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Um leão por dia

Após aprovação do piso salarial, vínculos precários e formação fragmentada permanecem sendo obstáculos para exercício da profissão de ACS e ACE.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 20/08/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Dois mil oitocentos e onze dias foi o tempo que durou a luta dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de Combate a Endemias (ACE) para fazer com que a principal reivindicação das duas categorias fosse atendida. Esse foi o tempo transcorrido entre a aprovação da lei 11.350/2006, que regulamentou as duas profissões, e a sanção, pela presidente Dilma Rousseff, da lei 12.994, em junho deste ano, que instituiu um piso salarial nacional e diretrizes para planos de carreira desses profissionais. A lei estabeleceu que, para uma jornada semanal de 40 horas, os ACS e ACE devem receber um salário de R$ 1.014 mensais. Contudo, Elane Alves, assessora jurídica da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), adota um tom resignado ao comentar a aprovação da lei. "Não foi exatamente o que queríamos, mas temos consciência de que foi conquistado o que era possível", afirma, explicando que quando a proposta foi apresentada ao Congresso, a ideia era que o piso fosse próximo a dois salários mínimos (na época, o valor sugerido foi R$ 950). Mas a ausência mais sentida no texto da lei corresponde às propostas que acabaram sendo vetadas pelo Executivo no momento da sanção. "Tem nos tirado muito o sono a questão do veto ao artigo 9b", explica Elane, fazendo referência ao artigo que estipulava diretrizes para a concessão de reajuste anual ao valor do piso a partir de 2015 como forma de debelar as perdas causadas pela inflação. "Não existe piso salarial sem que haja previsão de reajuste, e pelo menos com definição de sua data base.Foi isso que foi retirado e prejudica muito nossas propostas", lamenta Elane, afirmando que o veto a pegou de surpresa. "Isso tinha sido fruto de uma negociação com o Senado na presença do [senador] Eduardo Braga [PMDB-AM] e do [senador] José Pimentel [PT-CE], que na oportunidade falavam em nome do governo no Congresso Nacional".

Elane também reclama do veto presidencial ao artigo 4° do projeto aprovado no Senado, que estipulava um prazo de 12 meses para que os municípios elaborassem os planos de carreira dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias. Para Elane, isso "prejudicou tanto a categoria quanto os gestores", porque "quando a lei retira esse prazo, dá obrigatoriedade do plano de carreira imediato".

O Executivo, por sua vez, no texto da justificativa que acompanha os vetos, afirmou que a retirada do artigo 9b, referente ao reajuste anual, foi motivada por um entendimento de que o item feria o artigo 37 da Constituição Federal, que em seu inciso 10 estabelece que a remuneração dos servidores públicos somente pode ser alterada por lei específica.Na visão do Executivo, isso impede que o reajuste dos ACS e ACE seja fixado por meio de um decreto presidencial. Com relação aos planos de carreira, a justificativa apresentada foi de que obrigar estados e municípios a estipularem prazos para a criação de planos de carreira para seus servidores fere o princípio da separação dos poderes previsto no artigo 2 da Constituição Federal.

Elane Alves não vê dessa forma. Tanto que afirma que a Conacs trabalha agora pela derrubada dos vetos no Congresso. "O desafio é grande, mas por outro lado realmente fizemos uma coalizão partidária, e hoje temos crença de que conseguiremos derrubar esse veto", acredita. Para isso, é preciso obter os votos favoráveis de dois terços da Câmara e dois terços do Senado, ou seja, 374 deputados e 54 senadores precisam votar a favor da derrubada dos vetos. "Acredito que a gente vá conseguir a sensibilidade da presidência do Senado em apontar a votação imediata. Mas lógico que temos o desafio de obter quórum diante de um processo eleitoral", pondera.

