“Eu sou Débora, tenho 57 anos. O meu filho, Edson Rogério Silva dos Santos, tinha 29 anos, era negro, gari e deixou um filho de três anos na época, que hoje está com 13. A morte do meu filho foi uma das piores coisas que aconteceu na minha vida, e o que de pior pode acontecer na vida de todas as mães. Não se mede a dor de ter um filho assassinado”. Já faz mais de dez anos que Débora Maria da Silva convive com a dor da perda do filho. Foi no dia seguinte ao Dia das Mães, em maio de 2006, que Edson foi morto a tiros, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Débora não tem dúvidas de que foram policiais que tiraram a vida de seu filho. “Um dia antes eu havia recebido um telefonema de um policial da família me avisando que ia ter um toque de recolher”, afirma. Toques de recolher decretados por agentes de segurança pública foram comuns entre os dias 12 e 26 de maio de 2006 em todo o estado de São Paulo. Numa represália a ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), nos quais 59 agentes de segurança pública foram mortos, a polícia paulista deu o troco. Segundo Débora, foi no dia 13, véspera do Dia das Mães, que os ataques começaram para valer. Grupos de motoqueiros encapuzados e carros com vidros pretos cruzaram bairros pobres de periferia atirando. “A gente já sabia que quem estava debaixo do capuz era o Estado”, diz. Ao final de duas semanas, 505 civis haviam sido mortos. Entre elas, o filho de Débora, morador de Santos, no litoral paulista. “Muitos que não deviam nada para a polícia foram para a rua e foram atingidos. A minha filha, que fez o reconhecimento do corpo, viu tantos corpos no IML que não cabiam nem na câmara frigorífica, estavam jogados até no chão”, relata.
Com a morte do filho, Débora relata que entrou em depressão e acabou numa cama de hospital. “Quando me levantei, foi pelo meu filho. Saí atrás das mães que eu vi na televisão, que perderam seus filhos na chacina”. Daí surgiu o Movimento Mães de Maio, que até hoje luta por justiça para as vítimas do episódio que ficou conhecido como os Crimes de Maio. “Eu toquei o barco dando coragem para essas mulheres para enfrentar o que vinha pela frente. O caminho da justiça é um caminho longo”, diz Débora, que coordena o movimento. Um ofício assinado por 79 promotores do Ministério Público da capital paulista no dia 25 de maio daquele ano que a fez perceber o quão longo esse caminho seria. Nele, os promotores saudaram o Comando Geral da PM pela “eficiência” no “reestabelecimento da ordem”. “Temos um país que mata pobre e negro porque é muito provável não ter justiça”, indigna-se.
Violência bate recordes
E nunca se matou tanto no Brasil: segundo dados do Atlas da Violência, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em março deste ano, foram cometidos 59.216 homicídios em 2014, um recorde na história do país. Em números absolutos, não há país no mundo em que se mate mais do que no Brasil. Assim como em levantamentos anteriores, fica clara no relatório a dimensão racial dessa violência. De acordo com os dados, as chances de um jovem negro de 21 anos morrer assassinado são 147% maiores do que as de um jovem não negro. Na última década, a taxa de homicídios entre a população negra aumentou 18,2%, ao mesmo tempo em que houve uma diminuição de 14,6% na vitimização de indivíduos não negros. A cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil. Também chama atenção no Atlas da Violência, que traz dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o alto índice de mortes causadas especificamente pela polícia em 2014, com um aumento de 37% em relação ao ano anterior: foram 3.022 casos. Na maioria dos estados, não há registros sobre a cor das vítimas, mas as informações existem nos dois estados onde a ocorrência foi mais frequente. Em São Paulo, 61% das 965 vítimas eram negras, e no Rio de Janeiro, das 584 pessoas mortas pela polícia em 2014, 77% eram negras. Segundo dados compilados pela Anistia Internacional, 77% dos 30 mil jovens entre 15 e 29 anos assassinados em 2013 no Brasil são negros.
