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Um Código que ainda vai dar o que falar

Enquanto governo federal, empresas e entidades como ABC e SBPC exaltam a aproximação entre indústrias e universidades, sindicatos e estudiosos do assunto denunciam que o Novo Marco Legal para Ciência, Tecnologia e Inovação cimenta a privatização da pesquisa no Brasil.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 29/02/2016 09h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Cerimônia no Palácio do Planalto marca sanção do novo Código Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

É possível que aqueles que acompanharam o noticiário veiculado na semana passada pelos grandes jornais e portais de informação tenham ficado com a impressão de que, enfim, um tema alcançou algum consenso em meio às turbulências vividas pelo país. Trata-se do Novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (lei 13.243/16), sancionado 11 de janeiro pela presidente Dilma Rousseff em cerimônia no Palácio do Planalto. Na ocasião, governo, parlamentares, empresários e entidades pró-ciência comemoraram as novas regras que, envoltas em conceitos como “flexibilização”, “desburocratização” e “competitividade”, têm como objetivo aproximar empresas e instituições públicas no desenvolvimento de pesquisas. No entanto, a unanimidade em torno da regulamentação não sobrevive a uma apuração mais rigorosa dos fatos.  Longe de comemorar, dezenas de entidades de classe, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, instituições e estudiosos do assunto alertam que o Novo Marco representa a pá de cal da privatização da pesquisa no Brasil.

Isso porque, dentre outros dispositivos, o Novo Marco traz alterações na lei 10.973,a chamada Lei da Inovação, de 2004, permitindo que entidades sem fins lucrativos, empresas e até mesmo inventores independentes usem a infraestrutura pública – como laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações – sem ao menos precisar pagar por isso (a contrapartida é obrigatória, mas não precisa ser financeira). Ainda nessa linha, o conhecimento acumulado pelos trabalhadores da instituição pública – definido como capital intelectual – também pode ser “usado”. E no caso de contratos que envolvam transferência de tecnologia de uma criação desenvolvida pela instituição pública, nenhum servidor ou empregado pode se recusar a repassar conhecimentos e informações necessários à sua efetivação. Caso isso aconteça, o Marco prevê punição administrativa, civil e penal. 

Marco incentivaria nova onda de OSs

A reação ao Novo Marco vem sendo puxada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) e pela Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Campinas (Adunicamp) que mobilizaram 158 entidades para solicitar o veto integral ao projeto. O pedido foi feito por meio de carta pública dirigida à Dilma Rousseff. No dia 3 de novembro passado, as mesmas entidades já tinham feito apelo semelhante, dirigido aos senadores. Nas duas ocasiões, não foram ouvidas.

A principal preocupação das entidades diz respeito à participação de Organizações Sociais (OSs) na pesquisa nacional. É que o novo Marco altera a definição da figura da Instituição Cientifica e Tecnológica (ICT), criada pela Lei da Inovação. Antes da aprovação do novo Marco, a ICT era definida como “órgão ou entidade da administração pública que tenha por missão institucional executar atividades de pesquisa básica ou aplicada de caráter científico e tecnológico”. Agora, a ICT – que passou a se chamar Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação – incorpora a sua missão o desenvolvimento de novos produtos, serviços e processos. Além disso, pode ter personalidade jurídica de direito privado sem fins lucrativos, o que daria margem à multiplicação de OSs financiadas com recursos públicos antes destinados exclusivamente a universidades e centros de pesquisa. “A tendência é que a pesquisa siga pelo mesmo caminho que seguiu a assistência à saúde: uma área de prestação direta de ações e serviços que foram gradativamente sendo terceirizados para OSs”, prevê Paulo Cesar Ducatte, presidente da Adunicamp.

