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Um retrato da Atenção Primária à Saúde no país

Primeira edição do Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde desde 2012 revela os avanços e retrocessos da Estratégia Saúde da Família nos últimos anos
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 15/09/2025 11h42 - Atualizado em 15/09/2025 11h44

Wilson Moreno

Após um período de apagamento de dados e de enfraquecimento de políticas públicas do governo [Jair] Bolsonaro, a retomada de um governo comprometido com a democratização da saúde tem o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde [APS] como parte desse movimento”. A frase da professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Isabella Koster, dá o tom das expectativas envolvendo os resultados do Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde (Censo das UBSs), retomado após mais de uma década desde a sua criação.

A coleta dos dados do Censo, publicado em versão preliminar em junho de 2025, foi realizada em 2024 pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde (Saps/MS), em parceria com a Rede de Pesquisa em APS da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com apoio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e da Organização Panamericana da Saúde (Opas). A pesquisa analisou dados de 44.938 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) no país, a partir de 141 perguntas distribuídas em 15 eixos temáticos. O questionário foi aplicado online, e contou com respostas de 100% das UBSs inseridas na plataforma e-Gestor AB. “Esse é o maior diagnóstico de estabelecimentos de saúde da Atenção Primária à Saúde”, afirma Luiz Augusto Facchini, professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador da Rede de Pesquisa em APS da Abrasco.

O documento integra a agenda federal de fortalecimento da APS, voltada à consolidação da Estratégia Saúde da Família (ESF). A iniciativa também se articula com investimentos em obras e equipamentos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC), com o Programa Mais Médicos e com a Estratégia de Saúde Digital. “Os dados coletados são essenciais para alinhar os investimentos às necessidades reais dos territórios, subsidiando o processo de planificação da atenção à saúde”, informou o Conass, por e-mail, à Revista Poli. Diante dessas iniciativas, “o Censo oferece um diagnóstico preciso e abrangente da APS”, acrescentou o Conselho.

Nesse sentido, o levantamento evidencia a necessidade de investimentos na infraestrutura das UBS: cerca de 60% precisam de reformas ou ampliações; quase 45% não dispõem de geladeiras exclusivas para vacinas; e 62% não contam com câmara fria destinada a esse armazenamento. Por outro lado, 82,7% das unidades possuem consultório odontológico, 87,3% utilizam prontuário eletrônico e 94,6% têm acesso à internet.

A retomada

Para Isabella Koster, “o Brasil tem uma importante cultura de avaliação e produção de dados, comparada com a América Latina”. Além desse histórico, ela avalia que a experiência nacional de planejamento em saúde leva em consideração princípios do próprio Sistema Único de Saúde (SUS): a integralidade, a equidade e universalidade — elementos investigados neste Censo.

Este é o segundo Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde do SUS. O primeiro levantamento, realizado em 2012, foi, até então, o maior já feito. “Naquele momento, tínhamos uma rede de UBS menor do que a atual, com cerca de 38 mil unidades”, explica Facchini. Ele lembra ainda que, após 2012, foram conduzidas avaliações periódicas da atenção primária até 2017, no âmbito do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) — política do Ministério da Saúde voltada à qualificação, acompanhamento e avaliação do trabalho das equipes de atenção básica, encerrada em 2019.

A interrupção desses levantamentos pode ser atribuída a um conjunto de fatores, segundo o Conass: um deles é a descontinuidade de políticas de monitoramento e avaliação; outro é uma “menor priorização da gestão baseada em evidências em períodos anteriores da gestão federal do SUS”. Para Facchini, isso resultou em “um longo período sem nenhuma avaliação, sem saber o que havia acontecido na rede de Atenção Básica, considerando os problemas do governo passado, como a restrição de recursos — que representou um ataque contra a Estratégia de Saúde da Família — e a pandemia, que afetou fortemente os serviços de atenção primária”. O pesquisador da UFPel percebe como consequência “um lapso que repercute fortemente no SUS e na APS”.