“O Brasil é a democracia da chacina, é o país do genocídio”, desabafa Débora. Conclusão semelhante tiveram os relatores de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal encerrada em junho deste ano depois de sete meses de trabalho e 21 audiências públicas realizadas, das quais participaram diversos movimentos que abordam a temática, entre eles o Mães de Maio. “Em um ambiente onde a omissão do poder público suscita o aparecimento de grupos organizados de traficantes, bem como de milícias, os índices de violência contra a juventude negra atingem o paroxismo. De outro lado, o crescimento da violência policial contra esses jovens também é uma chocante realidade”, apontou o relatório, que descreveu como “genocídio da população negra” a situação de violência contra os jovens negros, em reconhecimento a uma bandeira histórica do movimento negro no país. “O que a gente chama de genocídio é esse processo de eliminação que se dá direta e indiretamente por ação ou omissão do Estado, que vem se estendendo por diversas gerações”, diz Andreia Beatriz Santos, coordenadora da Campanha ‘Reaja ou será Morto, Reaja ou Será Morta’, que desde 2005 faz a denúncia da violência policial contra a população negra na Bahia. “Falar em genocídio tem a ver com o reconhecimento de que nós vivemos num Estado racista, em que as instituições são formadas e têm sido alimentadas para manter essas práticas racistas. É uma categoria que nos ajuda a pensar também nos efeitos dessas mortes sobre as comunidades: as mães, familiares que entram em depressão, que se suicidam, que começam a sofrer de alcoolismo, que ficam sem condições de trabalhar. Para nós tudo isso faz parte desse processo de genocídio”, explica Andreia.
Impunidade para policiais homicidas gera revolta
Entre outras recomendações feitas pelos senadores no relatório da CPI está a extinção dos chamados autos de resistência, que há anos são denunciados pelos movimentos sociais como instrumentos que permitem mascarar homicídios decorrentes de execuções como sendo fruto de confrontos com as vítimas, que acabam sendo culpabilizadas. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas em casos listados como autos de resistência entre 2008 e 2013, ou seis mortes por dia. Uma pesquisa do sociólogo Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por sua vez, apontou que 99,2% dos inquéritos de autos de resistência acabam sendo arquivados.
Para revolta de Débora Maria da Silva, foi o que aconteceu no caso dos Crimes de Maio. “Mais de 500 pessoas foram assassinadas num espaço de duas semanas, e todos os inquéritos foram arquivados. É um absurdo”, protesta. O movimento do qual ela é coordenadora hoje luta pela federalização das investigações sobre os crimes ocorridos em 2006. Em maio deste ano, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao Superior Tribunal de Justiça que transfira para a Polícia Federal a investigação sobre a morte de quatro jovens baleados por homens encapuzados no Parque Bristol, em São Paulo, em 14 de maio de 2006. Alegando que a polícia paulista e o Ministério Público Estadual cometeram “falhas e omissões gravíssimas” na investigação dos crimes, Janot atendeu a um pedido feito em 2009 por familiares das vítimas e pela Organização Não-governamental Conectas. Segundo Débora, o Movimento Mães de Maio pediu a federalização também dos assassinatos cometidos na Baixada Santista em maio de 2010, mas até hoje não obteve resposta. “Na Baixada Santista, os corpos dos nossos filhos foram preservados por conta de um decreto da Prefeitura, em resposta à pressão do movimento. Então podemos provar que eles foram executados sumariamente”, diz Débora. Segundo ela, assim como nos casos do Parque Bristol, são flagrantes as falhas na investigação dos crimes pelo Ministério Público estadual. “Nós, como donas de casas, constatamos que havia vários erros ali. Meu filho, por exemplo, foi enterrado com o projétil na espinha cervical, que deveria ser uma das principais peças na investigação”, acusa. E questiona: “Por que só federalizar alguns casos? A obrigação era federalizar todos”. Segundo estudo da ONG Justiça Global, há indícios de envolvimento de policiais fardados ou encapuzados em pelo 122 execuções ocorridas entre 12 e 26 de maio de 2006. Até hoje, apenas um policial militar foi a julgamento acusado de participação em grupos de extermínio que atuaram no período. O cabo da PM Alexandre André Pereira da Silva foi condenado a 36 anos pelo assassinato de Murilo de Moraes Ferreira, Felipe Vasti Santos de Oliveira e Marcelo Heyd Meres em um lava rápido no Jardim Brasil, zona norte de São Paulo. O réu aguarda o julgamento do recurso em liberdade. “Foi a única condenação que saiu e a gente soube recentemente que ele continua trabalhando, mesmo tendo sido condenado. É um absurdo, isso só dá carta branca para matar. E estão matando cada vez mais”, protesta Débora.