“Em médio prazo, isso significa o seguinte: que o laboratório acadêmico vai ter todo interesse em se transformar numa ICT via estatuto de Organização Social. Vai ser uma OS dentro da universidade, com autonomia para desenvolver pesquisa e produtos e, inclusive para captar no mercado ou no fundo público, e para vender para o mercado também, vender serviços e vender produtos”, afirma Epitácio Macário, coordenador do Grupo de Trabalho de Ciência e Tecnologia do Sindicato Nacional do Andes. A suspeita é reforçada por diversas passagens da nova lei, que falam que as ICTs podem prestar serviços ou celebrar acordos com instituições públicas ou privadas (por meio de alterações nos artigos 8o e 9o da Lei da Inovação).  Como não está claro de que forma virão a se constituir essas ICTs, fica a pergunta: o que hoje é trabalho regular do pesquisador ou do laboratório poderá ser capitalizado como prestação de serviços para a própria universidade a qual ele é vinculado?

De uma forma ou de outra, o Novo Marco transformou em zona cinza o que se entende por dedicação exclusiva no serviço público (artigo 14o da Lei da Inovação). A legislação abre a porteira para que o pesquisador, inclusive o que estiver enquadrado em plano de carreiras e cargos do magistério, enxergue a universidade como um local de trabalho secundário. Isso porque os pesquisadores poderão trabalhar a totalidade de sua carga horária nas ICTs e continuar a receber o mesmo salário e as mesmas gratificações pagos aos pesquisadores que dedicam seu tempo exclusivamente ao serviço público. Uma segunda via garante a legalidade da remuneração direta por empresa ou ICT para o pesquisador que estiver participando de um projeto dessa natureza, desde que ele assegure a continuidade de suas atividades de ensino ou pesquisa no órgão de origem. No entanto, o Marco cala sobre como isso seria “assegurado”.

“O privado se apropria do público pela via dos serviços especializados prestados por pesquisadores. Você leva anos para formar um pesquisador e esse pesquisador formado com o fundo público dentro da universidade vai poder prestar assessoria, se associar a uma empresa privada. É obvio que isso vai ter impacto de médio prazo muito grande na carreira docente, principalmente no regime de dedicação exclusiva”, critica Macário. 

Participação restrita

O Novo Marco é resultado do Projeto de Lei (PL) 2177/11, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 9 de julho e pelo Senado, por unanimidade, em 9 de dezembro do ano passado. O relator da comissão especial da Câmara criada para discutir o Novo Marco, o deputado Sibá Machado (PT-AC), garantiu que várias comunidades científicas participaram da formulação do texto. Na mesma linha, parlamentares e membros do Executivo têm reafirmado que o projeto atende a demandas dos pesquisadores e cientistas brasileiros. Mas as entidades subscritas na carta que pedia o veto ao Novo Marco têm outra leitura do processo. 

“Quando se diz que esse Código teve a participação da comunidade científica, se incorre em erro. Quem participou foi a ‘fina flor’ daquilo que chamamos de empreendedorismo acadêmico. O Andes não foi convocado, nenhum sindicato de professores universitários foi convidado”, rebate Epitácio Macário. “Quem apoiou e esteve por trás da discussão e elaboração deste projeto foram pesquisadores e docentes que têm interesse nessa relação mais estreita com o mercado que, na realidade, acaba privatizando a pesquisa pública para a iniciativa privada”, acrescenta Paulo Cesar Ducatte.

Os sindicalistas se referem nominalmente à Academia Brasileira de Ciências (ABC) e à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O presidente da ABC, Jacob Palis, rebate a acusação de que houve participação restrita na elaboração do Novo Marco: “A história envolve mais atores do que a ABC e a SBPC. A coordenação de Fundações de Amparo à Pesquisa atuou muito bem. Também o conselho de secretários de C&T [Consecti] do país. Todo mundo deu as mãos, foi uma coisa muito bonita. E tem, é claro, a ABC e a SBPC. Foi um mutirão. E o Congresso Nacional colaborou bastante, foi fundamental de fato. São coisas que levam tempo, mas foi retomado com força nos últimos cinco anos. Acho que é uma vitória”.

