimento institucional das Escolas Técnicas do SUS e ampliar a qualificação dos docentes das várias categorias profissionais da saúde”.
Perspectivas
Ao olhar para o futuro, Clarice Ferraz considera que o legado mais importante do Profaps é a possibilidade de consolidação de uma política de educação técnica profissional em saúde. Já Cantarino ressalta que a qualificação dos profissionais do SUS é um processo dinâmico e permanente. “Estão surgindo novas demandas, como a rede de armazenamento de vacinas. Em breve o Profaps terá que ser ampliado”, prevê.
Para Ana Estela, o Profaps resultará em amadurecimento pedagógico das escolas, maior articulação entre ensino e serviço, além de fortalecer a educação permanente em saúde. “Espera-se como produto um atendimento mais qualificado no SUS”.
Em novembro passado, representantes regionais eleitos pelas ETSUS, representantes das instituições apoiadoras e especialistas de cada área se reuniram com técnicos e consultores da Opas e do Deges, em Brasília, para dar início à elaboração do material didático para os cursos prioritários do Profaps. Além de discutir os aspectos pedagógicos, os participantes se comprometeram a pesquisar a produção já existente. A preocupação geral é que o material didático contemple as especificidades da formação técnica de nível médio para os profissionais do SUS.
Para o coordenador do programa de cooperação internacional / TC 41 da representação da Opas no Brasil, José Paranaguá Santana, o cenário atual é muito diferente do que existia há dez anos. “Uma opinião, em caráter muito pessoal, é que nesta década a evolução da educação técnica no Brasil teve uma fase muito turbinada, impulsionada pelo Profae. Com o fim do Projeto, passa-se a ter aquela situação de que isto tem que se tornar uma presença no financiamento regular dentro da política de recursos humanos do SUS. A minha avaliação é de que ou nós retomamos o tema da educação técnica, resultando em um programa mais consistente na área, ou vamos ter, em 2020, uma situação muito parecida com aquela que tínhamos em 2000”, analisa.
Paranaguá considera ainda que este momento de início de novas gestões nos estados é propício para que os secretários destinem recursos para as escolas técnicas, garantindo um financiamento não inteiramente dependente da esfera federal. “O Profaps precisa não só ser consolidado, mas muito fortalecido neste atual governo”, avalia. Para ele, a situação epidemiológica, social e econômica do país e as novas demandas do desenvolvimento das tecnologias de prestação de cuidado à saúde estão apresentando uma realidade que se impõe e não permite estagnação. “Se não abrirmos o olho vamos estar diante de um bocado de alternativas de atendimento e tecnologias disponíveis nos serviços, mas que vão ser mal utilizadas e sucateadas por falta de profissionais qualificados para operá-los”, finaliza.