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Entrevista: 
Gracia Gondim

'O momento de pandemia exige ações coletivas, com organização comunitária e a atuação dos movimentos sociais em integração com as ações do Estado'

Nesta entrevista, a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Gracia Gondim, destaca a importância do Técnico de Vigilância em Saúde (TVS) e do Agente do Combate a Endemias (ACE) no combate ao novo coronavírus. Segundo Gracia, esses profissionais estão em constante diálogo com a população e são fundamentais nas ações de controle de endemias e epidemias, trabalhando junto às equipes de Atenção Básica da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e auxiliando na integração entre as vigilâncias epidemiológica, sanitária, ambiental e de saúde do trabalhador.
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 28/04/2020 11h11 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Qual o papel do Técnico de Vigilância em Saúde?

O Técnico de Vigilância em Saúde está em constante diálogo com as populações e atua diretamente no território. Ele identifica condições de vida e situação de saúde, como problemas e potencialidades, para desenvolver ações em interação com diferentes atores, recursos sociais e setores de atuação governamental em saúde, educação, meio ambiente, urbanismo e saneamento, entre outros.

O desafio atual do papel e do significado do trabalho do TVS é ressignificar os processos de trabalho em face às múltiplas determinações do processo saúde-doença-cuidado, que requer novo olhar sobre o território, novas configurações e arranjos assistenciais pautados mais em necessidades e menos em demandas, e, sobretudo, novos sujeitos articuladores territoriais, que estabeleçam, sistematicamente, pontes entre os usuários, as equipes de saúde e demais setores sociais envolvidos com a produção social da vida.

Como o trabalho do Técnico de Vigilância em Saúde se confunde com o do Agente de Combate a Endemias?

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, e a Lei 8080/1990 trouxeram o desafio da implementação de um novo modelo de atenção à saúde com base no conceito ampliado de saúde. Desse novo paradigma, focado nos determinantes sociais e nas necessidades de saúde de populações em territórios específicos, surge a da Vigilância em Saúde (VISAU), como proposta de reorganização das práticas de saúde por meio da ação de equipes de saúde, como sujeito coletivo do processo de trabalho, dando visibilidade ao pessoal técnico de nível médio. No final da década de 1990, há um movimento de descentralização das ações de campo e de epidemiologia e os Agentes Combate a Endemias são, portanto, deslocados para estados e municípios. 

Esse movimento gerou uma mudança no perfil de atribuições desses trabalhadores, possibilitando sua inserção nas estruturas operacionais de vigilância em saúde, como vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, vigilância em saúde ambiental e vigilância em saúde do trabalhador, com ênfase na promoção da saúde. Foi preciso reorganizar o processo de trabalho, integrando ações com a Atenção Básica, para melhorar as condições de vida e saúde nos territórios. Para isso, foi necessário redefinir e ampliar o perfil desses trabalhadores, de ACE para TVS, por meio de processos de qualificação técnica integral e de qualidade.

Apesar de terem acompanhado a história da saúde pública do país, os ACE só tiveram suas atividades e atribuições regulamentadas em 2006, através da Lei 11350, que definiu o desenvolvimento de ações de vigilância, prevenção, controle de doenças e promoção da saúde. A Portaria 1007/2010 regulamentou a incorporação do ACE na Atenção Básica à Saúde, de modo a fortalecer as ações de Vigilância em Saúde junto às equipes de Saúde da Família.

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2012, mostrou a necessidade de integração do trabalho do ACE ao do ACS, com sua inclusão sistemática nas equipes de ESF. Esses agentes tornaram-se articuladores territoriais, dinamizando ações e processos de promoção e proteção da saúde.  Embora a política não mencione o TVS, sabe-se que ao se referir ao ACE, remete ao trabalho desenvolvido por esse novo profissional técnico.

Como a atuação do Técnico de Vigilância em Saúde contribui em um momento como esse de pandemia por coronavírus?