Ana Paula de Oliveira sentiu na pele os efeitos da impunidade na perpetuação da violência. Seu filho Jhonatha, de 19 anos, foi morto no dia 14 de maio de 2014 com um tiro nas costas por um policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela de Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro. Segundo ela, o policial que matou Jhonatha respondia na justiça por três homicídios cometidos em 2013 na Baixada Fluminense. “É revoltante saber que ele continuou solto, com a certeza de que podia continuar matando dentro das favelas. Saber disso me deu mais força ainda para lutar por justiça no caso do meu filho”, diz Ana Paula. Ela conta que a mobilização dos moradores articulados através do Fórum Social de Manguinhos foi essencial para evitar que o caso fosse arquivado. Na última audiência realizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em maio, foi apresentado um exame balístico que concluiu que o projétil que matou Jhonatha partiu da arma do policial militar Alessandro Marcelino de Souza, que no registro da ocorrência alegou que não havia participado da operação que resultou na morte de Jhonatha e que não fez nenhum disparo. Ana Paula, no entanto, afirma que a audiência a deixou “apavorada”. “Eu nunca tinha entrado num tribunal, e tinha uma grande ilusão de que ali encontraria justiça. Mas para nós familiares é mais tortura, sabe? Porque fica bem nítido que quem está sendo julgado ali não é o réu, é a vítima. Tive que responder perguntas do tipo: ‘o que o Jhonatha fazia da vida? Ele tinha envolvimento com o tráfico de drogas? Enquanto isso o réu fica lá fazendo cara de vítima. A vítima é o meu filho, que foi assassinado jovem, com uma vida toda pela frente. É revoltante ver que a Justiça compactua com essas mortes”, desabafa. De 2013 até agora, o Fórum Social de Manguinhos acusa policiais da UPP de matarem sete jovens na comunidade. “Não adianta trocar a cor da roupa da polícia, o treinamento é o mesmo, a instituição polícia é a mesma. As pessoas costumam falar que os policiais são despreparados, mas é o contrário: eles são preparados para agir dessa forma dentro das favelas, com violência e violação de direitos”, diz Ana Paula.
Andreia Beatriz concorda: “Existe um modelo de formação das polícias que é de combater as pessoas que possuem determinadas características, e isso não pode ser negligenciado. A gente tem vários instrumentos, sobretudo no estado da Bahia, que têm dito isso”, afirma Andreia. Ela cita como exemplo uma cartilha da tatuagem, da Secretaria de Segurança Pública do Estado, que associa determinadas marcas no corpo a uma suposta vinculação com o crime organizado. “Ali tem elementos das religiões de matriz africana, que dizem respeito à identidade da gente. Me lembro também há alguns anos de uma ordem da PM em Campinas, após um assalto em um bairro nobre, que era para ficar atento a homens negros e pardos. Se hoje temos um número enorme de jovens negros sendo mortos pela polícia é porque temos uma política de segurança pública racista que reconhece jovens negros como inimigos do Estado, como potenciais suspeitos, perigosos, passíveis de serem mortos”, comenta Andreia.
Na Bahia, terceiro entre os estados em que a polícia mais mata no Brasil, depois de São Paulo e Rio de Janeiro, grande parte dessas mortes também acaba impune, como mostrou o caso da Chacina do Cabula, em Salvador. Em fevereiro de 2015, uma operação no bairro da capital baiana terminou com 12 jovens negros mortos pela polícia, num suposto confronto entre guarnições das Rondas Especiais (Rondesp) da Polícia Militar da Bahia com um grupo suspeito de atuar em assaltos a bancos. Durante a operação, os nove policiais envolvidos dispararam 143 tiros, dos quais 88 foram encontrados nos corpos das vítimas. Laudos necrológicos apontaram que a maioria dos tiros foi disparada a curta distância e de cima para baixo, indícios de que os jovens foram executados. Poucas horas após a chacina, o governador baiano, Rui Costa, causou revolta com uma declaração em que comparou a situação a uma partida de futebol. “É como um artilheiro na frente do gol, que tenta decidir, em poucos segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol. Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas”, afirmou. Em junho, uma denúncia do Ministério Público da Bahia, que acusou os policiais envolvidos de terem premeditado uma emboscada contra os jovens, foi acolhida pela Justiça baiana. Pouco mais de um mês depois, no dia 24 de julho, a juíza substituta Marivalda Almeida Moutinho absolveu todos os envolvidos. “Era uma fase de levantamento de provas, de ouvir as testemunhas, de ouvir tudo, e a juíza deliberadamente encerrou o processo”, protesta Andreia Beatriz. Em parceria com a Justiça Global, a Campanha entrou com pedido de federalização da investigação, e em junho deste ano a Procuradoria Geral da República acatou o pedido, apontando que houve incongruências na investigação conduzida pelo judiciário estadual. Pesou na decisão da PGR a repercussão internacional do caso, que foi objeto de uma representação da Justiça Global e da Campanha ‘Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta’ junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Andreia conta que, sobretudo depois dessa intervenção, integrantes do grupo passaram a receber ameaças. “O que acontece é que esses policiais não foram afastados da atuação naquela localidade, o que é muito grave. Muitos pais e mães de vítimas continua-ram vendo esses policiais que participaram dessa chacina. E a gente começou a sofrer uma série de intimidações. Por diversas vezes a gente teve que sair de Salvador, alguns familiares das vítimas também foram retirados estrategicamente de Salvador, temporariamente, por conta desse processo de intimidação”, revela.