O questionário do Censo abordou temas como infraestrutura, saúde digital, acesso a diagnósticos e procedimentos, entre outros, além do processo de trabalho dos profissionais. Para Isabella Koster, isso pode ser observado em dados sobre a promoção da saúde, a vigilância do território, o monitoramento da doença e das necessidades de saúde, que são características da Estratégia de Saúde da Família.

O que os números mostram sobre a composição da ESF

Em 2024, a Estratégia Saúde da Família (ESF) completou 30 anos. Sua origem remonta ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), criado em 1991, e oficialmente instituída em 1994 com o Programa Saúde da Família (PSF). Fundamental para a Atenção Primária à Saúde, a ESF está presente, segundo o Censo, em 88,5% das UBSs do país, cada uma com pelo menos uma equipe de Saúde da Família (eSF), formada por médico generalista, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde (ACS).

Conforme o Censo, 96,2% das UBSs contam com médicos e 96,6% com enfermeiros. Desses, 59,3% dos estabelecimentos têm apenas um médico e 65,8%, um enfermeiro. As primeiras notícias sobre o documento destacaram a baixa quantidade desses profissionais, mas Facchini pondera: “Na mídia tradicional, isso apareceu como se fosse um aspecto muito negativo do SUS. Saiu a ideia do médico solo, como se ele estivesse isolado no serviço para atender a população. Isso é absolutamente equivocado, uma forma enviesada de interpretar esses dados”. Ele completa: “Se 88% das Unidades Básicas de Saúde têm pelo menos uma equipe — formada por profissionais da medicina, da enfermagem, da odontologia, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde — é esse time que cuida das pessoas”.

Apesar da importância dos profissionais técnicos nas ESF, eles quase não aparecem no documento. O Censo informa, por exemplo, quantas UBSs contam com técnicos de enfermagem (94,4%), mas não permite saber quantos integram cada equipe. Com exceção dos ACSs, categoria detalhada no levantamento, não é possível analisar a situação de outros trabalhadores de nível médio.

Para Isabella Koster, os trabalhadores técnicos em saúde “normalmente são invisibilizados nos sistemas de informação e nas políticas públicas”. Facchini, por sua vez, ressalta que a pesquisa captou informações sobre esses profissionais, que “progressivamente serão divulgadas em um conjunto importante de publicações, apresentações e eventos”. Ele adianta que novos dados serão apresentados no 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (também chamado de Abrascão), que acontecerá em Brasília, em novembro: “Lá, nós teremos uma série grande de trabalhos divulgando resultados do Censo para a comunidade, não só para acadêmicos, mas para todos os profissionais de saúde e gestores do país”.

As equipes de Saúde da Família desenvolvem ações de saúde individuais, familiares e coletivas, envolvendo promoção e vigilância em saúde. Essa atuação está alinhada à finalidade da APS: ser a porta de entrada do SUS, oferecendo cuidado integral e contínuo, articulado ao território onde a UBS está inserida. No entanto, mesmo que a ESF esteja presente na maioria desses estabelecimentos, poucos profissionais têm especialização na área: 28,9% dos médicos, 37,4% dos enfermeiros e 15,3% dos cirurgiões-dentistas possuem título em Saúde da Família e Comunidade ou residência na área.

A relevância dessa formação para o profissional está em possibilitar um cuidado integral, pautado nos princípios de equidade, como destaca Facchini. Isso significa “compreender não apenas o conjunto das necessidades clínicas de uma pessoa, mas também outros elementos que influenciam a situação de saúde de sua família e do território onde vive”, explica. O pesquisador ressalta ainda a importância de mobilizar as universidades federais para universalizar a formação dos profissionais da atenção primária nessa área.

A presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), Ilda Angélica Correia, defende que é preciso elevar esse percentual. “Para atuar na Saúde da Família e fazer valer as diretrizes dessa política, é preciso ter essas habilidades”, diz ela. E completa: “Muitas vezes, faltando essa habilidade, há comprometimento na entrega do serviço”.

