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Um país onde a saúde não esteja doente

A conjuntura pede “radicalidade” e união de forças sociais para “refundar” o SUS, defende a diretora da Anistia Internacional Brasil Jurema Werneck na conferência de abertura do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 24/03/2021 12h42 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

“Eu preciso encontrar um país onde a saúde não esteja doente”. O verso, tirado da música “País do Sonho” de Elza Soares, deu o tom da fala de Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional Brasil, que fez a conferência de abertura do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) nesta terça-feira (23), sob o tema ‘Desigualdades e pandemia: que democracia é necessária para um projeto efetivamente includente?’.

“Eu pensei em trazer dados de morbidade, mortalidade desse momento da pandemia, desagregados por raça/cor, por etnia, por sexo, por idade, e etc. Mas eu estou diante daqueles e daquelas que têm como pressuposto para sua atuação profissional o conhecimento e análise desses dados. Então estou assumindo aqui que esses dados são conhecidos por todos. Se não são, é preciso que se conheça, porque não dá para pensar planejamento em saúde sem esses dados”, disse Jurema, justificando a escolha de uma música como introdução para sua fala. “Quando eu li a letra dessa canção, eu pensei que tem a ver com o agora, tem a ver com essa gana de encontrar esse país que não está aqui”, destacou Jurema, e completou: “Eu vou me esforçar para não transformar minha fala em um discurso sobre falta, sobre desapontamento, sobre raiva. Pois eu sei que esse país do sonho não há, mas ele precisa existir”.

Destacando que o estrago causado pela pandemia do novo coronavírus no país não se deu apenas pelo vírus causador da doença, Jurema afirmou que o momento é de “desmoronamento”. “O que eu vejo é um desmoronamento na política, nas políticas e seus pressupostos, nas conquistas que tivemos de direitos, na convivência social e até na convivência familiar. O que sinto, além de desapontamento, eu que sou ativista desde criancinha, é indignação. É raiva”, disse a diretora da Anistia Internacional Brasil. “Nós não estamos enfrentando essa crise do mesmo jeito ou em igualdade de condições. O que está acontecendo nos roubou a vida que imaginamos poder ter, projetos, relacionamentos, roubou o sossego e abalou a crença num futuro melhor”. Segundo Jurema, no entanto, é a “crença em um futuro melhor” e o sentimento de raiva são o “motor do ativismo”. “Em um momento tão dramático como esse, é preciso se apresentar na arena pública, escolher um lado e gritar em alto e bom som junto com os movimentos sociais e as comunidades”, reivindicou Jurema, complementando em seguida: “Precisamos recuperar a capacidade de pensar alto, de vocalizar análises discordantes, de planejar ações de saúde capazes de alterar de forma consistente o que a pandemia trouxe e que já vislumbramos que vai deixar de herança. É preciso falar fora da bolha. É um desafio gigantesco”.

Não é de agora, continuou a diretora da Anistia Internacional Brasil, a privatização, a presença do “racismo patriarcal heteronormativo” e as tentativas de silenciamento das vozes da sociedade civil dentro do SUS. Ela defendeu que há urgência em “revisitar” o Sistema Único de Saúde com olhos bem abertos, para retomar seus princípios e diretrizes com a “radicalidade necessária”. “E eu destaco aqui: esse é o momento da radicalidade. Precisamos encarar a universalidade como capacidade de alcançar a todas e todos, enfrentando o racismo patriarcal cis heteronormativo, que garante privilégios a depender de que lado da linha de cor e de gênero a pessoa se encontra”, disse a palestrante. E complementou: “Precisamos retomar a integralidade como forma de redistribuição da riqueza gerada por nós, e também a integralidade como afirmação do cuidado como dimensão central do direito à saúde. Precisamos garantir a equidade como princípio de justiça, de ruptura de privilégios. Sinto falta da produção intelectual radicalmente rompendo com privilégios”.

Jurema lembrou das lutas dos movimentos populares e acadêmicos que desembocaram na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que criou o Sistema Único de Saúde. “Aquele sonho de transformação social que nos inspira e nos incendeia até hoje. Precisamos de uma nova reunião de promessas, de inteligências, de projetos, enriquecida com as aprendizagens dos últimos 35 anos, para assim fundarmos um SUS de novo. Esse congresso precisa ser também esse lugar. Precisamos encontrar um país, e ele precisa ser feito de lutas generosas por saúde, por vida e por dias melhores”, conclui a diretora da Anistia Internacional Brasil.