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Trabalhadores da saúde têm piso salarial nacional aprovado no Congresso

Emenda Constitucional garante aos ACS e ACE um piso de dois salários mínimos. Na Câmara, projeto de lei estabelece piso para trabalhadores da enfermagem, mas sanção ainda depende de definição sobre fontes de custeio
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 06/05/2022 10h50 - Atualizado em 01/07/2022 09h40
Agentes de saúde acompanham a votação no Senado Foto: Agência Senado

Categorias de trabalhadores da saúde conquistaram vitórias importantes no Congresso Nacional na última semana. Na quinta-feira (05), o Senado promulgou a Emenda Constitucional 120, que garante aos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Combate às Endemias (ACE) um piso salarial de dois salários mínimos, equivalente a R$ 2.424 atualmente, além de prever adicional de insalubridade e aposentadoria especial “devido aos riscos inerentes às funções desempenhadas” pelos agentes. Pelo texto, os valores deverão ser repassados pela União aos estados e municípios, que por sua vez deverão estabelecer outras vantagens, incentivos, auxílios, gratificações e indenizações a esses trabalhadores.

Na véspera, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.564/2020, que define um piso salarial nacional para os profissionais da enfermagem tanto do setor público quanto do privado. O projeto aprovado pelos deputados estabelece um piso de R$ 4.750 para enfermeiros, de R$ 3.325 (equivalente a 70% do piso dos enfermeiros) para os técnicos em enfermagem e de R$ 2.375 (50% do piso dos enfermeiros) para os auxiliares e parteiras.

Representantes das categorias organizaram comitivas com milhares de trabalhadores para acompanhar de perto a votação dos projetos, cuja aprovação se deu com ampla maioria no Legislativo. A Emenda Constitucional 120 foi aprovada (como PEC 9/22) por unanimidade em dois turnos em uma só sessão do Plenário do Senado, que ocorreu na quarta à tarde, depois da aprovação da matéria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) pela manhã.  De autoria do deputado federal Valtenir Pereira (MDB-MT), e relatado no Senado pelo senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL), a proposta havia sido aprovada na Câmara dos Deputados no dia 23 de março, em uma votação que teve apenas nove votos contrários no primeiro turno e 12 no segundo. A aprovação da matéria, que tramitava desde 2011 no Congresso Nacional, foi celebrada pelas entidades que representam os ACS e ACE. “É uma vitória histórica. Aprovamos a nossa terceira emenda à Constituição brasileira”, destacou, em uma publicação no Youtube, a presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) Ilda Angélica. Luís Cláudio Celestino, presidente da Federação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Fenasce), que também acompanhou a votação, destacou ao Portal EPSJV/Fiocruz a importância da aprovação: “Nenhum ACS ou ACE do país poderá receber menos de dois salários mínimos, é uma conquista enorme para nossa valorização”.


Fonte de custeio em aberto

Por se tratar de uma Emenda Constitucional, o texto não precisa de sanção presidencial, diferente do projeto de lei que estabelece um piso aos trabalhadores da enfermagem. De autoria do senador Fabiano Contarato (Rede/ES) e relatado pela senadora Zenaide Maia (Pros/RN), o PL 2.564/20 foi aprovado por unanimidade no Senado no dia 24 de novembro. Na Câmara a matéria foi aprovada com 449 votos favoráveis contra 12 contrários. Daniel Menezes, coordenador do Fórum Nacional da Enfermagem, composto pelas entidades representativas da categoria no país, como o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), do qual Menezes é integrante, postula que a sanção presidencial é o principal desafio para efetivação do texto. O principal obstáculo é a fonte de custeio do piso, que segundo cálculos de um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados, deve ter um impacto anual de R$ 5,8 bilhões para o setor público. Para o setor privado, o impacto estimado é de R$ 10,5 bilhões anuais. “Sabemos dos desafios, mas há uma série de propostas para custeio do piso da categoria. Isso já foi bastante debatido pelo grupo de trabalho sobre o assunto. E por causa desse debate o projeto foi aprovado nas comissões e teve sua urgência aprovada no Plenário”, diz Menezes.

