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Apartheid sanitário: saúde da mulher negra é negligenciada no Brasil por herança escravocrata

Conforme o continente se aproxima de mais uma celebração do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e o Brasil celebra o Julho das Pretas, os índices referentes à saúde da mulher negra em território nacional se mantém como uma expressão de um problema que o país não consegue solucionar.

Embora representem a maior parcela da população em idade ativa, elas são as menos beneficiadas por avanços sociais. Pesquisas indicam que as mulheres negras enfrentam maior incidência de doenças crônicas, desafios significativos na saúde mental, exposição à violência, discriminação, racismo, taxa alarmante de mortalidade materna e desigualdade no acesso a exames preventivos e diagnósticos.

Em entrevista ao podcast Repórter SUS, Denise Oliveira, pesquisadora em saúde pública da Fiocruz Brasília e uma das formuladoras da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, afirma que a explicação para essa realidade passa necessariamente pela herança escravocrata brasileira.

“Se considerarmos sobretudo a escravidão, que foi uma das mais longas da América Latina, ela também vai ser muito cruel no processo abolicionista. Não foi algo que, para algumas circunstâncias, se comemora plenamente, porque a população negra vai ser jogada nas ruas como animais, sem qualquer tipo de suporte do ponto de vista social e econômico.”

A pesquisadora ressalta que o resultado dessas iniquidades se expressa até hoje, comprovado por indicadores oficiais. A fome, por exemplo, afeta principalmente lares chefiados por mulheres pardas ou negras. Permeado pelas desigualdades estruturais, o aparthaid sanitário se manifesta em diferentes aspectos da vida.

“Neste país, os problemas de saúde tem cor e tem gênero. As características desses problemas têm a ver com a história da escravidão e do processo abolicionista de exclusão social. Ambos ainda trazem as nuances dos indicadores de morbimortalidade na área da violência, de doenças sexualmente transmissíveis, de problemas relacionados a parto e problemas de quase morte materna”, alerta a pesquisadora.

Há mais de 15 anos, o Brasil instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que até hoje não saiu do papel na maior parte dos municípios. Denise Oliveira aponta que o mito da democracia racial, que sustenta a falsa ideia de que o Brasil é um país sem racismo, dificulta o reconhecimento do problema e a aplicação efetiva de ações dessa natureza.

“A mulher negra aguenta”

A violência obstétrica atinge, em sua maioria, mulheres negras, que relatam ter sofrido algum tipo de abuso durante a gestação e o parto. Elas são também as mais atingidas pela mortalidade materna.

Dados dos ministérios da Saúde e da Igualdade Racial mostram que os óbitos de gestantes por hipertensão, por exemplo, aumentaram 5% entre mulheres pretas no período de 2010 a 2020. Nos demais grupos, houve queda nos resultados.

Apesar do acesso ao pré-natal ter aumentado, as mulheres que se declaram brancas seguem com índices mais altos. Em 2020, 80,9% delas tiveram acesso a sete ou mais consultas durante a gestação. Mulheres pretas e pardas têm taxas inferiores a 70%.

Estudos indicam ainda que mulheres negras têm entre três e nove vezes mais chance de incidência e reincidência de miomas uterinos do que as brancas. Consequentemente, são mais submetidas à retirada do útero (histerectomia).

Pesquisas também indicam que cerca de 60% dos casos de câncer no colo do útero registrados no Brasil acometem mulheres negras e de baixa escolaridade. No caso das doenças crônicas, elas são o público mais afetado por uma condição classificada como multimorbidade, com seis ou mais doenças crônicas associadas.

No Sistema Único de Saúde, essa realidade se expressa de maneira perversa, especialmente no atendimento às mulheres negras. “Para alguns profissionais de saúde, a percepção é de que a mulher negra aguenta”, aponta Denise Oliveira.

Ela destaca que, para resolver o problema, primeiro é preciso tornar a situação visível. A não identificação de que a questão racial está envolvida no agravamento de doenças e em situações que determinam até mesmo óbitos, atrasa o processo.

“É importante saber que racismo faz mal à saúde. Isso é importante porque as pessoas pensam que algo faz mal à saúde quando estão infectadas por um agente patológico, uma bactéria. O racismo não é vírus, racismo não é uma bactéria, mas ele mata”, finaliza.

O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Novos programas são lançados toda semana. Ouça aqui os episódios anteriores.

Editado por: Maria Teresa Cruz

Por: Letycia Holanda e Nara Lacerda

Categoria(s):

Repórter SUS