Para Correia, a baixa especialização prejudica o trabalho da sua categoria: “Quando você não tem um médico ou uma enfermeira em sintonia com o ACS, com habilidades mais voltadas para o território e para a pessoa, fica muito complicado”. Ela reforça que o agente é o elo entre o território, as famílias e os demais integrantes da equipe de Saúde da Família e da UBS. “Somos nós que estamos diariamente dentro das casas, conversando com as famílias, levando informações e fazendo promoção e educação em saúde. Levamos informações para as famílias, mas também trazemos as situações vividas por esses cidadãos para, junto com a equipe, tomar decisões, amenizar problemáticas e evitar o adoecimento da população”.

A categoria está presente em 91,1% das UBS do país, e cerca de 75% das unidades contam com quatro ou mais ACS. Ainda assim, para a presidente da Conacs, o número é insuficiente, já que as comunidades estão em constante crescimento, com a chegada diária de novas famílias aos territórios, sem um aumento proporcional no quantitativo de agentes comunitários. Ela acrescenta que o quadro desses profissionais está envelhecido e observa que, em determinado momento, a produtividade tende a cair, sobretudo em áreas rurais, onde um agente percorre longas distâncias entre um domicílio e outro para realizar as visitas.

Victor Vercant / SECOM Maceió

Metas, indicadores e sobrecarga: o trabalho nos territórios

O Censo oferece dados relevantes para compreender o trabalho dos agentes comunitários. Em cerca de 99% das UBSs, esses profissionais realizam a atualização cadastral; em 98,5%, fazem visitas domiciliares às famílias; e, em quase 96% executam a busca ativa de pessoas com a vacinação atrasada.

Apesar dessa ampla presença, mais de um terço das UBSs (35,8%) têm alguma microárea descoberta. Para Ilda Correia, a falta dessa cobertura significa diminuir a possibilidade de prevenir doenças e orientar famílias. Ela avalia que, sem o agente comunitário de saúde, a população tende a buscar atendimento na UBS apenas em situações de necessidade extrema. Por isso, defende “atualizar o número desses agentes para garantir 100% de cobertura da área de atuação da UBS, de modo a não sobrecarregar os que já existem, evitando que tenham de atender territórios muito extensos e, com isso, não consigam oferecer um trabalho de qualidade”.

Em 2011, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) estabelecia que o número de ACSs deveria ser suficiente para cobrir toda a população cadastrada, com no máximo 750 pessoas por agente e até 12 ACSs por equipe de Saúde da Família. Em 2017, foi aprovada uma nova versão da PNAB, que flexibilizou essa regra, deixando a definição da quantidade de ACSs por equipe condicionada a critérios populacionais, demográficos, epidemiológicos e socioeconômicos. “Até 2016, quando houve o impeachment da presidenta Dilma, a ideia era que cada equipe de Saúde da Família tivesse, em média, de quatro a seis ACSs para dar conta das atividades. Isso, no governo Michel Temer e depois no governo anterior, foi progressivamente abandonado”, relembra Facchini. Segundo ele, “houve, inclusive, uma ênfase na ideia de diminuir a presença desses profissionais na APS. E isso foi muito negativo para a configuração da atenção primária no nosso país”.

Desde os anos 1990, a política de atenção primária foi orientada para estimular a expansão da Estratégia Saúde da Família, com o objetivo de torná-la o modelo predominante de cuidado. A PNAB de 2017, no entanto, alterou essa diretriz: deixou de conferir prioridade à ESF e abriu espaço para a criação das equipes de Atenção Primária (eAP), formadas minimamente por médico, enfermeiro e auxiliar e/ou técnico de enfermagem — sem a obrigatoriedade de incluir agentes comunitários de saúde. De acordo com o Censo, atualmente, as eAP estão presentes em 27% das UBS.