As epidemias sempre estiveram presentes na história da humanidade. No Brasil, a história da saúde pública foi, em grande parte, marcada pela tentativa de eliminar grandes surtos epidêmicos desde períodos coloniais, como o de febre amarela e outros que surgiram posteriormente ao longo dos anos, como malária e doença de Chagas. Os ACE, antigos guardas de saúde pública ou mata-mosquitos,  são profissionais que acompanharam a história da saúde pública do país e, hoje, os TVS são fundamentais nas ações de controle de endemias e epidemias, trabalhando junto às equipes de Atenção Básica da Estratégia de Saúde da Família e auxiliando na integração entre as vigilâncias epidemiológica, sanitária, ambiental e de saúde do trabalhador.

O processo de trabalho do TVS está estruturado com base no conhecimento epidemiológico, no saber popular, no planejamento estratégico situacional e na comunicação social como ferramentas fundamentais para dialogar e agir com a população e demais atores sociais para produção social de saúde.

O trabalho conjunto e complementar entre os ACE/TVS e os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), em uma base territorial comum, é estratégico e desejável para identificar e intervir oportunamente nos problemas de saúde-doença da comunidade, facilitar o acesso da população às ações e serviços de saúde e à prevenção de doenças.

Com foco na importância do trabalho territorializado, esses agentes podem desenvolver uma atividade de vigilância em saúde emergencial para elaboração de plano de ação educativo e comunicativo, identificando os recursos da comunidade e utilizando a linguagem local de modo a divulgar informações em rádios, jornais comunitários, carro de som e blogs do território para o enfrentamento da pandemia do coronavirus.

Os TVS/ACE são trabalhadores que atuam também no controle vetorial do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika e chicungunya. Quais os cuidados necessários em tempos de isolamento social?

Esses trabalhadores desenvolvem ações em prol do controle das endemias e epidemias, como as arboviroses, por exemplo, que são doenças que representam um grave problema de saúde pública no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, historicamente, nos meses de abril e maio, temos o registro do pico de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como dengue, zika e chikungunya. O Ministério da Saúde também já alertou que nesses meses, além das arboviroses, teremos também os maiores números de casos da Covid-19, juntamente com a gripe.

Esse cenário é preocupante, pois aumenta a procura de atendimentos nas unidades de saúde, elevando o risco de contágio pela Covid-19. A curva ascendente em número de casos de dengue, principalmente os quadros graves, pode agravar e estrangular a disputa por leitos para internação no sistema de saúde, se ocorrer ao mesmo tempo que a demanda por leitos para os pacientes com Covid-19.

No Brasil, a Covid-19, desde fevereiro de 2020 até agora, já matou mais que a dengue ao longo do ano de 2019. A dengue é a arbovirose que causa o maior número de mortes no país - foram aproximadamente 800 mortes no ano passado, contrastando com mais de 1.000 mortes pelo novo coronavírus até o mês de abril deste ano. Apesar de todas as atenções estarem voltadas ao novo coronavírus, as autoridades e a população não devem se descuidar da ameaça das arboviroses.

Um grande desafio relatado por especialistas é a possibilidade de uma pessoa ser infectada por dois vírus, SARS-CoV 2 e dengue ou zika ou chicungunya, ao mesmo tempo, podendo se tornar um caso mais complexo. Lembrando que existem quatro sorotipos do vírus da dengue, logo a mesma pessoa que já contraiu dengue do tipo 1, pode ser infectada pelo tipo 2.

As arboviroses também estão relacionadas ao saneamento ambiental inadequado, logo, além de setor saúde, há a necessidade de atuação de outros setores, com investimento em políticas públicas habitacionais e de desenvolvimento urbano. Os profissionais da saúde de grande relevância que atuam na prevenção e controle dessas doenças são os técnicos de vigilância em saúde e agentes de combate às endemias. Estes trabalhadores são fundamentais para o controle desses eventos de saúde, pois conhecem os territórios, e dialogam com pessoas e devem atuar de forma integrada às equipes de Atenção Primária na Estratégia de Saúde da Família, sempre em parceria com o Agente Comunitário de Saúde (ACS).