Já a presidente da SBPC, Helena Nader, informou, por meio de assessoria, que só poderia dar entrevista depois de uma avaliação dos vetos feitos pela presidente ao texto da nova lei. A assessoria do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT), por sua vez, alegou falta de agenda para falar sobre o tema com a reportagem da EPSJV.

Apoiadores do Novo Marco

Se fosse traçada uma linha imaginária separando aqueles que criticam daqueles que apoiam o Novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, não é exagero dizer que as diferenças entre ambos seriam suficientes para criar dois territórios com língua, costumes e crenças completamente distintos. No território dos defensores da nova lei, o léxico é recheado de palavras como “inovação”, “empreendedorismo”, “flexibilização”, “desburocratização”, “dinamismo”, “competitividade”. Todas as mudanças – o Novo Marco mexeu em nove leis diferentes – são justificadas por essas expressões.

“Celeridade, regras simples, e ações tempestivas são imprescindíveis para que o ciclo de transformação da ciência em tecnologia e inovação e em competitividade e desenvolvimento seja bem-sucedido. Afinal, de nada adianta uma tecnologia revolucionária se permanecer na estante de um laboratório ou de um centro de pesquisa”, argumentou a presidente Dilma na cerimônia de sanção da lei. Segundo ela, o “capital intelectual” (conhecimento acumulado pelos trabalhadores da instituição pública) é um “ativo” que vai permitir “a justa remuneração nas universidades públicas”. E esse pagamento será feito pelo mercado.

Em seu site, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) enumerou oito “benefícios” que a interação entre empresas e universidades traz para um país. Transferência de conhecimento, crescimento da competitividade e incorporação da visão de mercado pelas universidades figuram na lista. A CNI vaticina ainda que “o ambiente empresarial poderá contribuir para a reformulação da gestão das universidades, sobretudo públicas, tornando-as mais eficientes e integradas ao sistema econômico” e que “mais do que trabalhadores, as universidades devem ser polos para formar empreendedores”.  A ênfase na inovação permeia todo o texto, que defende que cabe às universidades “criar novidades” e às empresas “produzir os novos produtos”.

“É uma tentativa de vincular o conhecimento científico diretamente ao empreendedorismo e ao desenvolvimento do mercado, da economia. Você tem um predomínio do utilitarismo econômico, que é muito perigoso em ciência. Só tem relevância aquele conhecimento que tem aplicação prática, daí a ideia de empreendedorismo, de desenvolver incubadoras”, contrapõe Paulo César Ducatte.

Perguntado pela reportagem sobre as preocupações das entidades de que a pesquisa feita nas universidades passe a ser direcionada por demandas de mercado, o presidente da ABC, Jacob Palis, afirmou não ver contradições na atuação de entidades privadas articuladas com empresas para desenvolver pesquisas no interior de instituições públicas. “É claro que nós temos que ficar atentos e fazer as coisas muito bem feitas, não há essa liberalidade toda que possa ser vista com desconfiança. É flexibilidade, mas com absoluta honestidade e equilíbrio. Se o lado privado lucra, tudo bem, desde que não lucre sem que haja o correspondente beneficio do lado público em toda sua extensão. Esse é o ponto”, ressalta Palis.

Pesquisador do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), que desde 2001 tem estatuto jurídico de OS, Palis vê benefícios neste modelo de gestão: “O Impa não foi privatizado, está público como sempre foi. A OS introduziu mais liberdade nas contratações, não tem que esperar o Ministério do Planejamento fazer um mapeamento de todo o Brasil e distribuir vagas a serem implementadas ‘sabe lá Deus quando’. Não há razão para esse temor, desde que as coisas sejam feitas com absoluta correção. É preciso ter uma flexibilidade mediante metas e relatórios, se não nós ficamos para trás”, afirma, reiterando que a ciência é “fundamental” na crise atual. “É hora de ter mais ciência e não menos. Sem pesquisa não vamos avançar, o país não vai ser criativo, com novos produtos”. 