Para Isabella Koster, da EPSJV, essas equipes descaracterizam o modelo de Estratégia de Saúde da Família. A pesquisadora aponta três mudanças principais trazidas pela PNAB: a criação das eAPs, com abrangência populacional maior e sem ACS na composição; a flexibilização da carga horária, que pode ser de apenas 20 horas semanais; e a retirada da obrigatoriedade do ACS na equipe, o que, segundo ela, é uma quebra do modelo de base territorial. Nesse sentido, a professora-pesquisadora ressalta a importância do ACS como elo entre a comunidade e a UBS: “É alguém da própria comunidade, que traz para dentro da equipe os saberes da realidade local e confronta esse conhecimento com o saber técnico, científico e biológico”.

A PNAB também acrescentou novas atribuições ao ACS, como aferir a pressão arterial, medir a glicemia e fazer limpeza de curativos — inclusive em domicílio. No entanto, oito anos depois, o Censo indica que a maioria dos agentes não estão habilitados para verificar a glicemia (62,4%) e a pressão arterial (56,7%). Segundo a presidente do Conacs, essa atuação deve ser supervisionada por um profissional de nível superior, em visitas programadas com médico ou enfermeiro. Ela alerta ainda que, para executar essas tarefas, é preciso garantir condições adequadas: “A maioria dos municípios brasileiros, mesmo onde os agentes realizaram cursos técnicos, não recebeu equipamentos. Não se pode exigir algo sem oferecer a estrutura necessária”.

Faltam aparelhos para medir a pressão em 66,8% das UBS, embora o glicosímetro seja mais comum — apenas 5,8% das unidades não o possuem. Para Koster, realizar esses testes é mais uma entre muitas atribuições dos ACSs, como o preenchimento de cadastros, que acabam afastando o foco central do trabalho: o vínculo com o território.

Outra mudança recente que impactou o trabalho nas UBSs foi o programa “Previne Brasil”, apresentado pelo Ministério da Saúde. Lançado em 2019 como uma “inovação no modelo de financiamento público”, o programa alterou a forma de cálculo dos repasses para a atenção básica: o valor passou a ser definido com base no número de pacientes cadastrados na Estratégia Saúde da Família e nas unidades básicas, e não mais pelo total de habitantes do município. Além disso, por meio de um componente de desempenho, o Ministério estabeleceu metas a serem atingidas, influenciando o montante do financiamento.

“O Previne Brasil, junto com a nova PNAB, foi uma bigorna na cabeça do Saúde da Família”, relembra Koster. Para a pesquisadora, o programa concretizou a descaracterização do modelo ao introduzir metas. Ela acrescenta: “O trabalho em saúde não tem como ser gerido por metas, ele é relacional e construído a partir da realidade e das necessidades da população”.

Em 2024, a Portaria GM/MS nº 3.493, passou a instituir mais uma metodologia de cofinanciamento federal do piso da APS, dessa vez, baseada em instrumentos que avaliam a qualidade e o planejamento do trabalho das equipes. Para Isabella Koster, essa portaria tentou corrigir algumas coisas do Previne Brasil, trazendo os indicadores de qualidade.

A mudança trouxe avanços e desafios. Para Ilda Correa, embora a política atual fortaleça a atenção primária, ela também impõe indicadores e metas para o repasse de recursos. Segundo a pesquisadora, “os municípios perseguem essas metas de forma exacerbada, deixando em segundo plano o que considera mais importante: a qualidade do serviço”.

Ela também critica a pressão por produtividade. Na avaliação da presidente do Conacs, as cobranças atuais são exageradas e priorizam números — quantas atividades foram realizadas, quantos curativos, quantas injeções — deixando de lado o diagnóstico. Para ela, essa sobrecarga atinge toda a equipe de Saúde da Família e limita ações extramuros, como ouvir lideranças e moradores do território.