Vínculos precários

Para Mariana Lima Nogueira, coordenadora do curso técnico em Agente Comunitário de Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a definição do piso salarial está atrelada a uma discussão sobre o quadro de precarização da profissão de ACS e ACE no país, discussão que envolve também questões como a natureza dos vínculos empregatícios desses profissionais, que hoje, segundo o Ministério da Saúde, somam 300 mil, sendo 250 mil ACS. "Desde a criação da profissão pela lei 10.507 de 2002 se fortaleceu a luta pela regulamentação dos vínculos. A gente tem até hoje vínculos diretos e indiretos, que ocorrem quando os ACS são contratados por empresas ou Organizações Sociais [OS] e não pelo município diretamente. São terceirizados", lembra Mariana. Elane Alves, por sua vez, lembra que desde 2006, com a promulgação da Emenda Constitucional 51, a Constituição Federal estabeleceu que os ACS e ACE só podem ser contratados "diretamente pelos Estados, Distrito Federal e municípios. "Nós entendemos que isso exclui a terceirização, ainda que de forma regular com carteira assinada. Se a gente considerar essa interpretação como a correta, temos um problema sério no Sudeste e Sul do país. Especialmente São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul ainda veem a terceirização via Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público] e OS como uma forma válida de contratação", revela Elane, para em seguida apontar alguns dados sobre o tamanho do problema: "Enquanto no Norte, Nordeste e Centro-Oeste temos índices de 83%, em média, de vínculos diretos formalizados nos municípios, temos o inverso disso nas regiões Sudeste e Sul. Em Minas Gerais, por exemplo, boa parte ainda está precarizada da forma mais elementar, por contratos temporários. Minas é uma incógnita, porque são mais de 800 municípios, e é complicado fazer uma leitura estatística, mas temos visto reiteradamente esse cenário. Eu arrisco dizer que mais de 50% ainda estão precarizados". Na Grande São Paulo, diz Elane, o percentual de ACS e ACE terceirizados chega a 100%. Para ela, a aprovação da lei 12.994 deve contribuir para mudar esse cenário: "Agora, aqueles que entendiam que o vínculo podia ser terceirizado não vão ter mais argumentos, porque a terceirização não comporta plano de carreira. Como vai se criar plano de carreira pra um servidor se ele não é servidor? A lei tira um pouco dessa liberdade de interpretar [o tipo de vínculo] conforme a sua conveniência", opina. E completa: "Acho que isso vem para reforçar que ACS e ACE não são funcionários de segunda categoria, não são servidores desprestigiados".

Formação ainda deficiente

Mariana Lima Nogueira aponta outro problema que precisa ser enfrentado pela categoria: a priorização de melhorias numa formação que ela vê como "fragmentada". Ela explica: "Temos um avanço na historia das políticas de gestão do trabalho na saúde com a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Sgtes/MS), em 2003. Temos, por exemplo, a promulgação do referencial curricular de ACS, que prevê que a formação técnica seja feita prioritariamente pelas Escolas Técnicas do SUS", diz ela. No referencial curricular definiu-se que essa formação teria três etapas, totalizando no mínimo 1,2 mil horas. "Só que a lei 11.350/2006 diz que a formação inicial e continuada é a prioritária, então só se garante financeiramente pelo Ministério da Saúde a primeira etapa da formação, ou seja, 400 horas", lamenta Mariana. De acordo com Elane, a primeira etapa do curso, que exige apenas o ensino fundamental, foi feita em 5,4 mil municípios, com financiamento do Ministério da Saúde. "Alguns estados que têm uma política de valorização desses profissionais vem trabalhando já o segundo módulo, que exige o ensino médio. É o caso da Bahia, Rondônia, Tocantins, Pernambuco, Goiás, Ceará, Pernambuco e Piauí", aponta a assessora jurídica da Conacs.

Mas como revela Mariana, a formação completa, ou seja, as três etapas do curso técnico, ainda são exceção. Apenas os estados do Acre e do Tocantins a fizeram (com recursos dos governos dos estados), além dos municípios do Rio de Janeiro, Gravataí (RS) e Recife, esses com recursos das secretarias de saúde locais. "Temos trabalhadores importantíssimos pro SUS, atendendo a 125 milhões de pessoas e cujas atribuições são cada vez mais colocadas em relevância pela política de atenção básica, que não têm qualquer formação anterior quando vão entrar em contato com os usuários. A formação técnica dos ACS é fundamental para um SUS de qualidade", ressalta.

Ela também se queixa da priorização ao financiamento da formação dos ACS via instituições privadas, em especial através do Sistema S pelo Pronatec. Com o fortalecimento do Sistema S há um esvaziamento dos espaços de formação das Escolas Técnicas do SUS, que segundo ela vêm sofrendo um processo de precarização por conta da falta de recursos. "O curso técnico de ACS está sendo oferecido como um curso de educação profissional como qualquer outro, mas o ACS é uma categoria do SUS, de uma política pública. Se cria uma demanda para o mercado de trabalho que não existe no âmbito privado, é do SUS", argumenta, e completa: "E o Pronatec não tem qualquer proposta de principio político pedagógico. Isso é preocupante, porque cada escola faz uma coisa, e sendo Sistema S a maioria das instituições acaba executando um currículo voltado para o mercado, em cima de conteúdos pragmáticos". Segundo ela, o pragmatismo também se dá na forma com que os conteúdos são apresentados, o que exemplifica citando os cursos de ACS oferecidos na modalidade de educação a distância. "A ampliação de cursos na modalidade a distância para ACS é preocupante. Inclusive alguns Institutos Federais começam a oferecer a formação técnica de ACS nessa modalidade, e isso é mais um sinal da precarização do trabalho. A pessoa passa a se responsabilizar pela sua formação, pelo equipamento para estudar e isso acontece no horário que ela deveria estar em casa fazendo outras coisas que não as obrigações do trabalho", avalia.