A articulação entre movimentos de vários estados e com organizações de defesa dos direitos humanos tem sido uma arma no fortalecimento dessa agenda em nível nacional. Este ano, no final de julho, vários deles, incluindo a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, o Movimento Mães de Maio e o Fórum Social de Manguinhos, se reuniram na capital fluminense para lembrar os 23 anos da Chacina da Candelária, quando oito meninos foram assassinados por um grupo de extermínio enquanto dormiam em frente a tradicional igreja no centro do Rio. O episódio se tornou um marco da violência do Estado contra a juventude negra no Brasil. “É importante lembrar da Candelária porque acontecem tantas chacinas ainda no Rio de Janeiro que corre o risco de as pessoas se esquecerem. Nossa sociedade continua achando que chacina é solução, e não é”, afirma Patrícia Oliveira, irmã de Vagner dos Santos, um dos sobreviventes da chacina que hoje vive no exterior. Ativistas do movimento Black Lives Matter, que luta contra a brutalidade policial nos Estados Unidos, estiveram presentes no evento. “Eu acho que a vinda do Black Lives Matter é importante, porque as autoridades ouvem mais quem vem de fora do que os próprios brasileiros. Quando a gente se junta com eles é para globalizar a nossa luta, porque a bala que mata lá é a mesma que mata aqui, é o mesmo dedo indicador do Estado quem aperta o gatilho. Se a gente globalizar a nossa luta a gente avança”, ressalta Débora Maria. Ana Paula de Oliveira relata que o Fórum Social de Manguinhos aproveitou a vinda dos ativistas norteamericanos para promover debates em escolas públicas da região. “A gente acha superimportante fazer esse diálogo nas escolas, que é onde estão os jovens que são vítimas dessa violência, para trocar experiências sobre o que é ser negro, morador de favela. Para mim foi muito emocionante ir ao Colégio Clóvis Monteiro, que foi onde eu estudei – quando saí estava grávida do Jhonatha, que também estudou ali”, relata.
Segundo Débora, os movimentos também têm procurado fortalecer as parcerias com organizações como Justiça Global e Anistia Internacional, que esse ano articulou uma campanha para denunciar o aumento do número de mortos pela polícia do Rio de Janeiro no contexto de preparação para as Olimpíadas. Segundo Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional, nos três meses anteriores ao evento houve um aumento de 103% no número de jovens mortos pela polícia na cidade. “No Rio de Janeiro os dados mostram que a polícia tem sido responsável por um a cada cinco homicídios. Isso só pode ser descrito como um estado de falência da segurança pública”, opina Átila. Para ele, os grandes eventos têm trazido um recrudescimento de um padrão repressivo altamente violento. “Quando o Estado se vê diante de um grande evento, ele simplesmente aumenta a intensidade da estratégia de segurança pública focada em operações altamente militarizadas. A gente viu isso durante a Copa, quando tivemos um aumento de 40% no número de pessoas mortas durante operações policiais em relação ao ano anterior”, enumera Átila. E completa: “Não é aceitável que a gente continue a admitir que a violência letal seja orientada de maneira tão seletiva, sob essa naturalização do racismo, da desigualdade e da violência. É preciso romper com a indiferença dessa sociedade que vai dormir e acorda como se não estivesse ocorrendo um massacre ao seu redor”, protesta.