Um exemplo é a baixa presença de Conselhos Locais de Saúde (CLS) ativos — 63,7% das UBSs não contam com esse espaço de participação que reúne lideranças, comunidade, trabalhadores e gestores. “Hoje está todo mundo sobrecarregado. Tirar um enfermeiro ou médico do consultório é muito difícil, e a equipe precisa estar presente também no território, não só entre quatro paredes”, avalia Correia.

Metas e lacunas no cuidado à saúde da mulher

O contexto de metas e indicadores que orientam o trabalho nas Unidades Básicas de Saúde também transparece nos dados sobre saúde da mulher coletados pelo Censo. Cerca de 42% das UBS não realizam busca ativa quando a mulher está com o exame de mamografia atrasado. Por outro lado, quase 87% fazem busca ativa de puérperas para a consulta pós-parto, e 82% de bebês, até os dois anos de idade, que não foram levadas às consultas de puericultura.

Entre os principais indicadores avaliados pelo Previne Brasil estão: a proporção de gestantes com pelo menos seis consultas de pré-natal; de gestantes que realizaram exames para sífilis e HIV; de gestantes que passaram por atendimento odontológico; e de mulheres que fizeram o exame citopatológico, também chamado de Papanicolau ou preventivo. “Entre as metas está a cobertura do preventivo. Então, a equipe organiza toda a sua agenda de trabalho para atingir essa meta: ‘ah, eu tenho que colher X preventivos’. E aí, a equipe vai colhendo sem se perguntar se aquela mulher queria fazer o exame, se ela entende para que serve ou se compreendeu o que está acontecendo ali”, observa Koster.

Os números refletem essa prioridade: 96,3% das UBS realizam a coleta do exame citopatológico e 93,7% fazem busca ativa das mulheres quando o resultado indica alguma alteração. Ilda Correia explica que os agentes são direcionados a correr atrás dos indicadores que garantem mais recursos ao município. Nessa lógica, ela ressalta que buscar essas mulheres para consultas no puerpério e de puericultura é importante. Apesar de considerar fundamental o exame para detecção precoce do câncer de mama, pondera que o trabalho do agente depende do que as unidades e equipes planejam executar.

Nessa lógica, procedimentos que não estão diretamente vinculados aos indicadores de financiamento acabam recebendo menos atenção. É o caso de um dos métodos contraceptivos mais eficazes contra a gravidez indesejada: o Dispositivo Intrauterino (DIU) de cobre.

O DIU de cobre é um método contraceptivo não hormonal em formato de T, inserido no útero para prevenir a gravidez. É um método seguro, classificado como LARC - contraceptivo reversível de longa duração. Por ser reversível, possibilita rápido retorno à fertilidade após a remoção e, de acordo com pesquisas biomédicas recentes, pode permanecer no corpo da mulher por até 12 anos. Entretanto, 80,3% das UBSs não realizam o procedimento de inserção.

ANASPS

“É um método contraceptivo com ótimo custo-benefício, e de fácil obtenção pelo SUS. Pode ser inserido por médicos ginecologistas, médicos de família e também por enfermeiros habilitados, embora já tenha havido algumas controvérsias no interior do Ministério da Saúde”, explica Letícia Palis, pesquisadora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).

Em 2010, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) publicou o Parecer nº 17, que destacava não haver impedimento legal para que enfermeiros realizassem a inserção de DIU no SUS. Em 2018, o Ministério da Saúde reforçou essa diretriz por meio da Nota Técnica nº 5/2018, que enfatizava a importância da participação da enfermagem no procedimento. No entanto, apesar dessa orientação — e da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que enfermeiros possam inserir e retirar o DIU —, em 2019 o Brasil revogou a possibilidade, o que gerou insegurança, segundo a professora e vice-diretora da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Ana Luiza Vilela. Em 2023, a autorização foi restabelecida, condicionada à qualificação dos profissionais.

Para o pesquisador da UFPel Luiz Augusto Facchini, a baixa inserção do DIU é um problema de oferta e de capacitação das equipes. Ele defende que a prática esteja fortemente vinculada às atividades da enfermagem, de modo que esse dispositivo possa ser disponibilizado à população feminina. Facchini também recomenda a universalização do acesso em todas as Unidades Básicas de Saúde, com equipes capacitadas para inserção e acompanhamento das mulheres.