Para além do estreitamento da relação entre universidades e empresas, existem outros elementos do Código que angariam uma simpatia mais ampla. É o caso das mudanças na Lei de Licitações, que dispensam aquisição ou contratação de produtos para pesquisa e obras de processo de licitação e diminui a documentação necessária para essa contratação. O Marco também prevê a redução ou isenção de impostos em importações feitas pelas ICTs e por empresas na execução de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação. E facilita a prestação de contas dos recursos captados. “Eu diria sem medo de errar que são essas facilidades, por um lado, e a do pesquisador – hoje chamado de empreendedor – vender seus serviços e produtos diretamente para o mercado, que fizeram com que o Marco tivesse grande adesão de certa camada da comunidade científica nacional”, conclui Epitácio Macário, ponderando que os ganhos no varejo não podem ser analisados sem levar em conta o sentido geral do novo Marco e seus efeitos para as instituições públicas.

Novo Código exigiu mudanças na Constituição

Se, de acordo com os críticos, a espinha dorsal do Novo Marco Legal é a orientação da pesquisa desenvolvida nas instituições públicas para atender a demandas de mercado, essa sinergia se chocava com a Constituição Federal de 1988.  Paulo César Ducatte lembra que embora a Lei de Inovação, aprovada em 2004, já trouxesse uma inflexão pró-empresarial, os dispositivos legais ainda não atendiam plenamente ao interesse de uma parcela da comunidade científica e, ainda por cima, estavam sendo questionados na Justiça por sua inconstitucionalidade.

Foi assim que a estratégia dos patrocinadores do Novo Marco tomou outro rumo. Em 2013, a deputada federal Margarida Salomão (PT-MG) apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 290, no ano seguinte a PEC passou pela Câmara e pelo Senado e, em fevereiro de 2015, foi promulgada como Emenda Constitucional 85. Ela altera a redação de quatro artigos para incorporar o conceito “inovação” junto às obrigações e objetivos do Estado brasileiro para áreas como educação e saúde. Também inclui um parágrafo no artigo 167 para flexibilizar a gestão dos recursos para atividades de ciência, tecnologia e inovação. E, mais importante, muda bastante o capítulo constitucional antes dedicado à Ciência e Tecnologia – agora à Ciência, Tecnologia e Inovação – transformando a articulação entre setor público e privado numa estratégia para o desenvolvimento deste tripé.

“A EC 85 é uma das violações mais flagrantes da Constituição Federal. Ela preconiza o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada com o setor privado. E isso sem exigir contrapartida financeira das empresas. Ou seja, laboratórios, equipamentos e servidores públicos admitidos em concursos que exigiam a dedicação exclusiva à instituição pública agora podem ser utilizados por entes privados para finalidades privadas”, critica Macário.

A EC 85 também muda a prioridade que a Constituição de 1988 dava para a pesquisa básica. A ênfase, a partir da Emenda, deve ser dada para a pesquisa voltada para a tecnologia e a inovação.

Próximos passos

Após a sanção do Novo Marco Legal, as entidades contrárias ao projeto avaliam que a divulgação e debate de todos os aspectos da lei serão essenciais para que exista alguma resistência organizada nas instituições públicas. “Foi sancionado, é uma derrota que nós sofremos. Daqui para frente, trata-se de trabalhar a unidade das organizações contrárias e questionar a SBPC, por exemplo. Vamos levar o debate para os encontros científicos e principalmente levar o debate para dentro das nossas universidades, esclarecer a comunidade científica”, conta Epitácio Macário.

Mas como essa resistência pode se dar? Os sindicatos docentes respondem que embora em cada universidade e centro de pesquisa exista um trâmite diferente, no geral, todo convênio ou contrato precisa passar pelos órgãos internos da instituição, no caso de algumas universidades, por exemplo, conselhos de ensino, pesquisa e extensão e o conselho universitário. “E nesses trâmites talvez reste um lugar para batalhar para que a pesquisa desenvolvida não seja privatizada”, diz Paulo César Ducatte.