Nesse momento de pandemia e de isolamento social, o Ministério da Saúde orienta que os ACE devem realizar a visita domiciliar somente no entorno do imóvel, de modo a evitar o risco de contaminação. Contudo, o agente, a uma distância mínima de dois metros, deve informar aos moradores sobre os cuidados que devem ser tomados pelas pessoas para controlar o mosquito que transmite essas arboviroses, bem como orientações fundamentais com relação ao saneamento domiciliar, ao manejo das águas e dos resíduos.

Nesse momento de incerteza epidemiológica e sanitária é urgente aumentar a vigilância no próprio domicílio. A população precisa aproveitar o isolamento social para evitar a proliferação do Aedes, identificando e eliminando os possíveis criadouros. O momento de pandemia exige ações coletivas, com organização comunitária e a atuação dos movimentos sociais em integração com as ações do Estado. Uma Vigilância participativa, com a ação de todas as pessoas comprometidas em melhorar a situação de saúde e as condições de vida dos territórios.

O que os estudantes aprendem no Curso Técnico de Vigilância em Saúde na Escola Politécnica?

O Curso Técnico de Vigilância em Saúde é oferecido pela EPSJV desde 2008, inicialmente integrado ao Ensino Médio e logo depois no formato subsequente, voltado a trabalhadores da Vigilância em Saúde que já concluíram o Ensino Médio. O curso possui uma carga horária de 1440 horas e se estrutura a partir de um currículo integrado, buscando a articulação dinâmica e sistemática entre trabalho e ensino; teoria e prática; ensino e comunidade.

O curso é organizado em quatro unidades de aprendizagem, constituídas por módulos temáticos que comportam grandes questões do campo da Saúde Coletiva. A cada unidade de aprendizagem, é trabalhado um estudo de caso sobre as áreas específicas da vigilância (ambiental, epidemiológica, sanitária e saúde do trabalhador) para que busquem resolvê-los, de modo a recortar elementos e questões singulares dessas áreas de conhecimento e práticas em saúde. 

Durante o curso, são realizadas visitas técnicas a locais de interesse (estação de tratamento de água, de esgoto, central de tratamento de resíduos, comércios diversos, serviços de saúde) são realizadas como forma de aproximar teoria e prática e possibilitar a articulação de fundamentos científicos e a operacionalização dos serviços públicos e privados.

A educação politécnica proposta pela EPSJV, e incorporada como pressuposto básico no Curso Técnico de Vigilância em Saúde, defende a possibilidade de um ensino capaz de integrar ciência e cultura, humanismo e tecnologia, objetivando o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas.  Assim, o CTVISAU ao integrar a formação geral ao ensino técnico, viabiliza uma formação humana e integral, onde o objetivo profissionalizante não tem um fim em si mesmo, nem se orienta pelos interesses do mercado de trabalho, mas se constitui em possibilidade de realização dos projetos de vida do educando.

Ao concluir o curso, o estudante está habilitado como técnico em vigilância em saúde e apto a desenvolver diferentes ações de promoção da saúde e de proteção e prevenção de agravos e doenças. Esse profissional tem capacidade para compreender a complexa rede de determinantes sociais da saúde, bem como de agir, de modo autônomo, criativo e estratégico para transformar a realidade sociossanitária no território de sua atuação. Para isso, deve dominar as bases técnicas e científicas que informam a área de vigilância, bem como ser capaz de produzir conhecimento para a população.

Comentários

Ótimo texto! Uma boa reflexão para TVS, ACE e ACS.

Muito interessante a entrevista da Professora Gracia sobre a importância do Técnico de Vigilância em Saúde (TVS) e do Agente do Combate a Endemias (ACE) no combate ao novo coronavírus. Acredito que o Brasil precisa investir mais na formações técnica de profissionais nessa área, uma vez que a maioria dos municípios brasileiros carece de profissionais para o orientação do trabalho de prevenção às doenças epidêmicas.