Ana Luiza Vilela acrescenta que a atenção primária é organizada em função das metas que as equipes precisam alcançar. Dentro dessas metas, estão as questões da saúde da mulher, principalmente do pré-natal. Ela avalia que as atividades que compõem os principais indicadores são a mortalidade materna e a infantil, reforçando que “a atenção primária se organiza para garantir um pré-natal de qualidade e uma gravidez saudável, para que os filhos nasçam e se mantenham saudáveis”.

A professora da USP também analisa que a atenção primária está muito organizada para as pessoas que engravidaram, no caso, para o pré-natal. “As mulheres que não estão grávidas acabam ocupando um papel secundário na organização dos serviços”, diz Vilela. Ela conclui: “A atenção primária deveria abarcar, na organização dos seus serviços, todas as pessoas — não apenas priorizando a que está grávida, a que tem um bebê pequeno ou a que pode vir a desenvolver um câncer, que, afinal, somos todos nós”.

Envelhecimento e novos desafios para a atenção primária

Prefeitura Municipal de Jundiaí

Outro ponto de discussão que o Censo levanta é sobre o atendimento da atenção primária a idosos.  Atualmente, 33 milhões de pessoas com 60 anos ou mais vivem no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de idosos quase dobrou, passando de 8,7% para 15,6% entre 2000 e 2023. Diante desse quadro, as unidades básicas da atenção primária precisam estar capacitadas, competentes e orientadas para poder abordar os problemas de saúde do idoso. “Com o tempo, e com as mudanças demográficas, a população idosa passou a ter uma presença cada vez maior no contexto desses serviços”, avalia Facchini.
Para o professor-pesquisador da EPSJV, Daniel Groisman, “o nosso sistema de saúde foi formulado dentro de um modelo em um Brasil que ainda não tinha envelhecido como envelheceu hoje”. Nesse contexto, ele avalia que “é fundamental ampliar e fortalecer as equipes e-Multi [equipes multiprofissionais na APS], sobretudo na fisioterapia e em outras áreas de reabilitação”.

Já Facchini ressalta que “a presença crescente de idosos nas comunidades demanda um conjunto mais amplo de ações de saúde, realizadas não apenas dentro das unidades básicas, mas também nos domicílios”. Isso porque, segundo ele, “os idosos hoje padecem muito do que chamamos de multimorbidade, ou seja, a presença simultânea de vários problemas de saúde”. Daniel Groisman acrescenta a necessidade de cuidadores de idosos comunitários na APS: “É um serviço que não existe nas UBSs ainda. Muitas vezes, a rede de suporte dessas pessoas é insuficiente ou inexistente. Esse é um investimento que vale a pena fazer em termos de política pública, no sentido de prevenir agravos àqueles que precisam de acompanhamento domiciliar”.

O Censo revela que 64,3% das UBS utilizam a Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa, documento que abrange informações importantes: desde indicadores como a ocorrência de quedas até a lista de medicamentos que a pessoa utiliza. Groisman lembra que a implementação desse instrumento, fomentado a partir da Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, de 2006, vem ocorrendo de forma lenta.

Além disso, 62,8% das unidades básicas realizam a avaliação multidimensional do idoso, “uma forma de avaliar a saúde que não se restringe à presença ou ausência de doenças, mas à capacidade funcional dessa pessoa em relação ao ambiente em que vive — ou seja, sua habilidade para realizar atividades do dia a dia, entre outros parâmetros”, detalha Groisman. Ele enfatiza a relevância dessa prática para a elaboração do projeto terapêutico singular: “Sem essa avaliação, o entendimento das necessidades da pessoa idosa fica muito prejudicado. O ideal é que 100% dos locais possam aplicá-la em 100% dos usuários idosos”.