Segundo informou a relatora da proposta na Câmara, a deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), em reportagem publicada após a aprovação do PL no site da Câmara, a matéria só deve ir à sanção presidencial após a votação da PEC 122/15, que tramita no Senado, e proíbe a União de criar despesas aos demais entes federativos sem prever a transferência de recursos para o custeio. “Os recursos para a área da saúde não são escassos. Além disso, estados e municípios contam com outras fontes de recursos, que podem ser investidas em recursos humanos para a área da saúde. Sendo assim, o impacto do piso nacional da enfermagem é perfeitamente suportável. Tudo é uma questão de escolha, prioridade e justiça”, argumenta o representante do Cofen, Daniel Menezes.

Cofen

Segundo a reportagem do site da Câmara, uma fonte que o governo estuda utilizar para o financiamento do piso da enfermagem seria através da legalização dos jogos de azar no país, de acordo com o líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR).

A aprovação do PL se deu à revelia de entidades como o Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que em um documento enviado aos senadores antes da votação do texto, no Senado, em novembro, alertou que a aprovação do projeto significará um aumento das despesas com saúde acima do que permite a Lei de Responsabilidade Fiscal, além de comprometer as demais despesas dos municípios. A Federação Brasileira de Hospitais (FBH), por sua vez, divulgou, na véspera da aprovação do PL 2.564/20, uma nota em que “reitera a confiança” de que o Congresso encontre “solução viável e de rápida implementação para sustentar os aumentos salariais propostos”. Sem isso, continua a nota, “a valorização pretendida não conseguirá, apesar de justa, ser implementada pelos hospitais, que em sua maioria estão em momento de grave crise financeira”.


Realidade salarial “estarrecedora”

A expectativa é que a aprovação do piso salarial beneficie mais de 2,5 milhões de trabalhadores da enfermagem existentes atualmente no Brasil, segundo o Cofen. A grande maioria é formada pelos técnicos em enfermagem, que hoje são cerca de 1,5 milhão de profissionais. Os enfermeiros, por sua vez, somam 635 mil trabalhadores, enquanto os auxiliares de enfermagem são 439 mil e as parteiras somam 334 profissionais. Daniel Menezes ressalta que a “realidade salarial” dos trabalhadores da enfermagem no país é “estarrecedora”.  Citando dados da pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, encomendada pelo Cofen à Fiocruz em 2015, ele aponta que 1,8% da categoria recebia menos de um salário mínimo por mês. No setor público, 14,4% dos auxiliares e técnicos de enfermagem recebiam entre R$ 681 e R$ 1 mil mensais, enquanto outros 36,4% recebiam entre R$ 1.001 e R$ 2 mil. Ainda segundo a pesquisa, 24,2% dos auxiliares e técnicos de enfermagem empregados no setor privado recebiam entre R$ 681 e R$ 1 mil, sendo que outros 35% recebiam entre R$ 1.001 e R$ 2 mil.  “De 2015 para cá, os salários não tiveram aumento real e os profissionais de enfermagem perderam ainda mais poder de compra, diante da crise econômica e da pressão inflacionária. Por causa de salários miseráveis, 27,4% declara que trabalha em mais de um emprego para complementar renda”, relata Menezes.


Para pesquisadora, mobilização precisa ser permanente

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Mariana Nogueira destaca o papel da organização e mobilização dos trabalhadores das categorias na aprovação.  “Foi com muita luta e organização política coletiva, atuação sindical, das trabalhadoras e trabalhadores, tanto agentes de saúde quanto da enfermagem, que se conseguiu conquistar esse que é um direito mínimo, fundamental, para todos os diferentes setores da economia, que é um salário digno”, afirma.

Organização e mobilização que para ela precisam ser permanentes, especialmente em um contexto de desfinanciamento não só do SUS, mas das políticas sociais como um todo, principalmente desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, do teto de gastos. “Não podemos nos deixar enganar. Parte desses parlamentares que votaram pela aprovação do piso é de partidos conservadores e aliados ao neofascismo, apoiaram a Emenda Constitucional 95, que já retirou R$ 25 bilhões do SUS e da seguridade social como um todo, e apoiaram a reforma trabalhista, que retirou conquistas históricas dos trabalhadores. Quando se colocam a favor da enfermagem e dos agentes de saúde é também uma tentativa de se utilizar desse apoio enquanto moeda de troca em um período eleitoral”, alerta a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. E complementa: “Essa é uma vitória da mobilização e da organização dos trabalhadores, e não uma concessão. É uma obrigação que o Estado tem de valorizar e reconhecer a importância desse contingente de trabalhadores e trabalhadoras que são fundamentais para o SUS”.